Machado de Assis, Eça de Queiroz, Jorge Amado, Quino e demais figurinhas carimbadas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) devem ter estranhado a companhia. E a surpresa entre os candidatos não foi menor. No último domingo da prova, a porta de entrada para o ensino superior no Brasil, esteve presente ninguém menos do que o protagonista de uma das franquias pop mais famosas e rentáveis da história e, segundo diz uma pesquisa, mais conhecida do que os quatro Evangelhos entre a geração Z, nascida após 1995.
Harry James Potter, o menino bruxo que rendeu bilhões à britânica J. K. Rowling (canceladíssima desde meados do ano passado sem que a gritaria lhe subtraísse um centavo em licenciamento), estava ali, entre figurões da literatura, a introduzir um pequeno enigma que deveria ser resolvido em um tempo médio de três minutos - ou, pelo menos, assim diziam meus professores, há dez anos.
Tratava-se de uma questão de combinação matemática. “Nos livros de Harry Potter, um anagrama de TOM MARVOLO RIDDLE gerou a frase I AM LORD VOLDEMORT”. O estudante, então, deveria descobrir quantos anagramas o protagonista seria capaz de fazer com a frase I AM POTTER, com vogais e consoantes sempre intercaladas. Coisa simples que eu confesso que não tenho a menor ideia de como fazer de bate-pronto.
Lord Voldemort é o vilão da saga, o senhor pálido e careca com nariz de cobra, interpretado pelo irreconhecível Ralph Fiennes. Um bruxo das trevas poderoso que, no começo da saga, o leitor não sabe bem como ele chegou lá - só que matou uma pá de gente, quase destruiu o mundo bruxo e anda meio sumido desde que cometeu uma única falha fatal: não conseguir lançar a maldição da morte sobre o bebê de Lílian Potter, o “menino que sobreviveu”. O resto é história.
A cena em questão pertence ao livro e ao filme “A Câmara Secreta”, o segundo da série, quando o público descobre que Aquele-que-não-deve-ser-nomeado já foi, afinal, um aluno da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Mais do que isso, que era um rapaz bonito, inteligente e estimado pelos professores. Mas, ainda estudante, foi capaz de libertar um monstro preso para dar cabo aos seus ideais racistas. Não, não é interpretação pós-moderna, Riddle/Voldemort era obcecado em subjugar não apenas o mundo humano, mas os bruxos “mestiços”, filhos de pais sem poderes considerados “sangues ruins”.
Foi justamente à alcunha mencionada do Lorde das Trevas - também chamado de Você-sabe-quem - que a questão do Enem me remeteu. Leitores a par da saga devem se lembrar que, desde os primeiros minutos da história, sabe-se que há algo de místico no nome do vilão. Um quê de amaldiçoado. Uma superstição corrente de que à mera menção, o dono do vocativo, ainda que desaparecido, brotaria do chão. A cena em que se vê o nome de Tom Riddle transformar-se em “I am Lord Voldemort” sob o comando da varinha de um moço tão bonito evoca a sensação expressa no rosto de Potter: “Ele era assim!? Como é que virou aquela coisa?”.
Por esta razão, poucas coisas me impressionam tanto na saga quanto a teimosia do professor e diretor Alvo Dumbledore, o “único bruxo a quem Voldemort temeu na vida”, em renegar não apenas o apelido covarde de “Aquele-que-não-deve-ser-nomeado”, mas seu título autoatribuído de “lorde”. “Foi burrice você vir aqui esta noite, Tom”, saúda o professor, diante do reencontro com o vilão no quinto filme da saga.
Lord Voldemort, afinal, é um monstro. Uma ideia. Uma coisa grande e obscura. Uma criatura incompreensível e indomável, impossível de ser derrotada. Tom Riddle é um bruxo talentoso e poderoso que despedaçou a própria alma para fugir da morte. Ou antes: uma criança abandonada pelos pais “trouxas” (humanos), ressentida de sua própria história e capaz de dominar e perverter o curso da vida para não encarar os próprios fantasmas. Repare que nada disso significa que o homem seja um coitado: apenas que tem pontos fracos, é menor do que aparenta. É derrotável. Não à toa, na batalha final, o próprio Harry passa a se referir ao oponente por “Riddle”.
Há um paralelo interessante entre esta reflexão e a geração da maioria dos candidatos à prova do Enem. Em seu brilhante “The Coddling of American Mind”, já exaltado nesta Gazeta do Povo, os psicólogos Jonathan Haidt e Gregg Lukianoff, munidos de fartas evidências empíricas, alertam para uma das mais desastrosas consequências do uso desmedido das redes sociais pelos “genZ” e da demanda crescente por proteção contra “microagressões” (uso de palavras ou gestos potencialmente ofensivos para determinados grupos identitários, ainda que sem má intenção, ou a mera expressão de opiniões contrárias): o aumento exponencial de casos de depressão e ansiedade nos campi.
A verdade é que a coisa descamba em um círculo vicioso: mais redes sociais e menos relações humanas, comprovadamente, geram mais ansiedade e depressão, que geram mais pedidos por proteção e mais isolamento. Mais “bolhas”.
Uma das evidências mais pungentes dessa tendência sem freio é, justamente, a atribuição de novos sentidos às palavras: “opressão” deixa de ser uma forma deliberada de controle abusivo sobre o outro e passa a ser aplicável quando um estudante branco pergunta ao negro se ele sabe onde fica a biblioteca (afinal, ele necessariamente - atenção ao grifo - deve ter tomado o colega por faxineiro), “violência” deixa de ser o uso intencional da força física ou do poder, real ou em forma de ameaça, resultando em danos físicos ou psicológicos constatáveis ou evidentemente potenciais e passa a designar o mero questionamento de pressupostos sacrossantos aos ouvidos do público, ainda que ditos de forma respeitosa e ponderada.
E tudo isso, esclarecem Haidt e Lukianoff, é a antítese da boa prática terapêutica, também sustentada por pesquisas sérias. Em síntese, nenhum bom psicólogo, diante das queixas de caráter catastrófico de um paciente (um sintoma básico da ansiedade e da depressão), diria “você está completamente certo em sentir que pode ser morto a qualquer momento”. A função do terapeuta é ajudar o paciente a investigar cuidadosamente os próprios pensamentos, desconfiar dos próprios sentimentos, e nomear, corretamente, as situações. Não, não é picaretagem de coach quântico nem programação neurolinguística. É terapia cognitivo comportamental.
O resultado dessa somatória já foi amplamente analisado: o esgarçamento das relações pessoais e, consequentemente, da vida na pólis (ou, política), onde monstros grotescos são combatidos a torto e a direito porque maleficamente se escondem sob cada “eu discordo”. Andam por aí como leais seguidores do Lorde das Trevas, os Comensais da Morte, escondidos no mundo bruxo de bem, embora marcados com o sinal da besta que lhes une. E ela está por toda parte.
O nos traz de volta à reflexão sobre Harry Potter e Tom Riddle. É claro que é importante combater também, por assim dizer, todo o “conjunto” Lord Voldemort: tudo o que o bruxo das trevas e seus asseclas representam em termos de corrupção, busca por um ideal de pureza, pela criação de uma ordem totalitária e desprezo pela vida. Assim como combatemos a violência, o preconceito, o totalitarismo, o racismo e tantos outros ismos feios, reais e relevantes.
Mas, para que inocentes não sejam ferido no meio da batalha e os combatentes consigam alcançar algum progresso em campo (inclusive ao dar novas chances aos que se arrependem das falhas, como ocorre com Narcisa e Draco Malfoy), é essencial não tratar qualquer aspirante a Tom Riddle como Lorde Voldemort, sob o risco de incorrer nas falhas mencionadas por se amplificar o terror diante da coisa em si.
Por este prisma, falar em “Você-sabe-quem” é quase como dizer que “tudo está errado no mundo” e, portanto, afirmar que toda ação está fadada ao fracasso diante de um inimigo invisível e não-identificável. Chamá-lo de Lord Voldemort - os “ismos” problemáticos, do racismo ao machismo, do comunismo ao individualismo - não é incorreto e ajuda bastante. Entender quem é Tom Riddle - as nuances, as fraquezas, a humanidade ou, ainda, o “Comensal da Morte” adormecido em todos nós - é tarefa de fortes.
Que tal, por exemplo, ousar questionar se algumas das “microagressões” não são uma cara amarrada ao final de um dia ruim, uma falha de comunicação, um orgulho ferido ou uma pessoa antipática por natureza? E se alguns preconceitos, tanto de conservadores quanto de progressistas, escondessem inseguranças (como também comprovadamente o fazem) e bons ambientes de conversa fossem mais eficientes do que o exorcismo constante da alma alheia?
Da vida pessoal à esfera pública, contra inimigos específicos, corretamente nomeados, é mais fácil encontrar o feitiço correto. Para isso, vale lembrar da máxima do sábio professor, ensinada ao jovem bruxo que, em breve, derrotaria o Lorde das Trevas depois de tratá-lo pelo nome que continha todas as suas contradições: “Palavras são, na minha não-tão-humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia”.
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