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Em "O Homem de Mil Faces", Sonia Kronlund investiga a trajetória de um impostor que assume múltiplas identidades para dar seus golpes.
Em “O Homem de Mil Faces”, Sonia Kronlund investiga a trajetória de um impostor que assume múltiplas identidades para dar seus golpes.| Foto: Pixabay/Rafael Juárez

Mais conhecida como documentarista e produtora de rádio, a francesa Sonia Kronlund acaba ter sua primeira obra literária traduzida para o português. Trata-se do livro "O Homem de Mil Faces: A História Real do Brasileiro que Enganou Dezenas de Mulheres pelo Mundo", publicado pela editora Vestígio.

Neste trabalho, Sonia investiga a trajetória de um impostor (cujo nome real é Ricardo, mas o sobrenome ela prefere omitir) que assume múltiplas identidades para dar seus golpes – sempre explorando os desejos, carências e expectativas das vítimas.

A seguir, você acompanha uma parte da passagem do falsário por Paris, onde ele finge ser um médico recém-chegado de uma missão humanitária na África.

Em 14 de novembro de 2015, no dia seguinte à longa noite dos ataques ao Bataclan e aos cafés parisienses, por volta das seis horas da manhã, Marianne vê Alexandre, seu companheiro, correr para o hospital Louis Mourier, em Colombes, onde ele trabalha como cirurgião torácico.

O jovem casal de 30 e poucos anos mora em Paris, perto do Canal Saint-Martin. Eles compartilham o amplo estúdio branco de prateleiras coloridas que Marianne comprou e renovou dois anos antes. Ela é ilustradora, procura comer alimentos orgânicos, frequenta os cinemas do Canal e as exposições mais comentadas.

Os atentados ocorrem a poucos passos de sua casa. Eles ficam em choque. Sentem-se atingidos, visados. Ao sair, Alexandre já sabe que seu dia será difícil. Seu chefe havia permitido que dormisse em casa, mas os feridos na fila de cirurgia já não podem esperar.

Quando ele volta, à noite, está arrasado. Tem o semblante sombrio dos piores dias. Desaba no sofá, mudo, quase prostrado. Naquela noite, o casal havia combinado com muita antecedência de tomar um aperitivo na casa de vizinhos. Alexandre não tem forças.

Marianne diz com gentileza que ele não pode ficar daquele jeito, que sair o ajudará a arejar as ideias. Ele se deixa convencer. Assombrado por seu dia, ele acaba contando o que viu e viveu.

Djamila e Olivier, os vizinhos, nunca se esquecerão daquela noite em que todos começam a chorar quando Alexandre descreve os pacientes baleados, mutilados e paralisados que precisou operar. Desmoronam quando ele fala de uma jovem, ferida no Bataclan, que não conseguiu salvar, morta na mesa de operação. Do horror de ter que anunciar ao pai a morte da filha, as palavras que precisou encontrar.

Djamila e Olivier ficam impressionados com sua modéstia, seu jeito discreto de ser. Ele fez o que precisava ser feito, nada mais, mantém a sobriedade. Diz que os anos de juventude trabalhando como médico de guerra para a Médicos Sem Fronteiras o ajudaram a encontrar os gestos, o distanciamento necessário

É a primeira vez que menciona, de maneira breve, essa experiência, em sua maior parte, no Sudão. Ele não se vangloria, continua calmo. Mas foi graças a essa experiência que entendeu algo perturbador sobre os pacientes daquele dia: algumas das balas que extraiu dos corpos não tinham sido disparadas pelos terroristas, mas pela polícia.

Djamila e Olivier se sentem gratos. Embora tenham passado o dia atordoados em frente à televisão, revendo as imagens dos ataques, vão dormir quase orgulhosos de conhecer uma das raras pessoas que se fizeram úteis naquele dia funesto.

Quando Marianne fala de seu passado com Alexandre, na pequena rua florida onde ela ainda mora, quando repassa os fatos com os vizinhos que, desde então, a apoiam incondicionalmente, aquela noite permanece como um dos momentos mais assombrosos de sua vida. Pois nada do que Alexandre contou é verdade.

Marianne sabe disso agora. Alexandre nunca pisou naquele hospital. Ele não é médico. Ele nem mesmo se chama Alexandre.

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No início da história deles, a jovem Marianne concorda em jantar com Alexandre sem grande entusiasmo. Ela acha seu estilo burguês, um pouco travado, não faz seu tipo. Daqueles que usam camisa para dentro da calça, esse tipo de detalhe.

Mas com o passar do tempo ela se deixa conquistar por sua gentileza, suas atenções, pela doce persistência com que ele a envolve, que ela atribui às suas origens brasileiras: ele cresceu no Rio de Janeiro, onde estudou Medicina.

Depois de passar uma década trabalhando em missões humanitárias na África, seguiu até a França o colega Jean-Yves, da Médicos Sem Fronteiras, que o ajudou a conseguir um emprego no hospital de Colombes. Como estrangeiro, precisou refazer parte dos exames.

Mas agora está tudo pronto, Alexandre quer se estabelecer, construir algo. Em pouco tempo, parece apaixonado, se mostra sentimental. Marianne começa a se envolver, mas mantém a cautela.

Ele é unanimidade entre as pessoas a seu redor. Sua família, seus amigos, todos adoram aquele rapaz tão atencioso, tão gentil, tão prestativo. Também é um homem bonito, um espécie de latin lover, alto, forte, de olhos castanhos e pele bronzeada.

Seus amigos insistem: Agora que você finalmente encontrou um cara que parece sério, que quer se envolver, aproveite.

Ela é uma jovem tranquila, estruturada, de voz suave e pausada. Tem uma vida em que cada coisa parece no lugar. A delicada palidez de sua pele não esconde uma grande determinação. Não sei por quê, mas quando penso nela vejo algo muito “francês”.

Ela continua próxima dos pais, que vivem fora de Paris, separados mas bons amigos. Alexandre está na mesma situação. Seu pai, Francisco, é juiz no Rio de Janeiro. Sua mãe mora nos Estados Unidos, em New Jersey, onde refez a vida com um americano.

Ele tem três irmãs, com nomes que começam com a letra R: Roberta, Renata, Raquel. Seu nome de batismo, Ricardo, segue a mesma regra, mas todos o chamam de Alejandro, seu segundo nome, que ele afrancesou para Alexandre.

Em sua família, eles se telefonam todos os dias ou quase. Marianne fica impressionada com aquele clã unido, de personalidades fortes. Ela se pergunta como encontrará seu lugar.

Roberta, a mais velha, mora nos Estados Unidos, perto da mãe, e tem dois filhos. Alexandre lamenta que ela tenha desistido de trabalhar para cuidar da família. Ele culpa o cunhado, que julga um pouco machista.

Raquel, a caçula, ainda está tentando se encontrar e gasta desmedidamente o dinheiro que o pai lhe envia. Alexandre gostaria que o pai fosse mais rigoroso, que não lhe desse tudo.

Renata é a irmã de quem ele se sente mais próximo. Eles têm apenas dois anos de diferença. A menos que seja Roberta, Marianne às vezes se confunde. Ela pensa, hesita por um momento, Roberta ou Renata? Então ela se corrige, é mesmo Roberta, a que vive nos Estados Unidos.

Marianne tenta se lembrar de todos os detalhes daquela família, ainda que imaginária, na qual viveu por meses. Não quer cometer erros sobre esses personagens bem definidos, com os quais todos os dias aconteciam coisas que ela compartilhava e vivia.

Nunca os viu em fotografias, mas ainda pode dizer a cor de seus cabelos, se são altos ou baixos. Mal podia esperar para conhecê-los.

Pouco tempo depois de se conhecerem, Alexandre descobre que a mãe está com câncer, um tipo de mieloma. Sabe que ela não tem muito tempo de vida. Os dois atravessam juntos essa provação, que os aproxima, é claro.

Alexandre passa horas ao telefone com as irmãs no Brasil e nos Estados Unidos. Marianne o apoia, se enternece e baixa a guarda.

Quando a mãe de Alexandre morre, alguns meses depois, ele vai para New Jersey. Fica muito abalado, Marianne também, por empatia.

Na volta, ele se muda para o estúdio branco dela. E começa uma especialização em cirurgia pediátrica em Toulouse, onde passa uma semana por mês. Sem querer, Marianne engravida. Fica feliz.

Ele se ajoelha diante de sua barriga, jura que é o dia mais feliz de sua vida, chora. E logo telefona para o pai para dar a notícia. A gravidez segue seu curso. Alexandre insiste para que Marianne seja acompanhada por uma colega do hospital e para que o bebê nasça em Colombes.

Ela será mais bem atendida e, se necessário, mais bem tratada. Mas prefere uma maternidade perto de casa, em Paris, mais conveniente. Ele fica chateado, tenta convencê-la, mas acaba cedendo.

Também não entende por que ela nunca o visita no trabalho. Ele a provoca, dizendo que ela não se interessa pelo que ele faz, sempre encontra uma desculpa. Para que ela possa contatá-lo a qualquer momento, ele lhe deixa o número da enfermaria do bloco cirúrgico.

Ela deve especificar que é sua companheira, caso contrário não ousarão chamá-lo. Ele faz com que ela anote os números de suas três irmãs e de seu pai no Brasil, caso algo aconteça, nunca se sabe.

Tudo isso, vou entender mais tarde, é seu lado apostador, ele age assim pela adrenalina, pela emoção, pela diversão.

Marianne está grávida de cinco meses e meio enquanto Alexandre acumula plantões, dorme com frequência no hospital, vai para Toulouse e às vezes passa uma semana, dez dias sem voltar.

Uma noite em que ela se sente mais sozinha do que o normal, em que sua barriga está um pouco mais dura, ela tenta contatá-lo várias vezes no celular, mas ele não atende. Ela telefona para o hospital. Na recepção, a atendente não conhece ninguém com esse nome.

Marianne pensa que as listas não devem ter sido atualizadas. O número da enfermaria do bloco cirúrgico também está errado. Ela começa a se preocupar. Seu coração bate mais rápido.

Em um impulso, sem pensar muito, ela digita os outros quatro números que ele deixou, do Brasil e dos Estados Unidos. Todos são falsos, não dão em nada, ou as pessoas do outro lado nunca ouviram falar em Alexandre. Algo não está fechando: é tudo o que consegue pensar.

O mal-estar começa a crescer, sobe à sua cabeça como uma grande vertigem, ela se sente à beira de um abismo. Mas se recompõe, diz a si mesma que ele deve ser apenas um médico contratado, que não se tornou um titular do hospital e não teve coragem de lhe contar. E que ela deve ter anotado os outros números errado. Agarra-se a isso. Ufa.

Alguns dias se passam, durante os quais a dúvida começa a se infiltrar por todas as frestas de suas vidas compartilhadas. Alexandre está retido em Toulouse, Marianne começa a investigar. No computador dela, que ele às vezes usa, Alexandre tem um usuário.

Nada encontra de anormal: artigos especializados, relatórios cirúrgicos, documentos administrativos do hospital. Então se lembra de que, antes de criar o próprio usuário, ele havia usado o usuário dela, com o navegador Chrome do Google.

Graças ao histórico de navegação, ela encontra vestígios de sua passagem. Havia configurado o Chrome para salvar automaticamente as senhas de todas as contas acessadas, sem necessidade de confirmação. Alexandre não sabia dessa configuração.

Marianne acessa todas as contas usadas pelo companheiro poucos meses antes, tanto suas contas de e-mail, com anexos, quanto seus perfis em redes sociais, tudo. Sua vertigem logo se transforma em um mergulho abissal, uma descida ao inferno.

Ela penetra em outra dimensão: um segundo, um terceiro e até um sétimo mundo se delineiam atrás das portas que escancarou, paralisada, com poucos cliques. O choque dá lugar à estupefação.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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