Em 2021, 522 dos 1.240 presidiários fluminenses liberados em função das saídas temporárias de Natal não retornaram à prisão ao término do prazo estabelecido. A taxa de 42,09% de evasões superou em muito os percentuais de fuga nesta temporada em outros estados e a taxa do próprio estado em 2019, que havia sido de 16,32%. Em 2020 os presos em gozo de saídas temporárias ao longo do ano foram autorizados a permanecer em casa, em regime de prisão domiciliar.
O estado de São Paulo concedeu 36.688 benefícios e registrou 1.628 fugitivos no Natal de 2021. Desta forma, a justiça paulista liberou um número cerca de vinte e nove vezes maior de presidiários em comparação ao Rio de Janeiro, mas registrou um percentual de fuga de 4,44% contra os mais de 42% no estado vizinho. Os percentuais paulistas são semelhantes aos de outros estados: em Minas Gerais 2,4% dos presos liberados no Natal e no Ano Novo de 2020 não retornaram, no Maranhão foram 4,5% de evasões e no Mato Grosso do Sul foram 3,25%.
No final de 2021 voltou a viralizar pelas redes sociais um vídeo em que a ativista e historiadora Suzane Jardim defende que as saídas temporárias concedidas a presos que cumprem pena em regime semiaberto são úteis para reduzir a criminalidade.
Um dos principais argumentos apresentados por Suzane consiste em um dado avulso, atribuído à Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), pelo qual apenas 4,6% dos detentos liberados em determinada oportunidade, totalizando 1400 criminosos, teriam aproveitado uma saída temporária para foragir do sistema carcerário. Os números, no julgamento da historiadora, seriam insignificantes diante do benefício resultante da manutenção da integração social dos detentos.
A leitura destes números, contudo, pode ser mais complexa e depender do cruzamento de outros dados. Quem são os presos que aproveitam as saídas temporárias para fugir? É possível traçar perfis característicos dos detentos que retornam e dos que não retornam após as saídas temporárias? Como os números de fuga a cada saída se acumulam ao longo das diversas oportunidades concedidas a cada ano?
"Emocionados" x "Criminosos"
A reportagem da Gazeta do Povo fez estas perguntas a diversos órgãos de administração penitenciária, a varas de execuções penais de alguns estados e também conversou com o diretor jurídico do Sindicato dos Agentes Penitenciários de São Paulo (Sindasp-SP), Márcio Assunção.
Ele diz, a partir de sua experiência de 20 anos como profissional e representante sindical da classe, que a maioria dos presidiários são delinquentes eventuais, pessoas que não têm forte vínculo com o crime organizado, que muitas vezes possuem um meio lícito de sustento, que cometeram atos ilícitos por uma circunstância específica ou uma tentação momentânea. A este grupo, Márcio se refere como “emocionados”. Em oposição a estes, o agente penitenciário descreve um segundo grupo, que ele chama de “criminosos”: são pessoas cuja atividade principal de sobrevivência consiste em atividades ilícitas e que têm um vínculo bem estabelecido com o crime organizado.
Segundo Márcio, que trabalhou por oito anos em um centro de detenção e por 12 anos em um presídio, estes detentos classificados por ele como “criminosos”, presidiários com um vínculo mais sólido com o crime organizado e mais profundamente enraizados nas práticas ilícitas, são a maioria dos que tipicamente não voltam às celas, findados os prazos definidos pelo poder judiciário.
A descrição apresentada pelo agente penitenciário adiciona complexidade à leitura dos números. É possível que os cerca de 4% de criminosos que escapam a cada saída em São Paulo sejam constituídos majoritariamente dos mais perigosos e reincidentes dentre os presidiários beneficiados. A mera leitura percentual de fugitivos pode esconder variáveis que dependeriam de uma análise mais aprofundada dos dados, com um - por exemplo — um detalhamento estatístico dos crimes pelos quais os detentos beneficiados, e os que fogem durante o benefício, cumprem.
Questionamos aos órgãos de administração penitenciária de São Paulo, do Rio de Janeiro, do Paraná, de Rondônia, de Sergipe, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e da Bahia sobre o perfil criminal dos beneficiados e dos fugitivos quanto aos anos de condenação e/ou tipo de crime cometido.
De todas as secretarias contactadas, apenas a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo soube informar os crimes mais comuns pelos quais beneficiários e fugitivos através das saídas temporárias respondem.
Segundo a pasta, a maior parte dos detentos que aproveitaram as últimas 5 saídas temporárias concedidas pelo estado para escapar respondem pelos crimes de tráfico, roubo, furto e homicídio. Na saída de Natal de 2021, por exemplo, 32,13% dos presos que não retornaram respondiam por tráfico; 35,6% respondiam por roubo; 9,42% respondiam por furto e 9,97% eram homicidas. Estes são também os crimes com maior número de detentos beneficiados. Para o cálculo, no caso de detentos que cumpriam condenação por diversos delitos, foi considerado o crime de maior condenação.
A Lei 13964/19, popularmente referida como Lei Anticrime, que passou a vigorar em 2020, limita a concessão do benefício para os condenados por crimes como roubo e homicídio, mas apenas em algumas circunstâncias específicas como o roubo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo ou o homicídio qualificado e apenas para os crimes. Além do mais, como a regra não é retroativa e não se aplica aos condenados por crimes anteriores, seus efeitos sobre a demografia dos presos beneficiados pelas saídas temporárias e dos fugitivos ainda não são observados nos dados atuais.
Órgãos não sabem informar o número anual de beneficiados
Se considerados os números de detentos, independentemente do número de vezes em que saíram, quantos por cento dos presos liberados ao longo de 2021 evadiram do sistema carcerário por este meio? Esta é uma questão para a qual nenhum dos órgãos de administração penitenciária ou de execução penal que consultamos tem resposta.
O Estado de São Paulo teve 32.431 saídas temporárias em maio, 31.551 em junho, 34.577 em setembro e 36.688 em dezembro, totalizando 135.247 benefícios. Foram 6.752 fugas, o que corresponde a 4,99% de evasões se considerarmos todos os benefícios concedidos.
Entretanto, estes números podem ocultar um percentual maior de fugas se considerado o número de detentos beneficiados. É que o Estado de SP concedeu quatro saídas ao longo do ano e um mesmo preso pode ter sido beneficiado por diversas delas, desta forma o número de presos beneficiados pode ser bem menor que o número de benefícios informados. E o percentual de fugitivos, bem maior.
Para investigar a hipótese seriam necessários dados individualizados, de modo que um preso que tenha saído em maio, junho, setembro e dezembro fosse contabilizado uma vez e não quatro. Desta forma saberíamos, entre todos os presos que receberam pelo menos um benefício, quantos aproveitaram uma das saídas para não mais retornar. O percentual pode se aproximar dos 20%.
A SAP-SP, entretanto, informou não saber o número exato de presos liberados durante o ano: “O controle das saídas temporárias efetuado pela Pasta contabiliza a quantidade de presos que usufruíram o benefício em cada um dos períodos. Não há levantamento que indique se um mesmo preso foi contemplado uma ou mais vezes ao longo do ano.”, respondeu o órgão.
Já a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, ao ser questionada sobre o número total de beneficiados em 2021 recomendou que a questão fosse endereçada à Vara de Execuções Penais, do TJRJ. A assessoria de imprensa do TJRJ, por sua vez, rebateu informando que “questão sobre o número de detentos liberados em saída temporária é feita pela Seap a partir de uma decisão” e que “O controle de entrada e saída de detentos é feito pela Seap.”
Os órgãos de administração penitenciária dos demais estados também negaram ter controle sobre o número exato de detentos beneficiados anualmente ou não responderam ao questionamento.
O representante da Sindasp-SP, por outro lado, diz que a maioria dos presos que fogem numa saída não retornam mais, e os que retornam tendem a perder o direito a saídas futuras. Márcio nos contou que eventualmente ocorre de um preso, não tendo retornado na data prevista, apresentar-se voluntariamente em data posterior. Ele diz que isso ocorre com maior frequência quando o preso tem um vínculo religioso e/ou familiar forte, e é estimulado por parentes ou sacerdotes a se apresentar, ainda que tardiamente. Na experiência de Márcio, contudo, isto é bastante raro.
A Gazeta do Povo também solicitou dados percentuais de presos que, não tendo retornado em data estabelecida pela justiça, se apresentaram tardiamente. Os diversos órgãos contatados também não possuem estes dados.
Quanto ao número de detentos que foram presos mais uma vez ainda durante o benefício da saída temporária, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, novamente, foi a única que soube informar os dados. Na saída de Natal de 2021, 107 dos 36.688 foram presos pelo cometimento de novos delitos. Em 2020 haviam sido 99 num universo de 31.532.
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