Mais do que a análise sob o olhar esportivo, as Olimpíadas de Inverno em PyeongChang, na Coreia do Sul, trazem também uma perspectiva diplomática; a participação da Coreia do Norte levantou hipóteses sobre uma possível abertura política. O ponto central são demonstrações, ainda que ingênuas, de aproximação: as delegações apareceram na cerimônia de abertura com uma bandeira de unificação – um mapa da Península da Coreia sobre um fundo branco.
O fato é que ter atletas coreanos marchando sob uma mesma bandeira e competindo lado a lado vai além do objetivo prático e imediato de garantir que os jogos não seriam interrompidos por um ato hostil norte-coreano – vale lembrar que, meses antes dos Jogos Olímpicos de Seul, ainda em 1987, norte-coreanos explodiram um avião sul-coreano com mais de 100 passageiros a bordo.
Também está longe de ser uma mera oportunidade para que se encontre uma solução para a crescente crise do programa de armas nucleares de Kim Jong-Un. A aproximação demonstra que, ao menos por três semanas, coreanos tiveram alguma forma de controle sobre uma crise que, embora não tenham criado, são personagens centrais.
História
A atual configuração geográfica das Coreias foi definida em agosto de 1945 por dois coronéis do exército americano: era preciso ceder o Norte à antiga União Soviética e o Sul aos Estados Unidos, como contrapartida a rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial.
O objetivo norte-americano era claro: soviéticos não dominariam a península, até então unificada, mas comandada por japoneses desde 1905, sem que antes os EUA pudessem estabelecer uma posição estratégica na Ásia. O critério também era simples: Seul precisava ficar sob sua jurisdição. Então se dividiu o país praticamente ao meio, próximo ao Paralelo 38.
Nunca houve qualquer fronteira física, como uma cordilheira ou mesmo um rio: o que divide hoje uma das regiões mais tensas do planeta é uma linha imaginária. De qualquer forma, a divisão era encarada como uma solução temporária, uma espécie de tutela entre a URSS e os EUA, que gradualmente seria substituída por uma Coreia unificada assim que as tensões pós-conflito fossem completamente dissipadas.
Mas isso não aconteceu, e coreanos apenas assistiram japoneses serem substituídos por soviéticos e americanos no comando de sua nação.
Diplomacia esportiva
O esporte como catalisador da conciliação sempre foi um ideal mais utópico do que real; se por um lado tendências nacionalistas podem ganhar ainda mais força em competições esportivas, ao menos nas Olimpíadas as competições prezam por regras e pelo pacifismo – vide o caso da delegação russa, banida de PyeongChang graças a um escândalo de doping que envolveu até o governo do país.
E mesmo que enxerguemos atletas caminhando lado a lado e o discurso pré-fabricado repita que é possível “viver em paz e harmonia”, a história nos mostra que aqueles que detêm o poder não agem da mesma maneira: Hitler recuou apenas momentaneamente em seus planos durantes as Olimpíadas de Berlim (1936), para poucos meses depois iniciar a Segunda Guerra. Já Putin mal esperou a última delegação deixar os Jogos de Inverno de Sochi, em 2014, para intervir na Ucrânia.
Há ainda um grande atentado, com inegável cunho político: o massacre em Munique (1972), quando o grupo terrorista Setembro Negro assassinou 11 integrantes da delegação israelense. Em Atlanta (1996), o Parque Olímpico também foi alvo de um atentado.
Claro, hoje há todo um novo simbolismo, potencializado pelos atos da cerimônia de abertura em PyeongChang, quando o presidente sul-coreano Moon Jae-in apertou as mãos de Kim Yong Nam, chefe de estado da Coreia do Norte, e de Kim Yo Jong, irmã de Kim Jong-Un e primeiro membro da dinastia Kim a visitar a Coreia do Sul.
Mas já vimos atos simbólicos como esse em diversos momentos da história recente: a primeira vez que as Coreias desfilaram juntas foi há 18 anos, nas Olimpíadas de Sidney. A situaão se repetiu nos Jogos de Inverno de Turim, em 2006, e oito meses depois o Norte testaria sua primeira arma nuclear. Já nos Jogos Asiáticos de 2014, Sul e Norte novamente caminharam lado a lado; poucos dias após o fim da competição, Sul e Norte trocariam tiros no Paralelo 38.
A perspectiva do Sul
Mesmo que levantamentos indiquem que a maioria dos sul-coreanos apoia a participação de seus vizinhos em Pyeongchang, a decisão de reunir todos sob uma mesma bandeira, mesclar a equipe de hóquei no gelo feminino e se juntar ao COI (Comitê Olímpico Internacional) no rateio das despesas da delegação norte-coreana tem encontrado resistência – grupos de oposição ao presidente Moon ironizaram as situações, classificando os Jogos como “Olimpíadas de Pyongyang", em uma referência à capital da Coreia do Norte.
“Algumas pessoas tem muita esperança de que isso será um passo para maior envolvimento e diálogo entre Estados Unidos, Sul e Norte. Mas há uma boa parte da população um pouco decepcionada com a participação da Coreia do Norte nas Olimpíadas”, ponderou J. James Kim, associado de pesquisa no Asian Institute for Policy Studies, em discussão com especialistas da área para o Woodrow Wilson International Center for Scholars.
A população não é a única a apontar pontos negativos na presença da Coreia do Norte em seu território; especialistas afirmam que permitir a Coreia do Norte nas Olimpíadas foi um relaxamento da postura histórica do evento de impedir a participação de regimes que cometem violações aos direitos humanos.
“A África do Sul, na época do Apartheid, foi barrada das Olimpíadas sob a justificativa de que nações que infligem grandes violações dos direitos humanos não merecem participar de um evento internacional que celebra a excelência humana. A Coreia do Norte merecia o mesmo tratamento”, escreveu Olivia Enos, pesquisadora no Asian Studies Center da Heritage Foundation.
Marcos
Um dos marcos do evento foi o time de hóquei feminino formado por atletas da Coreia do Sul e Coreia do Norte e seu “hino nacional”: a canção popular coreana “Arirang”. Com 35 jogadoras vindas do Norte e do Sul, o time enfrentou contratempos até mesmo na comunicação cotidiana: um dicionário foi escrito para ajudar nas dificuldades linguísticas entre atletas dos dois países.
Apesar do gesto de união entre as Coreias, a equipe unificada não teve o mesmo peso para os dois países. Para a Coreia do Norte, a participação nas Olimpíadas juntamente com seus vizinhos do sul pode representar uma reaproximação. Para a Coreia do Sul, o time unificado foi visto por parte da opinião pública como um desrespeito às atletas – 12 delas deixaram de participar da competição para ceder lugar às norte-coreanas.
Setores da sociedade sul-coreana, porém, argumentaram que eram necessárias medidas efetivas, e elas precisavam partir de um dos lados. “Não se trata de entregar as Olimpíadas para o Norte: é um esforço crucial para sustentar conversas sobre desnuclearização mesmo após os Jogos”, escreveu o jornal Hankyoreh em um editorial.
“Para o presidente Moon Jae-in, que vem incentivando melhores relações com o Norte, é um grande sucesso a presença do Norte, marchar sob a bandeira unificada e atenuar qualquer potencial provocação que poderia acontecer durante o evento. Mas em termos de aplicar pressão máxima e fazer com que o Norte se desnuclearize, é apenas um pequeno ponto no radar”, diz Jung Pak, especialista em questões de segurança e política no Leste Asiático e associada de pesquisa no Center for East Asia Policy Studies da Brookings Institution.
Relações internacionais
Na Coreia do Sul, grupos políticos temem que a parceria estabelecida nos Jogos seja um pequeno primeiro passo para uma possível parceria militar com o país que se recusa a abrir mão de seu poder nuclear.
Além disso, a desconfiança do governo Trump em relação à Coreia do Norte prejudicaria relações diplomáticas com o Sul em um cenário de reaproximação entre as Coreias: a possibilidade de diálogo aberta pelo presidente Moon Jae-in, se opõe à política do governo Trump em relação à Coreia do Norte.
Por isso, o canal de comunicação entre as Coreias já começa a dar sinais de um desgaste na relação entre o Sul e os EUA. Para Josh Rogin, colunista do Washington Post, que viajou com o vice-presidente americano, Mike Pence em sua visita ao Japão no começo de fevereiro, há dissonância entre EUA e Coreia do Sul.
“Pence disse que o governo Trump quer que a melhoria de relações com a Coreia do Norte acabe quando a tocha olímpica for apagada. ‘Também reafirmamos o nosso compromisso de, quando as Olimpíadas forem uma memória distante, continuar a isolar a Coreia do Norte econômica e diplomaticamente’, disse Pence. É a mensagem que Pence vem repetindo em todas as paradas de sua viagem pela Ásia: o governo Trump não apoia uma mudança diplomática nesse momento”, escreveu Rogin na época.
O caminho do diálogo
A possibilidade de diálogo é reforçada pela Coreia do Sul, que aceitou visitar o Norte após as Olimpíadas. De acordo com Kim Eui-kyeom, porta-voz do governo sul coreano, o presidente Moon espera que os dois países negociem as condições para uma reunião diplomática. Segundo ele, as duas Coreias entendem que devem manter o clima positivo dos jogos olímpicos para paz e reconhecimento.
“Acredito que as coisas continuarão calmas na península ao menos até o final de março. Em grande parte porque depois das Olimpíadas teremos as Paraolimpíadas. Vamos ver se as coisas se agitam novamente com o fim do exercício conjunto, em abril. A chave será se Washington decidirá participar de diálogos com a Coreia do Norte sem impor condições”, analisa J. James Kim, especialista do Asian Institute for Policy Studies.
Há um jogo de interesses no quebra-cabeça geopolítico envolvendo as Coreias difícil de ser equacionado: americanos precisam parar o programa nuclear norte-coreano, não porque tem algum apreço pelo Sul, mas porque Kim Jong-Un, em um delírio particular, parece cada vez mais próximo de construir mísseis que um dia podem alcançar os Estados Unidos.
Russos desejam que tudo permaneça como está, afinal, hoje os EUA tem uma espécie de contraponto na Ásia com quem precisam se preocupar 24 horas por dia. Já a China teme que um colapso no país leve milhões de refugiados para suas fronteiras, armas nucleares perambulem sem dono pela Ásia e, claro, a simples ideia de tropas norte-americanas nas proximidades dos rios Yalu e Tumen não é animadora – muitos analistas, aliás, interpretam que as ameaças de Trump de intervir militarmente são um recado mais para os chineses do que para Kim Jong-Un.
Para a última grande peça, a própria Coreia do Sul, a conta bilionária de uma reunificação, que implicaria na reintegração de 23 milhões de pessoas que cresceram sem contato algum com o sistema capitalista, é assustadora: é um problema que, embora saibam que um dia baterá a sua porta, a melhor alternativa, no momento, é ignorar.
Legado olímpico
Após a cerimônia de encerramento em Pyeongchang, na hipótese otimista, a comunicação mais direta entre as Coreias seria uma forma de influenciar o Norte a cessar seus testes militares e colocar fim à ameaça de guerra. Mas, de acordo com o histórico de negociações diplomáticas de Kim Jong-Un, nem mesmo essa mudança poderá ser creditada aos Jogos Olímpicos.
“Os norte coreanos são negociadores difíceis e astutos. A probabilidade de eles se deixarem levar pelos sentimentos positivos das Olimpíadas e fazerem uma concessão dramática é quase zero”, diz Robert E. Kelly, analista e professor de Ciência Política na Universidade Nacional de Busan.
Para Kelly, a relação entre as Coreias voltará ao que era antes dos Jogos ao primeiro sinal de exercícios militares do Sul com os EUA e ameaças de testes nucleares do Norte: “Claro, sempre devemos tentar diálogo com a Coreia do Norte, mas ninguém está mais se iludindo: as Olimpíadas não mudarão nada além da atmosfera – e por pouco tempo”.
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