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Ásia

Hong Kong, que já foi uma cidade modelo, enfrenta a sombra da China

Compradores observam objetos e roupas de segunda mão em  Sham Shui Po, Hong Kong. | LAM YIK FEI/NYT
Compradores observam objetos e roupas de segunda mão em Sham Shui Po, Hong Kong. (Foto: LAM YIK FEI/NYT)

Quando Hong Kong voltou a ser governada pelos chineses, há duas décadas, a cidade era vista como modelo do que aquele país um dia poderia se tornar: próspera, moderna, internacional, com amplas proteções do Estado de direito.

A ansiedade era grande em relação à sobrevivência de um lugar como esse na China autoritária, mas mesmo depois que Pequim começou a intervir nas liberdades da antiga colônia britânica, ela continuou sendo famosa como uma das metrópoles mais bem administradas do mundo. 

Os trens eram pontuais; o índice de criminalidade e os impostos, baixos; seu perfil parecia cada vez mais espetacular e ambicioso, com prédios cada vez mais altos. 

Tudo isso continua sendo verdade, mas com o 20º aniversário da devolução, comemorado em 1º de julho, a ideia de que Hong Kong é especial enquanto cruzamento vibrante do Oriente e do Ocidente que a China talvez queira copiar está desaparecendo rapidamente. 

Disputas intermináveis entre as autoridades da cidade, apoiadas por Pequim, e a oposição pró-democracia, restringiram a capacidade do governo de tomar decisões difíceis e concluir projetos importantes. 

Dividida entre conjuntos de regras opostos – as exigências de Pequim de um lado e os ditames dos moradores de outro –, a liderança permitiu que os problemas se multiplicassem, incluindo a crise da moradia acessível, um sistema educacional problemático e os atrasos de entrega de uma linha de trem de alta velocidade. 

Interferência de Pequim

Muitos afirmam que a briga pelo futuro político de Hong Kong acabou paralisando tudo – e talvez a tenha condenado ao declínio. Como resultado, cada vez mais a cidade é vista não como modelo para a China, mas como exemplo a ser evitado – para Pequim e seus aliados, pelos perigos da democracia; para a oposição, pelos riscos do autoritarismo. 

"É cada vez maior a sensação de impotência. Temos um gigante enorme na nossa porta e o resto do mundo parece não querer questionar o que ele faz", lamenta Anson Chan, vice-chefe do governo local durante os anos anteriores e posteriores à devolução da cidade à China. Ela culpa a interferência de Pequim pelas dificuldades que Hong Kong enfrenta. 

Outros dividem a responsabilidade mais igualmente sobre vários fatores. Falam da relutância da oposição em se comprometer e das políticas que enfraquecem os partidos políticos, incluindo os distritos legislativos que dão a vitória a candidatos radicais, mesmo com a minoria dos votos. 

"Esse tipo de atmosfera política vai prejudicar muitas das iniciativas que se apresentarem", prevê Anna Wu, membro do conselho executivo do território, ou Gabinete. 

Uma estação do trem de alta velocidade planejada há tempos continua pela metade, anos depois de as principais cidades chinesas já serem todas ligadas por trens-bala. 

Hong Kong perde apenas para Nova York e Londres enquanto centro financeiro, mas não tem museus de classe internacional. Após quinze anos de delongas, foi iniciada a construção de um distrito cultural nos moldes do Lincoln Center, mas a verba destinada ao projeto pode ser cortada nos próximos dias. 

Inúmeras reclamações a respeito das escolas, obcecadas com avaliações que deixam os alunos em desvantagem para competir com os estudantes da China continental, não levaram a nenhum tipo de reforma educacional. Tampouco o governo encontrou uma maneira de apaziguar os ânimos exaltados do público em relação aos aluguéis estratosféricos e aos preços dos imóveis. 

“Um país, dois sistemas”

Hong Kong já foi conhecida pela velocidade e eficiência com que construía comunidades planejadas imensas, com amplos conjuntos habitacionais, a cada cinco ou seis anos, mas não conseguiu repetir o feito desde que a Grã-Bretanha devolveu a soberania do território para o governo chinês, em 1º de julho de 1997. 

A cidade ainda é uma verdadeira joia sob vários aspectos, um lugar pelo qual é difícil não se apaixonar e, para os 7,4 milhões de habitantes, difícil de abandonar. 

Faixas estreitas de arranha-céus de frente para o mar têm às costas colinas cobertas de árvores protegidas como se fossem santuários. O aço e o concreto dão lugar a trilhas silvestres que passam por lagos e cachoeiras – e tudo isso não muito longe do aeroporto local, grandioso e eficiente, e que faz parte de uma renomada rede de transporte que inclui também metrôs, ônibus, bondinhos e balsas. 

A estrutura, entretanto, foi fundada pelos britânicos antes de irem embora, assim como as instituições que realmente diferenciam a cidade: a justiça independente, o serviço público, amplamente respeitado, a imprensa livre. 

Tudo isso foi preservado graças à fórmula "um país, dois sistemas" que prometeu a Hong Kong um alto grau de autonomia quando os britânicos a devolvessem à China, mas acabou enfraquecido conforme o Partido Comunista foi se imiscuindo mais e mais nas questões da cidade, intimidando e até abduzindo as pessoas vistas como obstrução a seus interesses. 

Revolução dos Guarda-Chuvas

A Revolução dos Guarda-Chuvas que exigiu eleições livres e tomou conta das ruas do centro durante quase três meses, em 2014, não passa de uma lembrança distante, mas o ressentimento contra a China cresceu e se espalhou principalmente porque a evolução democrática local parou. 

Em março deste ano, a nova chefe do Executivo do território, Carrie Lam, foi escolhida por um comitê de aproximadamente 1.200 moradores, na maioria aliados de Pequim seguindo suas instruções. 

Seus antecessores se mostraram cautelosos em relação às questões mais espinhosas, com medo tanto de ofender a liderança chinesa quanto de provocar o público. Ao mesmo tempo, dizem os críticos, a responsabilidade pública limitada abriu espaço para a incompetência e corrupção entre a governança, levando dois membros do alto escalão de governos anteriores a julgamento. 

Os aliados de Pequim são maioria no Legislativo porque metade das 70 cadeiras é selecionada para grupos de interesses leais ao governo do continente, enquanto a outra metade é eleita e os legisladores que prezam e defendem a democracia ganharam o direito de representá-los. O resultado é o impasse. 

“Democracia de mais”

Ambos os lados concordam que, sem algum tipo de mudança política, a cidade se tornará ingovernável. O problema é que não entram em acordo sobre o que fazer. 

Os pró-democracia querem caminho aberto para o sufrágio universal – que Pequim prometeu, em 2007, que "talvez fosse implantado" em 2017 –, começando com eleições diretas para a chefia do Executivo. Eles dizem que só quando o governo puder responder por seus atos diretamente ao público é que terá condições de lidar com os desafios impostos à cidade. 

Já os defensores de Pequim dizem que o problema é democracia de mais e não de menos. 

Em entrevista, Carrie, que tomou posse no dia 1º de julho, reconheceu "um certo nível de verdade" no argumento de que a falta de uma reforma política estava dificultando cada vez mais a solução de problemas como moradia, educação e infraestrutura. 

Entretanto, acrescentou: "Se tivéssemos sufrágio universal amanhã, será que todos esses problemas desapareceriam? Acho que não." 

Três anos atrás, Pequim apresentou uma proposta a Hong Kong: a população poderia eleger o chefe do Executivo, sim, mas só entre os candidatos aprovados por um comitê sob seu controle. As forças pró-democracia rejeitaram a oferta, exigindo eleições livres sem esse tipo de limitação, e a recusa de Pequim em aceitar a negativa levou aos protestos que ficaram conhecidos como a Revolução dos Guarda-Chuvas. 

Foi um momento crucial para Hong Kong, no qual todos os envolvidos deixaram escapar a chance de um compromisso, aprofundando-se mais e mais no que continua um impasse prolongado. 

O maior erro dos pró-democracia talvez tenha sido acreditar que o presidente Xi Jinping pretendia levar a China para um futuro mais pluralista. 

Após cinco anos no poder, ele provou ser um líder comprometido com o autoritarismo e considera a liberalização política uma ameaça. 

Parece haver pouca esperança de que Pequim faça a Hong Kong uma oferta melhor do que a anterior, de três anos atrás. Para Jasper Tsang, aliado antigo dos chineses que se aposentou recentemente da legislatura, as atitudes da liderança chinesa em relação à cidade endureceram. 

"O pessoal anda me dizendo que não haverá segunda chance", afirma.

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