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“Heroica e nacional – ou nada”: a agenda abandonada do Bicentenário da Independência

Promover a identidade enquanto povo é um importante instrumento para estimular um necessário ímpeto de restauração nacional depois de tanta devastação. (Foto: Wikipedia)

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Pouco importa o lado que se tome em relação ao conflito ora em curso no Leste Europeu: a soberania nacional aparece como um tema subjacente a todos os envolvidos. A Rússia acusa a Ucrânia de entregar sua soberania à Otan e, consequentemente, ameaçar sua própria. E a Ucrânia apela para sua soberania em decidir o seu próprio destino, independentemente da opinião de seus vizinhos.

Do mesmo modo, era também um debate sobre soberania que se encontrava subjacente enquanto os países se defrontavam com pressões de toda sorte para aderir a políticas de contenção da pandemia ditadas por burocratas da Organização Mundial da Saúde (OMS), sem qualquer embasamento científico e com consequências desastrosas para as economias nacionais.

A soberania voltou como tema fundamental da política moderna. Mas o que muita gente não sabe é que ela tem a ver não só com o poder das armas. Soberania se liga umbilicalmente ao modo como o Estado lida com a cultura. Essa é uma verdade que deve cobrar um alto custo para o Brasil, com o abandono de uma agenda estratégica para o país no presente momento: as comemorações do Bicentenário da Independência.

O que é soberania?

Em sentido lato, o conceito político-jurídico de soberania indica o poder de mando em última instância numa sociedade política. Assim, ele também demarca a diferença entre essa e todas as demais associações humanas em cuja organização não se encontra esse poder supremo, exclusivo e não derivado.

O conceito está, pois, intimamente ligado ao de poder político: de fato a soberania pretende ser a racionalização jurídica do Poder, no sentido da transformação da força em poder legítimo. A elaboração desse conceito foi essencial para que o Estado moderno pudesse se impor à organização medieval do poder. Nesta, o direito que a regulava se originava de diferentes fontes (costume, vontade da casa guerreira, tradição doutrinária etc.), organizando-se em vários ordenamentos jurídicos autônomos, seja acima do reino, como a Igreja e o Império, seja abaixo, como os feudos, as comunas e as corporações.

Assim, as monarquias absolutas do início da modernidade se formaram por meio de um duplo processo de unificação. De um lado, a unificação de todas as fontes de produção jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano. De outro, a unificação de todos os ordenamentos jurídicos superiores e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja expressão máxima é a vontade do Príncipe.

Essa operação progressiva foi resultado da concentração, sobretudo, de recursos militares e financeiros nas mãos dos governantes. Afinal, a soberania é fruto, primordialmente, da capacidade que um Estado tem de impor ordem interna e garantir a segurança externa do seu território. Quem não consegue se fazer obedecer num território, nem garantir sua integridade frente à vontade dos estrangeiros, não tem soberania na prática.

Para além das armas, a cultura

Mas a soberania nunca deriva somente da força. Ela resulta de um processo complexo de construção de sua própria legitimidade, por meio da consolidação de identidades nacionais. Na medida em que o Estado determina seu poder sobre um território, ele precisa forjar, reforçar e proteger aquilo que garante a lealdade mútua dos cidadãos. Isso inclui uma língua comum, valores, regras de convivência, tradições, religião, festas populares, etc.

Ao proteger e não raro instituir a identidade coletiva entre pessoas substantivamente diferentes, os Estados nacionais conseguiram fomentar a confiança, os laços de amizade e as bases para a lealdade de seus cidadãos. Sem isso, a comunidade espiritual que garante a união entre pessoas que não se conhecem em territórios extensos inevitavelmente se esgarçaria e surgiriam ameaças à ordem interna a todo momento, na falta da disposição comum ao sacrifício necessária para a defesa da pátria contra inimigos externos.

Não é à toa que o estabelecimento dos Estados nacionais no mundo sempre veio acompanhado de operações unificadoras no campo da cultura. A Academia Francesa, por exemplo, foi criada por Richelieu em 1634, sob o reinado de Luís XIII. Ela tinha como objetivo regulamentar o uso, o vocabulário e a gramática francesas, sendo formada por notáveis do mundo francófono que se reuniam para debates literários, funcionando também como salvaguarda da cultura.

Outras instituições públicas, como bibliotecas, museus e teatros foram patrocinados pelo Estado, levando em conta também esses importantes fins. O Museu do Louvre, por exemplo, foi fundado durante a Revolução Francesa, sendo o primeiro estabelecimento público deste tipo no mundo moderno. Ele foi primeiramente utilizado como um instrumento de educação das massas, que eram guiadas através do desenvolvimento das artes desde o Antigo Egito, passando pela Grécia, Roma e Renascença Italiana. No cume de tudo isso, a pintura acadêmica francesa, a forma promovida pela Academia Real e seus Salões (exposições) oficiais. Esse trajeto era descrito mesmo como um “ritual da cidadania”, traçando uma hierarquia na qual a França era apresentada, para orgulho de seu povo, como a herdeira legítima de todas essas tradições, o ápice do progresso e da civilização ocidental.

A soberania como construção do Estado Brasileiro

No Brasil, esse processo foi ainda mais dependente do Estado. Enquanto uma antiga colônia que se dissociou do reino de Portugal sem uma grande guerra pela independência, com milhares de escravos e uma população livre dispersa por um vasto território, o país impunha um desafio enorme para elites nacionais, que tiveram de fabricar uma identidade quase sem a contribuição de um povo.

Esse desafio incluiu um esforço de deslocar o centro de atenção para longe da ideia de um “Brasil Paisagem”, uma terra exótica que só servia para material de cronistas e pintores estrangeiros, para a de um locus autônomo, de experiência humana autêntica e vibrante, transformando os brasileiros nos sujeitos de sua própria história.

Por isso, antes que Gonçalves Magalhães publicasse os seus “Suspiros Poéticos”,em 1836, e José de Alencar iniciasse a série de romances nacionalistas com a publicação de “O Guarani”, em 1857, o Estado imperial já fazia sua parte na construção desse projeto ambicioso, com a criação de instituições como a Biblioteca Nacional, em 1810, o Colégio Pedro II, em 1837, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, em 1838.

Este último, por sinal, já em 1839 começou a patrocinar a publicação de uma revista por meio da qual os leitores foram apresentados a biografias de compatriotas célebres, crônicas de episódios importantes da história brasileiras, mapas de regiões quase desconhecidas do país e relatos sobre populações nativas sobreviventes, entre outros elementos que serviam para compor na mente do público uma identidade nacional.

Em 1840, o mesmo IHGB lançou um concurso que premiaria o estudioso que apresentasse o melhor plano para escrever a história do Brasil. O naturalista alemão Karl Friedrich von Martius foi o vencedor, colocando a história da nação como uma aventura épica, realização da "perfeição das três raças humanas que se encontram lado a lado neste país de uma forma desconhecida na História antiga". Nascia, assim, a ideia da miscigenação como um dos grandes elementos fundantes da identidade nacional e que inspiraria obras de escritores como José de Alencar e Gilberto Freyre.

Essa chave para a originalidade do Brasil seria mais tarde explorada politicamente por Getúlio Vargas, outro governante que teve a inteligência de usar o Estado para fortalecer laços nacionais e até mesmo criar tradições patrióticas numa época de conflitos internacionais, em que era necessário modernizar e ao mesmo tempo defender o Estado num imenso esforço coletivo.

Foi pensando nisso que o governo Vargas instituiu a obrigatoriedade da educação física, em 1930, e do Hino Nacional nas escolas públicas brasileiras em 1936. Isso para não falar da criação do Serviço Nacional de Teatro e do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Ou do projeto de educação musical conduzido pelo maestro Villa-Lobos nas escolas brasileiras, de 1932 a 1945. O projeto buscava promover a disciplina e educar as crianças nos aspectos da formação cultural brasileira por meio da música.

A data mais importante da década

Investir em cultura, pois, importa e muito quando o assunto é soberania nacional. Isso torna quase autoevidente a comemoração de datas históricas para o nascimento de um povo. E nenhuma é mais importante que a Independência. Ela é o momento fundador de um país que se desvencilhou de outro território em algum momento de sua história. Ao comemorá-la, a nação celebra aquilo que ela é, aquilo que ela foi e aquilo que pretende ser. É a afirmação repetida, para dentro e para fora de suas fronteiras, de que o poder soberano daquela nação existe, expressando algo mais do que o domínio militar sob um vasto território; expressando o caráter de um povo.

É por isso que todas as grandes nações do mundo celebram sua independência. Nos Estados Unidos, por exemplo, o 4 de julho é sempre um marco festivo. Não só o governo federal investe recursos na festa, como também prefeituras e particulares de todo o país se engajam na celebração das festividades. O mesmo acontece com os chineses no dia 1º de outubro, fundação da República Popular da China, que conta com festejos não somente no país, mas em todas as nações onde há uma comunidade chinesa relevante para o governo de Pequim.

É claro que nenhuma comemoração é igual à outra. Cem anos é um marco. Duzentos anos, um atestado de antiguidade e tradição. Por isso, países vizinhos ao nosso demonstraram sabedoria política no aproveitamento dessas datas simbólicas. No Chile, por exemplo, as comemorações do Bicentenário da Independência, em 2010, entraram para a história como um marco do bom momento da sociedade chilena de então. Entre os atos, eventos, exposições, obras e festas organizadas para celebrar a data, merecem destaques a inauguração dos edifícios Titanium de la Portada e Gran Torre de Santiago, símbolos da arquitetura e construção civil nacional, a construção de uma praia artificial em Antofagasta, a doação de 1.000 bibliotecas para escolas e universidades do país por parte da Cámara Chilena de la Construcción, da Pontificia Universidad Católica, e da Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos, além de diversas exposições, óperas, shows, eventos, e publicações que agitaram o país. Com igual pompa e circunstância, o bicentenário tem sido celebrado em nações menos ricas, como o Equador, em 2009, e a Argentina, em 2016.

Em 1922, o Brasil mostrou seu orgulho nacional para o mundo quando da comemoração do seu Centenário da Independência. Naquela ocasião, o evento se destacou entre outros acontecimentos históricos relevantes, como a Semana de Arte Moderna, a fundação do Centro Dom Vital, a criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Revolta do Forte de Copacabana.

Anos antes da data, em 1916, a fundação da “Revista do Brasil” já marcava um clamor em torno da importância do “primeiro marco glorioso da existência nacional”. Sob o governo de Epitácio Pessoa, o Estado brasileiro não fez feio. As celebrações do Centenário, que transcorreram com particular intensidade em todo mês de setembro, incluíram uma grande exposição universal do tipo “vitrine do progresso” que atraiu quase três milhões de pessoas. O evento causou impacto no turismo, na infraestrutura urbana, na difusão de valores nacionais e na afirmação do prestígio de uma pátria jovem e pujante. As obras para preparação da exposição mobilizaram a população carioca e sua realização se tornou um marco histórico e cultural do Brasil.

E para o Bicentenário?

Infelizmente, cem anos depois desse evento marcante, a sensação é a de que há certo abandono em torno da agenda. Até agora, o Governo Federal tem apresentado pouco ou quase nada sobre o tema. É verdade que algumas ações pontuais importantes têm sido desenvolvidas por alguns órgãos da administração. A Biblioteca Nacional, por exemplo, tem projetos em curso de editoração, curadoria e pesquisa que incluem uma coleção em 6 volumes intitulada “Fundadores do Brasil” e a criação de um Portal Digital do Bicentenário. O mesmo pode ser dito da Funag e outras autarquias. Mas chama atenção o fato de que, até o presente momento, o Governo Federal não tenha apresentado uma agenda pública integrada em relação às comemorações.

Ao contrário do que muita gente pode supor, não é cedo para fazer tal cobrança – muito pelo contrário! Não é só que eventos como exposições, shows, peças de teatro, óperas, inaugurações de monumentos, desfiles e celebrações as mais diversas precisem ser preparadas e anunciadas com antecedência. É que o país já está bastante atrasado nisso. Afinal, a Independência vai muito além do 7 de setembro. Ela é um ciclo que vai de 1821 até 1825, compreendendo marcos como a assunção do Príncipe Pedro de Alcântara como regente até o reconhecimento da independência por Portugal e pela Grã-Bretanha, passando pela formação do Exército Brasileiro, entre outros acontecimentos de monta e que não foram devidamente celebrados nos últimos anos.

Essa lacuna gera um desconforto crescente em relação à atual gestão da pasta de cultura, órgão que deveria estar à frente da organização das celebrações. Em entrevista concedidas à imprensa e por meio de suas redes sociais, o Secretário Nacional de Fomento à Cultura, André Porciúncula, usou um pretexto orçamentário que supostamente o impediria de divulgar a agenda prevista para o evento este ano, ainda que outros órgãos da mesma secretaria já tivessem lançado alguns projetos em torno do tema antes da aprovação do orçamento de 2022. Chegamos em março de 2022 e nem sinal de uma programação. Em vez disso, só temos notícia da intenção do próprio Porciúncula (assim como do atual Secretário Especial de Cultura, Mário Frias) de se candidatar para um cargo no Legislativo, o que significa abandonar o governo ainda este mês. Sinal de alarme.

É importante ter em mente que a data não vai passar em branco para políticos que se colocam como adversários do presidente Jair Bolsonaro. O governador de São Paulo, João Dória, já anunciou que a programação incluirá shows, exposições e eventos, culminando com a reinauguração do Museu do Ipiranga. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes anunciou uma programação robusta para a data, incluindo um Réveillon da Independência, na Quinta da Boa Vista, com 24 horas de programação, incluindo shows, exposições, teatro, atividades artísticas, culturais e gastronômicas. Além disso, a prefeitura deve realizar a revitalização de diversos monumentos da cidade ainda este ano.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também demonstrou inteligência em aproveitar ocasiões dessa natureza. Nos anos 2000, o Brasil deu um exemplo notável de civismo nas comemorações do Quinto Centenário do Descobrimento, em 2000. Entre os eventos daquele ano, pode-se destacar a realização da mostra Brasil 500 Anos, em São Paulo, absolutamente inesquecível para quem a visitou. Foram cerca de 15 mil obras, divididas em 13 módulos, reunidos em quatro edifícios no Ibirapuera, além de apresentações, shows, exposições, inauguração de obras e publicações que mobilizaram a população durante vários meses.

Oportunidade perdida

Em uma época de crise, celebrações nacionais têm um significado especial. Para além dos cálculos de custo-benefício dos liberais, o progresso de uma sociedade se esteia na sua autoconfiança e na sua esperança em relação ao futuro. Essa autoconfiança pode ser fatal quando uma nação entra em bolhas especulativas, por exemplo, mas é um remédio em tanto para que as pessoas voltem a gastar e investir.

É claro que decisões estratégicas econômicas contam muito. Quando um governo aprova uma reforma que torna o ambiente de negócios mais seguro ou atrativo, por exemplo, manda um sinal para o mercado de que há uma disposição renovada para mudança. Da mesma forma, programas sociais que colocam renda direto na mão de milhões de pessoas podem contribuir para devolver a confiança, estimular o consumo e, consequentemente, aquecer o mercado, estimulando a concorrência e o reinvestimento de capital.

Mas não se pode desprezar o efeito multiplicador ou depressor que a cultura exerce numa hora dessas. Reiteradas notícias negativas contribuem para criar bolhas artificiais de negatividade. Do mesmo jeito, ações voltadas para o desenvolvimento do orgulho pátrio e da confiança no futuro podem surtir efeito multiplicador.

Desde pelo menos as Jornadas de Junho de 2013, a população brasileira tem visto uma recuperação fortuita e salutar dos símbolos nacionais, do amor à Pátria e da valorização da nossa soberania. Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro foi capaz de agregar muitas dessas expectativas, com a comemoração de sua vitória sendo defendida por vezes como uma “Segunda Independência”. Esse mesmo simbolismo esteve presente nas manifestações do 7 de setembro em 2021.

Pela primeira vez em dois anos, após o baque provocado pela pandemia e pelas políticas perversas de governadores e prefeitos, o Brasil começa a apresentar sinais de otimismo em relação ao seu futuro. Não era de se esperar, portanto, que num momento assim o governo Bolsonaro desperdiçasse a chance de gerar um efeito multiplicador, ficando para trás de mandatários como FHC e Epitácio Pessoa.

O Governo Federal precisa demonstrar mais protagonismo na celebração da data histórica, seja com investimentos diretos na realização de obras, eventos, exposições, festivais, peças, óperas, inaugurações de monumentos e publicações comemorativas, seja na articulação junto ao setor privado e à sociedade civil organizada para envolver o país numa mobilização cívica. A oportunidade de apresentar ao mundo uma nação em reconstrução após a devastação da pandemia do coronavírus não deveria ser desprezada, no seu aspecto simbólico e mesmo socioeconômico. Também é um recado importantíssimo para uma população que deve escolher o seu futuro presidente pouco mais de um mês depois do 7 de setembro.

Retornar aos fundadores, resgatar os símbolos nacionais e promover a nossa identidade enquanto povo são importantes instrumentos para estimular um necessário ímpeto de restauração nacional, da autoestima e da pujança do Brasil depois de tanta devastação. O mundo inteiro respira pelo retorno das soberanias nacionais e o Brasil se encontra numa posição privilegiada para se destacar nesse novo espírito do tempo. Ainda dá tempo de salvar a data. Podemos ter um Bicentenário que não seja “heroico e nacional”, na expressão infeliz do ex-secretário de cultura Roberto Alvim, mas tampouco podemos aceitar o nada, que é o que temos visto até agora.

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