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Hannah Arendt, Machado de Assis e a banalidade do bem. Sim, do bem!

Como antigamente os judeus, os ciganos, os mouriscos e outros infiéis, se descobre com pavor que você pode ter sido, dito ou feito algo que poderá ser enquadrado como gordofóbico, homofóbico, feminifóbico, xenófóbo, cisfóbico, istofóbico. (Foto: Reprodução/ Wikipedia)

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Sim. É isso mesmo. Não quero falar da banalidade do mal, como fez Hannah Arendt. E se você, que me lê, teve essa dúvida, já fico feliz, porque só com isso ganhei o meu dia. Fico feliz quando alguém lembra ou diz que leu algo da Hannah Arendt. Mas o que eu quero falar mesmo é da banalidade do Bem.

Já reparou como hoje tudo é “do bem”. Tem suco e fruta do bem, tem gente que é do bem, tem comida que é do bem, tem regime, fitness, prédio, até mesmo juízes, jogadores, músicos, atrizes, jornalistas e, por que não?, até gente sem eira nem beira que também é do bem. Dá-me a impressão que todos saíram ou saímos de uma imensa Liga da Justiça para algum tipo de batalha final.

Ah! Esqueci! Tem também ministros e políticos que são do bem e que estão consertando o Brasil, e, como se dizia quando eu era jovem universitário, também quiçá a América Latina.

Basta acontecer qualquer coisa, banal ou extremamente grave, tanto faz, porque já tudo ficou banalizado. Pode ser a morte de alguém, a frase impensada de outrem, o silêncio de mais alguém, uma atitude criminosa, um simples palpite ou opinião. Seja lá o que for, se você cair no radar da Liga da Justiça e do Bem, então, está frito. Não demorará muito a ser levado à fogueira da nova Inquisição e em muito pouco tempo será cancelado, banido, colocado no ostracismo civil, político e econômico (e pensar que isso era coisa de romanos e bárbaros, o tal do ostracismo).

Tanto faz como tanto fez. Bastou acontecer, ser dito, mesmo até, bastou ser pensado ou postado para que, a partir daí, a Liga dos Justiceiros do Bem (lembram do cabo Bruno?) monte seus cavalos e assombre a todos com o Apocalipse: “Tomou, levou! É inaceitável... A sociedade não está mais disposta... É vergonhoso... Tem de ser despedido, cancelado, esquecido, trucidado, queimado...”

Não faz muito tempo, quando eu ainda era jovem professor de história, lembro-me como na Universidade, na mídia e, de maneira geral, na sociedade se criticava o Tribunal da Inquisição e aquela cisma para “extirpar ídolos”, “calar os heréticos, dissidentes e pagãos” e deixar como única alternativa para os que “não pensavam corretamente” o exílio, o silêncio ou a penitência e execração públicas, quando não a morte pura e simples.

Agora a cada dia que acordo deparo-me com um “Basta já”, “Chega”, “Como pode?” “Tem que demitir”, “Tem que calar”, “Tem que....”. O crime? Apenas mudou de sinal. O que antes era um delito contra a fé verdadeira agora é um delito contra o politicamente verdadeiro. As penas continuam sendo as mesmas.

Não é que não se possa mais ser isto ou aquilo, é que praticamente tudo o que se fale, tudo o que se insinue ou tudo o que se opine, mesmo que seja por um breve momento, num breve átimo de segundo digital, tudo e qualquer coisa passa a ser crime de lesa-opinião. E, então, como antigamente os judeus, os ciganos, os mouriscos e outros infiéis, se descobre com pavor que você pode ter sido, dito ou feito algo que poderá ser enquadrado como gordofóbico, homofóbico, feminifóbico, xenófobo, cisfóbico, istofóbico.

Machado de Assis também entrou nessa

Lembrei do conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Em curtíssimas seis páginas, ele expõe um tratado sobre a alma humana. Sobre todos nós, sobre vocês e eu. Diz Machado, pela voz de Jacobina, um cinquentão acomodado, que todos temos duas almas: uma externa, que só se preocupa com o que os outros falam dele, com o papel, a figura que ele representa perante os outros e, mais, com a aprovação dos outros. E a outra alma, a interna, é aquela que nos fala no nosso interior e nos fala precisamente de quem é que de verdade somos.

Por que lembrei de Machado justo agora? Porque supor que temos duas almas em tempos tão claros e tão distintos como estes tempos que vivemos e no qual tudo é ou isto ou aquilo, ou preto ou branco, ou quente ou frio, ou, ou, ou...

Por que comecei a perguntar-me se será mesmo que não há mais cores neste mundo? Será mesmo que só podem existir dois tipos de pessoas? As que são do Bem, como... Sei lá. Agora, de repente, fico com medo de dizer algum nome, alguém como... Vá lá, que nome eu falo, meu Deus?! Já nem sei se poderei dormir tranquilo se falar algum daqueles nomes consagrados do Mal, daqueles aos quais Hannah Arendt se referiu, como Hitler e Eichmann. Nem sequer fico tranquilo ao me referir a seres de ficção, como o Coringa, Karamazov (Smiérdakov, não os outros, porque vai que alguém se ofende. Já de Smiérdakov nem todo mundo lembra).

Como eu vim a dar em O Espelho, de Machado de Assis?

Em determinado momento da sua história, um momento da sua biografia, Jacobina afirma com simplicidade e profundidade que “o alferes eliminou o homem”. E o motivo era que, tendo virado alferes aos 25 anos, passou a ser o tema do momento, em todo lugar, em qualquer reunião, na família, com os amigos, com os conhecidos. Sr. Alferes para cá, Sr. Alferes para lá. Até o momento em que todo o ser, toda a personalidade, toda a vida do Jacobina dependia pura e simplesmente dos outros, das redes e das mídias sociais da época.

Não importava mais quem ele era, nem sequer o que era mesmo que pensava no seu íntimo. O único que fazia sentido naquela sociedade era “a agenda de alferes”, “o pensamento de alferes”, “a ideologia de alferes”. A alma exterior tinha tomado conta da alma interior.

Mas o pior não me parece que seja isso. O pior é que isso que aconteceu quando Jacobina tinha 25 anos, essa eliminação da essência da pessoa, daquilo que é mais próprio de cada um de nós, ou seja, nossos pensamentos, nossas ideias e nossa forma de ver e de viver a própria vida (que até o outro dia era o fundamento do tal do Estado de Direito) simplesmente desapareceu quando o antigo alferes contou-nos o seu relato.

No começo do conto, não sabemos ao certo se são “quatro ou cinco cavalheiros” que estão conversando, porque, como o narrador conta, um deles, justamente o Jacobina aos seus 50 e poucos anos, não conversa nem ouve, está apenas “calado, pensando, cochilando”. Está lá como que alheio e indiferente a tudo e a todos.

Parece-me que o Jacobina seria o “Comandante-chefe” da Liga do Justiça e do Bem. Ele se achava mais no time dos “querubins e serafins” e muito, mas muito menos no time dos humanos, das pessoas comuns e correntes. Ele, o Jacobina, gostava de saber que, entrando nesse time angelical, estava mesmo no time “da perfeição eterna” e, portanto, ele jamais dava a sua opinião, porque ele não tinha opinião, ele tinha sentenças. Ele tinha, nada mais e nada menos, do que a verdade. E por isso mesmo exigiu que todos ficassem calados e não falassem nem um pio enquanto ele sentenciava. E o fez durante longos 40 ou 50 minutos. No fim, no meio da sua arrogância justiceira, pegou a escada e, sem ouvir a opinião de ninguém, cancelou-os a todos.

Tal como teria dito Hannah Arendt, Jacobina transformou-se em Eichmann. A banalidade do Bem. A banalidade do Mal.

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