Anne Applebaum comenta, na Introdução do livro Gulag, que despertou para a defasagem de conhecimento sobre o sistema punitivo comunista quando, ao passear por Praga pouco depois da redemocratização, presenciou um interessante fenômeno turístico: pessoas comprando relíquias militares soviéticas e bottons com imagens de Lênin como lembranças de viagem. Eram turistas americanos e europeus que, segundo ela, provavelmente ficariam horrorizados ante a possibilidade de usar qualquer coisa com uma insígnia de suástica ou algo do gênero, mas que lá estavam se divertindo em meio aos vestígios e símbolos do terror vermelho.
A autora explica esse tipo de assimetria como resultado de uma estrutura cultural específica que careceria de imagens eficientes para comunicar aspectos da história do comunismo. Não existiria uma quantidade suficiente de boas manifestações artísticas ou narrativas disponíveis para que se conseguisse chamar a atenção à gravidade dos eventos envolvendo essa ideologia ao longo da história.
É como se o imaginário do cidadão médio de um país democrático não dispusesse dos recursos necessários para sensibilizá-lo ao sofrimento das vítimas dos regimes comunistas. Diferente do que ocorre com o nazifascismo ou até mesmo com as ditaduras latino-americanas, que contam com filmes feitos em homenagem às vítimas, recortes narrativos populares que salientam seus aspectos violentos e arbitrários e diversas referências simbólicas a esses acontecimentos usadas em todo tipo de discussão que trate de violência sistemática ou tirania governamental.
Assim como a autora, eu também tive meu “momento revelação” para esse tipo de empatia seletiva ou de inconsistência na representação histórica do sofrimento e da opressão humanos. Na verdade, presenciei algumas situações que tiveram esse potencial de “virar a chave” na minha percepção da realidade, e todas elas ocorreram num ambiente que definitivamente não pode ser perdoado por ter compactuado com incoerências teóricas: um departamento de História de uma universidade.
Acho que minha primeira suspeita de que algo estaria errado ocorreu naquela época de debates e polarização intensos que se seguiu às eleições de 2014 e foi se sustentando ao longo do processo de impeachment. As discussões políticas se intensificaram, novos pontos de vista vieram à tona; apareceu uma direita mais estruturada intelectualmente, além de pautas que se tentavam desvencilhar dos polos tradicionais do debate político e do confinamento ideológico. O intelectual “de gabinete” ganhara concorrência!
Estratégias retóricas
O que mais se presenciou nessa época foi a participação de especialistas, historiadores, sociólogos, pedagogos, seja o que for, no debate público. Publicavam cartas abertas, concediam entrevistas para grandes veículos de comunicação; até mesmo as páginas oficiais de universidades, institutos e associações de profissionais emitiam notas. Todos apresentavam discursos que, quando bem estruturados retoricamente – alguns nem isso! –, contavam com um conteúdo formado por pura validação ideológica através do apelo à autoridade do diploma ou da cátedra.
Lógico que a natureza falaciosa da mensagem não era tão facilmente identificável – nunca é! E é justamente em cima desse tipo de artimanha que sustentam seu poder – ela estava escondida atrás de um vocabulário próprio, de estratégias retóricas típicas do meio acadêmico: são conceitos mal situados e adjetivações vazias, termos com o cerne até que conhecido, mas adotados em sua forma mais incomum, com o radical enfeitado por algum sufixo desnecessário, que dificulte sua compreensão e a compreensão da frase como um todo, já que o alongamento da palavra promove uma quebra na estrutura da oração. Por exemplo, usam “espacialidade” ao invés de simplesmente “espaço”, ou atravessam o discurso com um “essencialista” em lugar de deixar claro que consideram algo essencial.
Adotam conceitos filosóficos – que servem, em teoria, para classificar objetivamente uma corrente de pensamento, método de pesquisa ou estratégia epistemológica – para julgar moralmente uma proposta política ou teoria intelectual. Em muitos casos, são termos que tiveram seu sentido modificado, ainda que sutilmente, ao longo da história, de modo que tornam a mensagem dúbia. Mascaram a crítica ideológica como conclusão de especialista e camuflam o viés político que os motiva.
Costumam arrematar análises com vocábulos que, apesar de transmitirem um ar técnico, científico e sério, não dizem muita coisa por si só. “Virtual”, “estruturante”, “determinista”, “materialista” são adotados como caracterização final de algum fenômeno ou ideia, e não como o gancho através do qual será apresentado o contexto, a costura lógica da argumentação, a justificativa para o enquadramento em determinada categoria.
Em Politics and the English Language [A Política e a Língua Inglesa], George Orwell sistematiza os principais vícios que caracterizam o que denomina de linguagem panfletária. Ainda que que seja fruto de um contexto específico, tanto social quanto marcado por aspectos particulares da formação do autor, o ensaio é exitoso na identificação de padrões da comunicação textual como um todo, e Orwell esclarece com maestria a diferença entre um texto formal, um trabalho sério e que apresente ideias complexas, e um definido predominantemente por afetação intelectual.
Ele traça paralelos, apresenta exemplos concretos por meio de trechos de textos de épocas diversas e nomeia os problemas, de modo que serve como um bom guia para a identificação das estratégias retóricas adotadas nos trabalhos acadêmicos de hoje em dia.
Um dos vícios mais graves que testemunhei foi o do incentivo à construção de textos deliberadamente vagos. Esse tipo de imprecisão na estrutura narrativa é confundido com a expressão de um rigor científico, de uma análise histórica ou sociológica livres de julgamentos morais – na verdade é até mais grave: termômetro moral é tratado como preferência pessoal.
E detalhe: o arbítrio dentro do viés padrão do meio é feito, só não se pode deixá-lo em evidência. O autor do texto finge que não fez, o colega que lê finge que não viu e com o tempo ficamos tão acostumados à estratégia que nem a reconhecemos como tal, ela soa como a mera realidade do processo de produção do conhecimento. Somos convencidos de que estamos apenas agindo com racionalidade, de que não permitimos que moralismos nos atrapalhem.
Em verdade, a burocracia acadêmica em si desestimula a honestidade intelectual, porque isso não produz pesquisa em escala industrial. Uma jornada intelectual sincera não gera um número determinado de teorias bem fundamentadas num tempo hábil; e você não pode simplesmente apresentar o processo para a banca, evidências que contrariem sua própria hipótese ou admitir que ela é fraca – e na maioria dos casos ela o é! Estudar e refletir de verdade traz mais questionamentos do que confirmações, e a realidade é complexa demais para simplesmente sucumbir às tentativas de simulá-la.
E o que são as teorias sociais, as narrativas históricas, as perspectivas filosóficas se não simulações de algum aspecto da realidade? Sejamos realistas, as chances de se chegar a uma “reprodução” próxima o suficiente para que o estudante mereça, de fato, um reconhecimento como intelectual perante a sociedade não são grandes; e isso não quer dizer que o trabalho de pesquisa não seja nobre em si, ou que não devamos apresentar os resultados concretos dele.
Provar que algo não é verdadeiro é uma parte essencial do processo de produção do conhecimento, assim como o é aperfeiçoar as formas de expressar o que já é sabido; mas nada disso soa tão bem quanto ser dono de uma tese. Nem garante o mesmo poder de influência sobre a sociedade quanto o selo do especialista.
Bom, sinto-me segura para descrever essa postura, pois eu mesma a adotei por algum tempo e ainda recebi confissões em primeira mão de outros iludidos – entre iguais às vezes as pessoas “escorregam”! Eu sei qual é a sensação de poder que esse orgulho do especialista traz. Somos convencidos a nem considerar a possibilidade do erro ou da carência de estudo e reflexão, de nossa percepção estar condicionada pelo meio, de nos termos acomodado a uma narrativa hegemônica ou de nossa mente estar associando inconscientemente perspectivas intelectuais pouco familiares com símbolos negativos.
E aqui vai uma fofoca quente, informação privilegiada de quem esteve dentro da boca do monstro: a gente ganha esse ar empolado já no primeiro semestre da faculdade. E sim, jovens “se acham”, mas nesse caso a empáfia é avivada pelos mais experientes, e escorada por formalismos acadêmicos, por oficialidades pedagógicas. É o sistema dizendo para sociedade ouvir um bando de criança deslumbrada!
Ser comunista não está mais tão na moda
Imagino que o leitor esteja, a essa altura, sem entender a ligação disso tudo com o tema alardeado, relacionado aos gulags. Sinto muito se causei essa aflição, mas acredito honestamente que a compreensão do assunto fique incompleta sem uma contextualização acerca do ambiente oficialmente responsável por produzir informações sobre ele. Curiosamente, o mecanismo de funcionamento desse ambiente pode nos revelar bastante sobre aquele dos sistemas políticos que geraram muitas dessas prisões.
Estou consciente da seriedade da comparação, então reitero que me refiro às lógicas que subjazem os mecanismos; e não me parece uma aproximação tão grosseira assim: em ambos os casos existe um ordenamento cujo código de ética se embasa na negação da moral universal.
Sabe aquela dúvida que tanto perturba a oposição? Sobre ainda existirem comunistas ou pessoas com ideologias análogas, isso depois de toda a violência perpetrada por sistemas políticos a elas relacionados? Um bom ponto de partida para esclarecê-la é o que eu disse acima: podemos definir os comunistas como juízes da própria moral, árbitros da validade da própria tese. Se há imunidade moral e intelectual na lógica deles, como reconhecerão o erro?
Alguns deles até responsabilizam suas ideologias pelos excessos, e por vezes assumem que os consideram válidos perante os fins supostamente positivos a que conduziram; outros dão um jeito de negar a relação entre a teoria e suas consequências sociais ou até entre a sua interpretação da teoria e a original. Esses dois últimos são os grupos que predominam na academia hoje em dia, já que se assumir comunista não está mais tão na moda.
A despeito da apropriação ideológica de cada um, a verdade é que a violência do comunismo não é levada a sério dentro das universidades, pelo menos não com uma seriedade compatível com devastação de fato causada. A bolha acadêmica, ao mesmo tempo que ilustra o que Applebaum percebera em sua viagem a Praga, é responsável por criar a empatia seletiva.
O problema é tão profundo que mesmo referências do pensamento diplomático ou de democracia liberal o acusam apenas parcialmente. Anne Applebaum superou seus colegas, percebeu a necessidade de divulgar conhecimento sobre os gulags e o fez! Porém, ainda apresenta uma análise superficial da incoerência no tratamento dos regimes totalitários; ela parece sugerir que a ausência de símbolos culturais sobre a violência comunista é a causa da assimetria, quando na verdade é consequência de um mecanismo ideológico. Foi uma estratégia pensada por um projeto de poder.
Literatura como fonte historiográfica
Parece um pequeno deslize, mas é crucial: é por causa desse tipo de incompreensão que a ideologia geradora dos gulags ainda sobrevive. Não se captou a essência dela, de modo que os próprios críticos da violência, após tornada evidente e inegável, falham em expor a teoria social que construiu os mecanismos dentro dos quais ela é consumada. Inclusive, a jornalista, ao ser convidada a escrever o prefácio da edição em inglês do Arquipélago Gulag, termina o texto manifestando alívio pelo fato de que o comunismo não é mais aventado como ideal político por ninguém.
Pois bem, realmente comunistas assumidos não são mais comuns na universidade. Mas no tempo em que estive lá – e isso foi recente, em torno da última década – vi o Livro Negro do Comunismo ser banido para a pilha dos proibidos academicamente, com a justificativa extremamente lógica e científica de que era muito sensacionalista. Aprendi que o Arquipélago Gulag, de Soljenítsin, não poderia ser considerado como fonte historiográfica, dadas as intenções ideológicas supostamente escusas do autor, a imprecisão factual e o caráter ficcional da obra – qualidade essa que é admitida no próprio subtítulo: “um experimento de investigação literária”.
Se o trabalho é ruim, por que não ler e fazer uma crítica racional? E literatura não é usada como fonte historiográfica? Alguém questionaria a validade de um artigo acadêmico a respeito do Diário de Anne Frank? E a parte das asserções supostamente falsas de Soljenítsin? É absurdo afirmar que isso invalidaria seu livro como fonte, já que o trabalho do historiador é justamente analisar os resquícios do passado e tentar entender o sentido do acontecimento a eles relacionado. Os testemunhos apresentados no Arquipélago não são vestígios de uma época?
Ironicamente, existe uma tonelada de obras de metodologia historiográfica e filosofia da história que colocam justamente a presença dos elementos lírico e emocional como característica central da documentação sobre eventos traumáticos e do passado recente. Defendem, inclusive, que não se “pressione a testemunha” nesses casos, que se tenha uma tolerância maior com eventuais esquecimentos e imprecisões, dado o sofrimento associado a esse tipo de experiência; e ainda afirmam ser a narrativa ficcional a linguagem ideal para se descrever algo que, de tão pavoroso, traz uma “sensação de irrealidade”.
Os trechos a seguir exemplificam essa perspectiva epistemológica:
[...] o preceito historicista da restituição e representação total do passado deve ser posto de lado (Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento, de Márcio Seligmann-Silva);
[...] não estará o historiador (...) preso à armadilha da banalização da explicação, da compreensão? (O silêncio do Sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do Holocausto, de Roney Cytrynowicz);
Não devemos esperar do testemunho que ele explique algo, nós não devemos fazer-lhe perguntas nem inquiri-lo sobre a história, mas apenas garantir-lhe o direito de falar, de contar (O silêncio do Sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do Holocausto, de Roney Cytrynowicz);
A memória do Shoah – e a literatura de testemunho de um modo geral – desconstrói a historiografia tradicional (...) ao incorporar elementos antes reservados à ‘ficção’ (Apresentação da Questão: a literatura do trauma, de Márcio Seligmann-Silva).
Além disso, não existem pesquisas sobre o Diário de Nina, que foi uma espécie de Anne Frank soviética – escrito por uma adolescente mandada para o campo de Kolima, o mesmo em que esteve o autor do Arquipélago – e eu nunca ouvira falar em Escolho a Liberdade, do desertor soviético Victor Kravchenko. Aliás, quando procurei artigos sobre ele, o que mais encontrei foram discussões sobre a confiabilidade desse tipo de fonte, já que havia sido produzida por alguém treinado para mentir. Esse mesmo argumento já foi apresentado contra os membros da luta armada na época da Ditadura Militar, sendo combatido pela intelligentsia com um simples olhar de desprezo e a lembrança de que era necessário mentir para sobreviver.
Autores como Hannah Arendt e Isaiah Berlin foram apresentados, mas apenas depois de se lançar uma ressalva categórica para esclarecer rumores de que seriam “de direita”: são apenas polêmicos! Disseram. E suas teorias sobre tirania e liberdade aplicadas apenas às críticas dos regimes nazifascistas.
Violência tratada com normalidade
O termo gulag vem das iniciais de “Administração Central dos Campos” em russo – Glavnoe Upravlenie Lagerei – e, com o tempo, passou a designar todo o sistema punitivo soviético e até mesmo os campos de prisioneiros de outros governos comunistas ao redor do mundo. A primeira vez que tive contato com a palavra, ou pelo menos com a profundidade de seu significado, foi através de um post de um colega de curso no Facebook, em que se comentava sem a menor cerimônia que a punição ideal para um determinado influencer liberal era justamente o gulag.
E esse foi o meu segundo balde de água fria na percepção das incoerências presentes na memória das catástrofes históricas. Eu mesma fui “mandada para o gulag” umas duas vezes, em discussões que ocorreram bem debaixo dos olhos dos colegas; e presenciei outras em páginas da própria universidade! Nenhum coletivo lançou nota de repúdio, nenhum especialista escreveu qualquer análise sobre a propagação de discurso de ódio ou discriminação com base em credo ou visão política – e olha que eu sou bem confusa politicamente, imagine se descobrissem um oposicionista típico.
Aliás, vale esclarecer: o teor da mensagem dos colegas não era lúdico ou hiperbólico! E não foi necessário um grande especialista para perceber isso. Ao serem confrontados sobre a “violência” inerente ao discurso, confirmaram orgulhosamente seu conteúdo e justificaram o apoio a tal medida por meio do seu suposto caráter pedagógico. Ou seja, algumas pessoas precisariam passar uma temporada num campo de trabalho forçado, de modo a serem educadas para abandonar opiniões perigosas e abraçar o curso justo da história. Para eles não havia nada de imoral nisso!
Lembrei-me de um artigo que caiu em minhas mãos certa vez, que se propunha a analisar criticamente, e com emprego de metodologia científica, o Plano Progresivo, que foi como o próprio governo cubano denominou o sistema punitivo político pós-revolução, como um programa de reabilitação. O artigo é de 1989 e anunciava estar desmistificando a crença de que o “gulag cubano” possuía apenas aspectos negativos. Ele não defendia a violência, mas dizia poder provar cientificamente, com o uso de dados objetivos, estatísticos, que o programa fora benéfico e, comparado com outras prisões, contava com cárceres humanizados, ainda que pudessem ser melhorados.
Dentre as estratégias presumidas objetivas estavam a utilização, como fonte, de entrevistas do próprio Fidel Castro e documentos chancelados pelo governo cubano, além de relatórios de organizações autodenominadas defensoras dos direitos humanos, mas claramente direcionadas à defesa de um viés de esquerda, como o IPS – Institute for Policy Studies. O artigo apresentava também a confirmação dos próprios presos – sob tutela do regime cubano – de que não sofriam maus-tratos, e desqualificava as denúncias dos refugiados alegando que continham intenções antimarxistas.
O que mais informa sobre essa ideologia, contudo, não é o que ele tenta desmentir, mas o que trata com normalidade. Ainda que todas as suas críticas fossem bem fundamentadas, o que apresenta como aceitável – ou banal o suficiente para ser citado apenas superficialmente – é em si um problema. Assim como os meus colegas, ele se ampara eticamente na defesa de um projeto educacional. Enfoca o potencial de reabilitação do programa para concluir que fora bem-sucedido, fala em bibliotecas, menciona o artigo da constituição revolucionária em que se diz para “não deixar ninguém para trás”, pinta Castro como tolerante por permitir que se lessem outros livros além dos marxistas. O ditador teria dito: “bons livros, em geral. Não faria sentido oferecer livros que não fossem bons".
Mas esse é justamente o problema! Quem definia os critérios de qualidade dos livros? As pessoas estavam sendo presas por portar literatura contrarrevolucionária, por desertar, e o foco do trabalho é mostrar que as condições de encarceramento não eram tão ruins e que havia preocupação por parte do governo com reintegração à sociedade e com educação? Educação que, segundo o próprio texto, era direcionada a mostrar que a revolução servira para melhorar a vida de todos e que a oposição advinha de “ignorância”. E reintegração a uma sociedade que, assim como as prisões, era cheia de imposições!
Sei que alguns colegas dirão que o artigo está defasado com relação à historiografia atual, mas reafirmo que seu mecanismo retórico é um bom exemplo da estratégia ainda adotada. Assume-se uma pose amaneirada, ares de ciência e de um analista que está acima dos moralismos do “povão” para invalidar qualquer evidência de que a ideologia cultivada pelo especialista estaria associada à violência e a danos sociais.
Ao mesmo tempo, quando há fatos inegáveis, esquiva-se por meio de asserções vagas, de conclusões deixadas em aberto e de suavizações conceituais. Ele não proclama a simpatia pelo sistema comunista cubano ou sua tolerância com algum grau de violência, mas a retórica da narrativa escancara suas preferências. Quando questionado sobre as conclusões, abstém-se do juízo moral ao colocá-las na conta do caminho falacioso e pseudocientífico que escolheu percorrer.
“Lênin atribuiu ao marxismo o papel duplo de moral e de religião. O partido combinava incoerentemente as prerrogativas do cientista e do sacerdote e (...) tornou-se uma elite depositária de todo o programa do progresso humano (...)”. Assim explica George H. Sabine, um historiador das ideias, a relação da ideologia comunista com a moral universal: percebam as semelhanças com a postura dos acadêmicos atuais.
É por isso que não se leva a sério a violência dos gulags, a ausência de debates, a omissão de informações ou o patrulhamento ideológico. A realidade é definida pela ideologia! A moral é o fim, não o meio. Ser bom é reprogramar a sociedade; ser honesto intelectualmente é validar o viés ideológico.
Exageros circunstanciais são ignorados ou debilmente criticados, pois danos individuais não estão previstos na diretriz moral do projeto de poder, e mudanças abruptas e contraditórias nos planos são absorvidas sem resistência, já que as especificidades do processo histórico e das relações sociais são nada perto do destino final.
Importante esclarecer que não defendo o banimento de artigos e não me oponho ao questionamento de qualquer aspecto da obra ou documento estudados. Só há atividade intelectual profunda com a liberdade de se considerar caminhos e expressar honestamente as desconfianças e perturbações causadas pelo objeto, confrontando-as, posteriormente, com os incômodos que surtiram em uma outra parte dentro do debate. Tampouco advogo pela punição de colegas que limitaram seus arroubos de agressividade à fala, pois tento manter a coerência em minha defesa do livre pensamento e expressão.
E antes que minhas críticas aos acadêmicos sejam usadas para invalidar minha própria tese, deixo claro que não estou exigindo o direito de ser levada a sério e não aposto a qualidade do meu texto no selo do especialista. Testemunhei a construção de determinadas dinâmicas de poder – direto da fonte! – e pude refletir sobre seus mecanismos; sinto, assim, o peso da responsabilidade de desfazer alguns nós retóricos, apontar inconsistências narrativas e apresentar as conclusões. Que o público julgue seu valor!