Um dos expoentes da chamada Escola Austríaca de pensamento econômico e vencedor do Nobel de Economia em 1974, Friedrich Hayek (1899-1992) deixou uma produção intelectual marcada pela defesa de uma sociedade liberal. Em 'Direito, Legislação e Liberdade', publicado originalmente na década de 1970 e lançado no Brasil pelo selo Avis Rara em 2023, ele analisa, entre outros temas, a ideia de "justiça social". No texto abaixo, retirado do segundo volume da obra, Hayek questiona esse conceito e conclui que a luta por ele pode levar à destruição dos valores morais e, principalmente, da liberdade individual.
A justiça “social” (ou, às vezes, justiça “econômica”) passou a ser considerada um atributo que as “ações” da sociedade, ou o “tratamento” dos indivíduos e dos grupos pela sociedade, deveriam possuir.
Como o pensamento primitivo costuma fazer ao perceber pela primeira vez algum processo regular, os resultados da ordenação espontânea do mercado foram interpretados como se algum pensamento os dirigisse deliberadamente, ou como se os benefícios ou os danos específicos que diferentes pessoas derivaram deles fossem determinados por atos deliberados de vontade, podendo, portanto, ser orientados por normas morais.
Assim, essa concepção de justiça “social” é consequência direta desse antropomorfismo ou personificação pelo qual o pensamento ingênuo procura explicar todos os processos auto-ordenadores. É um sinal de imaturidade das nossas mentes o fato de que ainda não superamos esses conceitos primitivos e ainda exigimos que um processo impessoal que produz uma maior satisfação dos desejos humanos do que qualquer organização humana deliberada poderia produzir se adapte aos preceitos morais desenvolvidos pelos homens para a orientação das suas ações individuais.
Nesse sentido, o uso da expressão “justiça social” é relativamente recente, aparentemente com não muito mais do que cem anos. Outrora o termo fora utilizado de vez em quando para designar as iniciativas organizadas de aplicação das normas de conduta justa, e até hoje é ocasionalmente empregado em discussões eruditas para avaliar os efeitos das instituições sociais existentes.
Porém, o sentido em que agora costuma ser usado e constantemente recorrido no debate público, e em que será examinado aqui, é basicamente o mesmo em que, por muito tempo, a expressão “justiça distributiva” foi empregada. Com esse sentido, a expressão parece ter se tornado de uso corrente na época em que (e talvez em parte porque) John Stuart Mill [filósofo e economista britânico do século XIX] tratou explicitamente as duas expressões como equivalentes em afirmações como esta:
A sociedade deve tratar igualmente bem todos os que mereceram o mesmo, ou seja, aqueles que mereceram de maneira absolutamente igual. Esse é o padrão abstrato mais elevado de justiça social e distributiva — para o qual todas as instituições e as iniciativas de todos os cidadãos virtuosos devem ser feitas para convergir em grau máximo
Ou esta:
É universalmente considerado justo que cada pessoa obtenha o que merece (seja bem ou mal); e injusto que obtenha um bem ou seja submetida a um mal que não merece. Essa é talvez a forma mais clara e enfática em que a justiça é concebida pelo juízo geral. Como envolve a ideia de merecimento, surge a questão do que constitui o merecimento.
É significativo que a primeira dessas duas passagens ocorra na descrição de um dos cinco significados de justiça que Mill distingue, dos quais quatro se referem a normas de conduta individual justa, enquanto este define um estado factual de coisas que pode ter sido causado por decisão humana deliberada, mas não necessariamente.
Todavia, Mill parece ter ignorado que, neste significado, a palavra “justiça” se refere a situações inteiramente diferentes daquelas a que se aplicam os outros quatro significados, ou que essa concepção de “justiça social” leva diretamente ao socialismo pleno.
Essas afirmações que relacionam explicitamente a “justiça social e distributiva” com o “tratamento” oferecido pela sociedade aos indivíduos conforme os seus “merecimentos” revelam com bastante clareza a sua diferença da justiça pura e simples e, ao mesmo tempo, a causa da vacuidade do conceito: a demanda por “justiça social” é dirigida não ao indivíduo, mas à sociedade — no entanto, a sociedade, no sentido estrito em que deve ser distinguida do aparelho governamental, é incapaz de agir em busca de um propósito específico e, portanto, a demanda por “justiça social” torna-se uma demanda de que os membros da sociedade se organizem de modo a permitir a destinação de frações específicas do produto da sociedade aos diferentes indivíduos ou grupos.
Sendo assim, a questão principal passa a ser saber se existe um dever moral de se submeter a um poder capaz de coordenar as iniciativas dos membros da sociedade com o objetivo de alcançar um determinado padrão de distribuição considerado justo.
Se a existência desse poder é ponto pacífico, o problema de como os recursos disponíveis para a satisfação das necessidades devem ser repartidos se converte, de fato, numa questão de justiça — embora não uma questão para a qual a moral vigente tem uma resposta. Mesmo a suposição da qual a maioria dos teóricos modernos da “justiça social” parte, especificamente, a de que exigiria frações iguais para todos desde que considerações especiais não requeressem um afastamento desse princípio, pareceria então se justificar.
Porém, a questão prévia consiste em saber se é moral que os homens sejam submetidos aos poderes de direção que teriam que ser exercidos para que os benefícios obtidos pelos indivíduos pudessem ser significativamente definidos como justos ou injustos.
É claro que se deve reconhecer que o modo pelo qual os benefícios e os ônus são distribuídos pelo mecanismo de mercado deveriam, em muitos casos, ser considerados muito injustos se fossem o resultado de uma alocação deliberada a determinadas pessoas. Mas este não é o caso.
Essas frações são o resultado de um processo cujo efeito sobre determinadas pessoas não foi pretendido nem previsto por ninguém quando as instituições surgiram — instituições que foram então autorizadas a continuar existindo porque se constatou que melhoravam para todos ou para a maioria as perspectivas de satisfação das suas necessidades.
Sem dúvida, exigir justiça desse processo é absurdo, e selecionar alguns indivíduos em tal sociedade como merecedores de uma fração específica é evidentemente injusto.
A conquista da imaginação pública pela “justiça social”
No entanto, hoje, o apelo à “justiça social” passou a ser o argumento mais amplamente usado e o mais eficaz no debate político. Quase todas as reivindicações de ações governamentais em prol de determinados grupos são promovidas em seu nome, e se for possível parecer que certa medida é exigida pela “justiça social”, a oposição a ela rapidamente perderá força.
Pode-se contestar se determinada medida é ou não exigida pela “justiça social”. Porém, que esse seja o padrão que deve orientar a ação política e que a expressão tenha um significado definido quase nunca é questionado. Em consequência, provavelmente não há hoje movimentos ou pessoas políticas que não apelem prontamente à “justiça social” em apoio a medidas específicas que defendem.
Tampouco se pode negar que a demanda por “justiça social” já transformou em grande medida a ordem social e continua a transformá-la numa direção jamais prevista por aqueles que a requereram. Ainda que a expressão tenha, sem dúvida, ajudado vez ou outra a tornar o direito mais igual para todos, continua a ser duvidoso que a demanda por justiça na partilha tenha, de algum modo, tornado a sociedade mais justa ou reduzido a insatisfação.
Sem dúvida, a expressão definiu desde o início as aspirações que estavam no cerne do socialismo. Embora o socialismo clássico tenha sido em geral caracterizado pela exigência de socialização dos meios de produção, isso era, para ele, sobretudo um meio considerado essencial para promover uma distribuição “justa” da riqueza; e como os socialistas descobriram posteriormente que essa redistribuição poderia ser viabilizada, em grande medida e com menor resistência, por meio da tributação (e de serviços governamentais financiados por ela), e, na prática, muitas vezes puseram de lado as suas exigências anteriores, a realização da “justiça social” se tornou a sua principal promessa.
De fato, pode-se dizer que a principal diferença entre a ordem de sociedade que o liberalismo clássico visava e o tipo de sociedade em que ela está se transformando agora é que a primeira era regida por princípios de conduta individual justa, ao passo que a nova sociedade tem como objetivo satisfazer as demandas por “justiça social” — ou, em outras palavras, que a primeira exigia ação justa dos indivíduos, enquanto a segunda atribui cada vez mais o dever da justiça às autoridades com poder de ordenar às pessoas o que fazer.
A expressão pode exercer esse efeito porque foi arrebatada aos poucos aos socialistas não só por todos os outros movimentos políticos, mas também pela maioria dos professores e pregadores da moral. Parece, em particular, ter sido adotada por amplo setor do clero de todas as denominações cristãs, as quais, à medida que perdiam cada vez mais a fé numa revelação sobrenatural, pareciam buscar refúgio e consolo numa nova religião “social” que substituía uma promessa de justiça celestial por uma temporal, esperando poder assim continuar se esforçando para fazer o bem.
A Igreja Católica Romana, sobretudo, fez do objetivo da “justiça social” parte da sua doutrina oficial; mas os ministros da maioria das denominações cristãs parecem competir entre si com essas ofertas de objetivos mais mundanos — que também aparentam fornecer o principal fundamento para iniciativas ecumênicas renovadas.
É claro que os diversos governos autoritários ou ditatoriais atuais do mesmo modo proclamaram a “justiça social” como o seu objetivo principal. Soubemos por meio do sr. Andrei Sakharov [cientista russo que venceu o Nobel da Paz em 1975 por sua defesa dos direitos humanos e de reformas civis na URSS] que milhões de pessoas na Rússia são vítimas de um terror que “procura se ocultar por trás do slogan de justiça social”.
Na prática, o compromisso com a “justiça social” passou a ser a principal válvula de escape em relação à emoção moral, o atributo distintivo do homem bom e o sinal reconhecido da posse de uma consciência moral.
Embora as pessoas possam ocasionalmente ficar confusas ao dizer quais das reivindicações conflitantes apresentadas em nome desse slogan são válidas, praticamente ninguém duvida de que a expressão tem um significado definido, designa um ideal elevado e aponta para graves deficiências da ordem social existente que exige urgentemente correção.
Ainda que até há pouco se tenha procurado em vão na vasta literatura uma definição inteligível do termo, parece quase não existir dúvida, tanto entre pessoas comuns como instruídas, que a expressão possui um sentido preciso e bem compreendido.
Porém, a aceitação quase universal de uma crença não prova que seja válida ou mesmo significativa, assim como a crença generalizada em bruxas ou fantasmas também não prova a validade desses conceitos.
Aquilo que temos que encarar no caso da “justiça social” é simplesmente uma superstição quase religiosa do tipo que deveríamos respeitosamente deixar em paz na medida em que apenas torna felizes aqueles que nela creem, mas que devemos combater quando se converte em pretexto para a coerção de outras pessoas. E, provavelmente, a crença vigente na “justiça social” é, na atualidade, a ameaça mais grave à maioria dos outros valores de uma civilização livre.
Quer Edward Gibbon [historiador britânico e um dos maiores estudiosos da Antiguidade] estivesse errado ou não, é indubitável que as crenças morais ou religiosas podem destruir a civilização e que, quando tais doutrinas prevalecem, não só as crenças mais estimadas como também os líderes morais mais reverenciados — às vezes figuras virtuosas, cujo altruísmo é inquestionável — podem se tornar graves riscos aos valores que essas mesmas pessoas consideram inabaláveis.
Contra essa ameaça só podemos nos proteger submetendo até os nossos sonhos mais preciosos de um mundo melhor a uma dissecação racional implacável.
Parece ser amplamente aceita a ideia de que a “justiça social” é apenas um novo valor moral que devemos acrescentar aos que foram reconhecidos no passado, e que pode ser inserido na estrutura existente de normas morais.
O que não é suficientemente reconhecido é que, para dar significado a essa expressão, terá que ser efetuada uma mudança completa de todo o caráter da ordem social, e que alguns dos valores que costumavam regê-la precisarão ser sacrificados. É essa transformação da sociedade em um tipo fundamentalmente diferente que está ocorrendo agora pouco a pouco e sem consciência do resultado a que deve levar.
Foi na convicção de que algo como a “justiça social” poderia com isso ser alcançado que as pessoas colocaram nas mãos do governo poderes que ele não pode agora se recusar a empregar para satisfazer as reivindicações do número sempre crescente de grupos de pressão que aprenderam a empregar o “abre-te, sésamo” da “justiça social”.
Acredito que a “justiça social” acabará por ser reconhecida como uma quimera que levou os homens a abandonarem muitos valores que, no passado, inspiraram o desenvolvimento da civilização — uma tentativa de satisfazer um desejo herdado das tradições do pequeno grupo, mas que não tem sentido na Grande Sociedade de homens livres.
Infelizmente, esse vago desejo, que se tornou um dos vínculos mais fortes que incitam as pessoas de boa vontade à ação, não só está fadado ao desapontamento. Isso já seria bastante lamentável.
Porém, como a maioria das tentativas de perseguir um objetivo inatingível, a luta por ele também produzirá consequências extremamente indesejáveis e, em particular, levará à destruição do ambiente indispensável em que os valores morais tradicionais podem florescer, especificamente, a liberdade pessoal.
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