Em setembro de 2015, durante uma visita ao set da série “Flash”, em Vancouver, no Canadá, virou objeto de pauta um painel esculpido para o cenário principal, a delegacia de polícia, com a representação de sete deuses gregos. O escultor responsável pela peça disse se tratar daquilo que os nerds chamam de “Easter egg” (ovo de Páscoa, em inglês), que são, na verdade, referências a algo relativo ao universo daquele filme ou série.
Neste caso, os sete deuses são a inspiração de sete heróis da DC Comics. Aquaman é Poseidon, Arqueiro Verde é Apolo, Hades é o Batman, Zeus é o Superman, Hera seria a Mulher Maravilha (seu bordão inclusive é “por Hera!”), Hermes é o Flash e, por fim, Hefesto é o Lanterna Verde.
Corta para semana passada: executivos dos estúdios Marvel convocam alguns veículos de mídia para mostrar algumas cenas de seus próximos filmes, como “Thor: Ragnarok”, “Pantera Negra”, “Homem Formiga 2” e “Homem Aranha: Voltando pra Casa”. Na mesma noite seria exibida pela primeira vez a íntegra de “Guardiões da Galáxia Vol. 2”, que chegou aos cinemas do Brasil nesta quinta-feira (27). Em comum, segundo destacou o site Vulture, todos os heróis aparecem em cenas sem camisa.
O vice-presidente da Marvel, Louis D’Esposito, fez questão de dizer que aquele monte de tanquinho e de músculo era real. “Não fizemos nada disso em computador!”
Mitologia moderna
Três dias depois, no London Hotel West Hollywood, a Gazeta do Povo entrevista James Gunn, o diretor de “Guardiões 2” e pergunta se há um movimento de objetificação do corpo masculino no cinema americano: “Esses caras trabalham duro para criar corpos que são obras de arte, então, por que não mostrar?” Quem pensou estátuas gregas não está fazendo analogia equivocada.
No entanto, a afirmação textual de que filmes de super heróis são, na verdade, o teatro grego contemporâneo, veio da boca mais improvável: Sylvester Stallone, que faz uma pequena participação no filme, mas que terá papel de maior destaque no próximo capítulo da trilogia.
[A Marvel] é a mitologia desta e talvez da próxima geração
Durante uma entrevista coletiva, no mesmo dia, os novatos da franquia foram questionados sobre como aceitaram participar deste que é o ramo mais lucrativo da indústria do cinema contemporâneo. Stallone, entre eles, respondeu o seguinte:
“Sabem, no começo da minha carreira, eu acho, eu fiquei fascinado por mitologia, Joseph Campbell e “O Herói de Mil Faces” e por aí vai. Então eu comecei a fazer Rambo e isso foi uma evolução [no mito do herói], e cada geração tem que encontrar seus próprios heróis e sua própria mitologia. Então esta [a Marvel] é a mitologia desta e talvez da próxima geração”.
Jornada do herói
Para entender melhor o que Stallone quis dizer é preciso recapitular um pouco de que se trata “O Herói de Mil Faces” e seu conceito chave, que é o chamado monomito — o que os roteiristas também chamam de “jornada do herói”.
Campbell e outros estudiosos usaram esse conceito para descrever as trajetórias de Buda, Cristo e Moisés, mas o roteirista Christopher Vogler transformou os 12 estágios (que podem ser resumidos em três: partida, iniciação e retorno) em um memorando para os estúdios Disney que, mais tarde, foi transformado no livro “A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas”. A obra é base de roteiros como “Mulan”, “A Pequena Sereia”, a trilogia “Matrix” e também todos os filmes da saga “Star Wars”, principal inspiração do diretor James Gunn para “Guardiões 2”.
Quando fiz o primeiro filme, não havia dúvida de que ‘Star Wars’ era uma inspiração para mim
A estrutura também pode ser encontrada na trajetória de Prometeu, Osíris, Cinderela e um sem numero de peças clássicas do teatro grego passando por Shakespeare e chegando ao teatro contemporâneo.
O conflito central do personagem Peter Quill (Pratt) neste filme é, inclusive, muito parecido com o de outros personagens que se descobrem semi-deuses, como Hércules ou os gêmeos argonautas Castor e Pollux. Em “Guardiões da Galáxia 2”, uma divindade chamada Ego (alguém aí pensou em Freud?) aparece do nada e diz “Peter, sou seu papai” — a mesma revelação que Darth Vader (James Earl Jones) faz a Luke Skywalker (Mark Hamill) em “Star Wars”.
“Quando fiz o primeiro filme, não havia dúvida de que ‘Star Wars’ era uma inspiração para mim, mas não queria fazer um filme igual, mas um filme que me fizesse o público se sentir como eu me senti como quando era criança: pura magia”, disse Gunn à Gazeta do Povo.
Múltiplos protagonistas
Esta estrutura influenciou ainda na forma como o diretor deu a cada personagem um arco dramático individual e importante no conjunto da narrativa, fazendo com que cada espectador, independentemente de quem seja seu personagem preferido, se sinta satisfeito e representado (assim como cada pessoa tem seu signo do zodíaco, embora todo mundo minta que não sabe ou que não se importa com isso).
“É um filme de múltiplos protagonistas, em que cada personagem tem sua própria história. É mais difícil, mas também é mais fácil na hora de construir as cenas em conjunto. É mais prático na hora de fazê-los interagir, porque no fundo acaba não importando muito, já que as histórias não são centradas em apenas alguns personagens. Todos têm histórias com começo, meio e fim”, explicou.
Me senti fazendo teatro. E da parte do espectador é a mesma sensação que os gregos tinham de assistir algo escapista e, ao mesmo tempo, épico e que reflete sobre sua própria existência humana
Da parte dos atores, Marvel e DC se tornaram uma espécie de repertório de Hollywood, assim como Shakespeare, Ésquilo, Brecht e Nelson Rodrigues são para o teatro. A franco-australiana Elizabeth Debicki, outra estreante na franquia no papel da imperatriz Ayesha, disse que sua experiência teatral e os estudos do teatro grego foram base para sua personagem.
“Há algo de muito teatral em Ayesha para mim. Ela não necessita aquele naturalismo. Ela é gigantesca. Mítica. Épica. Há um desafio nisto, claro, porque é preciso descobrir o que há de humano naquilo, inclusive porque este é o ponto de conexão com a plateia. Há algo de Athena nela, mas também busquei inspiração nas tragédias gregas, em Clitemnestra, Medeia, Electra. Me senti fazendo teatro. E da parte do espectador é a mesma sensação que os gregos tinham de assistir algo escapista e, ao mesmo tempo, épico e que reflete sobre sua própria existência humana.”
Teatro de alguém
Claro que a hegemonia da Marvel e da DC e a mudança de paradigma em Hollywood irrita os mais puristas, os mais afeitos ao drama (que migrou para a TV empurrado pelos super heróis) e, especialmente, os saudosistas. Mas a discussão é tão velha quanto os mitos que inspiraram as primeiras montagens na Grécia antiga. Hollywood, inclusive, brincou com isso em 1950, em uma das cenas de “A Malvada”, o primeiro dos três únicos filmes a terem 14 indicações ao Oscar.
Onde há mágica, há teatro. Pato Donald, Ibsen, Sarah Bernhardt, Betty Grable. Pode não ser o seu teatro, mas certamente é o teatro de alguém
Ao ver o diretor Bill Hanson (Garry Merrill) largando a carreira no teatro para se aventurar na “frívola” Hollywood, a arrivista Eve Harrington (Anne Baxter) faz todo um discurso reacionário sobre a superioridade moral do teatro sobre o cinema. E ouve a seguinte resposta:
“Sabe o que é o teatro? Um circo de pulgas. Assim como a ópera, os rodeios, os balés, as danças indianas. Onde há mágica, há teatro. Pato Donald, Ibsen, Sarah Bernhardt, Betty Grable (…). Você não os entende. Você não gosta de todos eles — por que deveria? Mas o teatro é para todos, você inclusive, mas não exclusivamente. Então, não aprove ou desaprove [Hollywood]. Pode não ser o seu teatro, mas certamente é o teatro de alguém.”
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