O famoso livro de Michel Houellebecq, Submissão, tem um desenlace que nos prende pela força simbólica. Para quem não o leu, segue um pequeno resumo: François, professor universitário de quase 50 anos, “solteirão cultivado, um pouco triste” e protagonista da história, se aproxima no final do romance de Robert Rediger, o novo reitor da Sorbonne, nomeado após a ascensão à Presidência da França de Mohammed Ben Abbes (líder da Fraternidade Muçulmana) em 2022. A universidade foi privatizada e islamizada e os professores deveriam ser muçulmanos para que pudessem lecionar, e é nesse contexto que François, redigindo uma tese sobre Huysmans (falaremos dele abaixo) e titubeando ainda entre adesão ou não ao Islã, começa a frequentar a casa de Rediger.
Ali ele descobre que Rediger havia escrito sua tese de doutorado sobre René Guénon, além de muitos outros artigos sobre questões geopolíticas em que se via uma clara influência desse autor. Dessa relação, começa a surgir em François uma curiosidade mais forte e simpática sobre o Islã.
François era um especialista em Joris-Karl Huysmans, um romancista francês do fin de siècle, cujos livros praticamente narram sua própria biografia anterior: um agnóstico que se meteu em meios ocultistas e satanistas e que termina por se converter em um católico fervoroso. Mas, ao contrário de Huysmans, o protagonista de Submissão termina por concluir na tese que estava escrevendo que “o único verdadeiro assunto de Huysmans era a felicidade burguesa”. Era seu juízo definitivo, segundo si próprio, no “melhor texto jamais escrito sobre Huysmans”. Não muito tempo depois, François termina por se converter ao Islã.
Em linhas gerais, é este o romance. E o símbolo para quem o leu é bastante evidente: da queda espiritual oriunda do materialismo emergente do século XIX só resta uma alternativa ao Ocidente: o islã (palavra árabe que significa justamente submissão). Em outras palavras, Huysmans é engolido por René Guénon.
Alguém pode alegar que isso é apenas uma mera especulação romanceada sobre pensadores desconhecidos e desinteressantes, mas o crescimento do islã na Europa, a relação entre o Príncipe Charles e Martin Lings (um dos maiores discípulos de René Guénon), tendo inclusive o príncipe prefaciado um livro de Lings sobre Shakespeare, e mesmo a presença Sadiq Aman Khan como prefeito de Londres deveriam ser suficientes para mostrar que Houellebecq não compôs seu livro sem fundamento.
Vida e interesses
René Guénon nasceu em Blois, na França, em 1886. Ele cresceu em um meio católico e estudou com os jesuítas. Em 1905, abandonou a educação formal e mergulhou nas correntes francesas de ocultismo, tornando-se membro de várias sociedades secretas, como a maçonaria e o teosofismo.
No começo da década de 1920, ele começou a publicar seus primeiro livros, como Le Théosophisme, histoire d'une pseudo-religion [O teosofismo, história de uma pseudorreligião] e L'Erreur spirite [O erro espírita], tecendo críticas demolidoras aos ocultistas e renegando esses grupos como uma “espiritualidade falsificada”. Entretanto, ele já se mostrava contrário à civilização europeia contemporânea nesta fase, publicando o célebre La Crise du monde moderne [A crise do mundo moderno] em 1927.
O foco de interesses de René Guénon foi gradativamente mudando do ocultismo para o interesse esotérico de religiões tradicionais. Nesse período, procurou encontrar os princípios fundamentais de todas as religiões que, segundo ele, remeteria até a uma “religião primordial”.
Exotérico e esotérico
É preciso explicar aqui o que Guénon entende por “esotérico”. Para ele, a religiosidade humana em todas as suas vertentes se divide em exoterismo e esoterismo. O exoterismo seria a religião popular, os princípios obrigatórios para todos os fiéis. Já o esoterismo seria destinado às pessoas mais aptas ou mais interessadas na religião, que se preocupam com uma transformação mais interna.
Nessa época, Guénon visava uma regeneração do catolicismo por meio da redescoberta de suas tradições esotéricas. Além do contato constante com personalidades da intelectualidade católica, de 1925 a 1927 ele colaborou assiduamente com a revista católica Regnabit. Mas Guénon se desiludiu e desistiu de restaurar o esoterismo estritamente católico. Então, entre 1927 e 1930 ele decidiu se mudar para o Cairo, onde se dedicou ao sufismo islâmico e abraçou de vez esta religião. Guénon permaneceu ali até sua morte, em 1951.
Pode-se dizer que Guénon estava tranquilo, no plano pessoal, com o islã tradicional. Mas ele continuou tendo uma postura crítica ao Ocidente, interessado na possibilidade de restaurar os canais genuínos de iniciação na cristandade – de acordo com o que ele entendia como os princípios comuns a todas religiões tradicionais – mas por meio do esoterismo do sufismo islâmico.
Note que, dentro da visão guenoniana, o sujeito poderia ser exotericamente católico, mas esotericamente sufi, pois em última análise o esoterismo seria igual para todas as religiões. Apenas os meios externos de expressão cultural seriam diferentes.
Olavo de Carvalho divulgador
No Brasil, um dos que mais divulgaram a escola guenoniana foi o filósofo Olavo de Carvalho, que em seu antigo site inclusive mencionava Guénon como um de seus gurus. Carvalho manteve contato com o esoterismo islâmico na tariqa [escola sufista] de Frithjof Schuon, um dos mais destacado discípulos de René Guénon.
A admiração de Olavo por Guénon está clara nesta nota: “Não nego que foi só graças a Schuon (e Guénon, é claro) que finalmente compreendi ser o cristianismo uma ciência – a ciência das ciências, a “‘ciência da Cruz’”.
Recentemente, porém, no artigo As garras da Esfinge – René Guénon e a islamização do Ocidente o filósofo mostrou ter diferenças bastante significativas com o antigo “mestre”, apontando que as distinções entre exoterismo e esoterismo são conceitos que valem apenas dentro do islamismo:
"João Paulo II, no seu Catecismo, declara explicitamente que os sacramentos são os passos 'da iniciação cristã', e não é concebível que, num texto tão formalmente doutrinário, usasse o termo como mera figura de linguagem.
O Pe. Juan González Arintero, em dois livros memoráveis que provavelmente constituem o cume da literatura mística no século XX, demonstra com abundância de argumentos e exemplos que a via dos sacramentos foi aberta justamente para dar a todos, sem exceção, o acesso aos mais altos patamares da realização espiritual".
Olavo também disponibilizou uma aula no seu canal do YouTube em que ele esclarece melhor que pensa sobre René Guénon.
O pensamento de Guénon
As transformações da sociedade devido à ascensão da ciência moderna e às revoluções Francesa e Industrial, que se consolidaram no final do século XIX e início do XX, preocuparam de diferentes formas a intelectualidade do ocidente.
No final da Primeira Guerra Mundial, a sensação de que uma era havia acabado e outra estava para começar se espalhou pela Europa (como retratado no livro A sagração da primavera, de Modris Eksteins). E foi nesse contexto em que a modernidade começava a gerar medo em vez de entusiasmo que muitos intelectuais, como Hilaire Belloc, J. R. R. Tolkien e Georges Bernanos se levantaram contra o “progressismo” dominante. Antes ainda da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Bernanos dizia, por meio do protagonista do livro Diário de um Pároco de Aldeia, que “o mundo está devorado pelo tédio” e por isso “se agita tanto”.
É nesse contexto de crise e sensação de perda espiritual que Guénon publicou suas obras A crise do mundo moderno (1927) e Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps [O reino da quantidade e os sinais dos tempos] (1945) e que resumem os tópicos abordados pelo seu pensamento.
A primazia da ciência como portadora da verdade é, para Guénon, um dos principais motivos da crise que o ocidente enfrenta.
“Quando se vê uma ciência exclusivamente material se apresentar com a única ciência possível, quando os homens estão habituados a admitir como uma verdade indiscutível que não pode existir nenhum conhecimento válido fora desta, quando toda a educação tende a inculcar a superstição desta ciência, o que é propriamente ‘cientificismo’, como poderiam os homens não ser praticamente materialistas, isto é, não ter todas as suas preocupações voltadas para o lado da matéria”.
Ele lamenta, ainda, a opção do homem contemporâneo por ignorar e desprezar qualquer conhecimento que não se possa ver e tocar, quando não declaram ainda que esse tipo de conhecimento é “não apenas desconhecido, mas ‘incognoscível’, o que os dispensa de se ocupar disso”.
Assim, optando por questões meramente contingentes, o homem não tem onde se apoiar, pois tudo é mutável e, para piorar, os princípios metafísicos que orientavam a civilização tradicional no ocidente encontram-se agora perdidos
Entre os exemplos da diferença entre as ciências antiga e moderna, Guénon aponta que “é fácil dizer, como se faz habitualmente, que a astrologia e a alquimia se tornaram respectivamente a astronomia e a química modernas [...]”, mas na verdade estas últimas são “degenerações”. “Hoje em dia já ninguém sabe o que poderia ser a astrologia antiga [...]” e chegam apenas a produzir falsificações “seja querendo fazer dela o equivalente de uma ciência experimental moderna [...], seja aplicando-se exclusivamente a restaurar uma ‘arte adivinhatória’ que foi pouco mais que uma desviação da astrologia em vias de desaparecimento”.
Fazendo diferenciações como essas, Guénon vai ilustrando como a sociedade do século XX se encontra no final de um longo caminho de degeneração espiritual – que ele identifica como o Kali-Yuga, termo da tradição hindu que pode ser traduzido como "a era do vício". A destruição causada pela Segunda Guerra Mundial e por regimes totalitários, de alguma forma, deram razão a Guénon.
As condições intelectuais para que essas tragédias acontecessem podem ser encontradas em seu livro posterior, O reino da quantidade e os sinais dos tempos, no qual Guénon critica o racionalismo moderno:
"É em nome de uma ciência e de uma filosofia qualificadas de ‘racionais’ que os modernos pretendem excluir todo o ‘mistério’ do mundo tal como eles o representam, e, de fato, poder-se-ia dizer que quanto mais uma concepção é estreitamente limitada, mais ela é olhada como estritamente ‘racional’”.
Em termos mais concretos, a redução de tudo a questões quantitativas acaba por reduzir o próprio homem a um número. É por motivos como esse que se pode enviar milhões de pessoas a um campo de extermínio sem ter muito peso de consciência.
Antiprogressismo
É nesse sentido que Guénon se opõe á modernidade e tira daí o impulso de restaurar as escolas antigas de pensamento: “os partidários do ‘progresso’ têm o hábito de dizer que a ‘idade de ouro’ não está no passado, mas no futuro; a verdade, bem pelo contrário, é que ela é realmente do passado, visto que não é outra coisa senão o próprio ‘estado primordial’”.
E é para restaurar o que ele entende por verdadeira ciência que o trabalho construtivo de Guénon se volta ao estudo da semiótica, como apresentado nos livros Símbolos fundamentais da Ciência Sagrada, O simbolismo da Cruz, entre outros. Mas esse assunto é tão vasto que seria necessário um texto muito mais longo explicá-lo.
Houellebecq parece ter captado bem a importância e a influência de René Guénon no pensamento ocidental. Contudo, deve-se levar em conta que, como já foi dito, ele tentou restaurar os “estudos tradicionais” no ocidente a partir de sua experiência esotérica sufi, uma escola bastante estranha ao Ocidente de tradição judaico-cristã.
A posição ambígua de Guénon, que pode tanto injetar novos ares ao pensamento ocidental como destruí-lo para sempre, faz com que ele se torne um dos pensadores mais intrigantes do século passado e um desafio quase incontornável para o conservadorismo.
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