Quem não morrer, nem resolver virar tatu, uma hora há de voltar a encontrar os amigos. As datas variam de lugar para lugar, mas uma coisa há de ser uniforme no país, quiçá no mundo: com as reaberturas, amigos se reencontram depois de meses sem se ver. Mesmo que o leitor nunca tenha se empenhado em ficar entocado, é muito provável que tenha amigos que ficaram assim. Há os ansiosos que incharam feito baiacus, há os sorumbáticos que ficaram abatidos, e há os que não levaram a mal a coisa toda, e ficaram com o mesmo aspecto.
Semana passada iniciei as atividades normais. Foi quando Salvador, fechada desde 18 de março, começou a se reabrir. Um amigo me azucrinara o juízo porque eu tinha que descobrir quando o bar favorito dele abria. Afinal (raciocina ele) se eu escrevo aqui neste jornal paranaense, isso faz de mim uma repórter, e repórter sabe as notícias todas, inclusive a da reabertura de um certo bar soteropolitano. Descobri, e disse que ele tratasse de aparecer.
No meu caminho, pedestre, encontrei a grande constante desta pandemia: os ciclistas de aplicativo, com suas mochilinhas térmicas de transportar comida. São todos jovens, magricelas e bronzeados, com aquele físico de corredor da São Silvestre. Eu gostaria de ver dados sobre a saúde desses ciclistas na pandemia. Não deve ser difícil de fazer, já que esses aplicativos registram as atividades todas. Vejo-os sadios, e logo penso nos confinados de Nova York, que se deram mal.
Antes de chegar ao bar favorito do meu amigo, passo pela porta de um boteco popular, onde há acarajés boiando no dendê, parecendo estar já prontos. Compro um a seis reais. Uma senhora com a filha acha caro demais um acarajé sem camarão a seis reais, e vai-se embora. O homem explicara que agora está tudo mais caro. Na verdade a opinião pública local acabara descobrir que a produção de dendê na Bahia é pífia e arcaica, e que a Bahia é abastecida pelo dendê do Pará – o qual, a seu turno, está preferindo exportar a vender para nós, por causa da alta do dólar. Como está perigando faltar dendê, agora compro acarajé sempre que vejo um.
No bar do meu amigo, os garçons estão todos de máscara e com aquela coisa de soldador. Esguicham álcool na minha mão e no cardápio, depois usam aquele termômetro que parece uma pistolinha para tirar a minha temperatura. Ele me mostra os 34 ºC no mostrador, e penso que esse termômetro serve mais para aplacar nervos do que para medir temperatura. Não é uma queixa: aplacar nervos é função importantíssima!
Quase todas as mesas do bar estão ocupadas. O meu amigo chega todo paramentado, com mochilinha, copo trazido de casa, álcool 70 na garrafinha. A mochilinha teima em cair no chão, e digo que o vírus está no chão, vai passar para a mochila e ele vai morrer. Faz menção de bater na madeira, mas tem medo de bater na madeira e pegar o vírus na madeira. Agora não sabe se vai morrer por não bater na madeira também. Está com medo, mas não encontrava ninguém havia cinco meses. Chegara a fazer amizade com uma lagartixa. Tentou, em vão, marcar uma reunião dos estritamente confinados, tendo em vista as parcas chances de algum deles estar contaminado. Apesar do medo, diz que não há perspectiva de vacina tão cedo, e não há como passar anos confinado em casa. Pensou, pensou, e saiu-se com esta: “Nem só de covid morre um homem!”. Ele conta que tem uma porção de amigos que não saem da toca.
Estou curiosa sobre como sairão da quarentena essas pessoas. Na semana anterior, cheguei a chamar para comer acarajé um outro amigo, que tinha contraído covid apesar do confinamento. É mais novo do que eu, mas estava gordíssimo, sem fôlego, e fumando um cigarro atrás do outro. Mostrou-me que a banca de revista próxima à minha casa tinha se transformado num bar. Ficamos por lá. Segundo me contou o dono, a venda de bebidas tinha triplicado; e a de cigarros, subido muito. Pensei que poderia simplesmente ser gente migrando dos bares (fechados) para as bancas (abertas), e perguntei ao freguês mais falante qual bar eles frequentavam. Respondeu que não bebia havia dez anos. Aquela turma ali havia se formado na pandemia.
No Centro, eu tinha notado que havia homens, sobretudo velhos, reunidos em banquinhos no meio da rua, tomando cerveja ou cachaça. Achei que a rua fosse substituta do bar, mas esse cenário pode ser também um aumento de consumo de álcool. Afinal, todos estão com medo, seja da doença ou do desemprego.
Àquele amigo que fui encontrar no bar, perguntei se conhecia quem estivesse sem pôr o pé para fora de casa nem pra comprar comida, e fizesse tudo por aplicativo. Respondeu que sim, e que a pessoa foi parar no hospital, com dores, julgando estar com apendicite, mas eram gases. Movimentando-se menos, o sistema digestivo fica afetado.
Depois de algumas horas de conversa, refaço o caminho pedestre. A noite é mais agitada do que o dia, e no lugar onde comprei o acarajé ouço o sucesso da pandemia: “Coronavírus nunca me assustou/ Já peguei coisa pior e ainda chamei de amor”. Não gosto da voz dos cantores desse gênero musical sofrido. Cantor de arrocha parece gato levando paulada. Mas fico feliz, pois as coisas começam a voltar ao normal.
Normal é quando eu ouço uma música tocar em vários lugares para concluir que é o sucesso do momento. (Refiro-me a um tipo de sucesso que só circula da Bahia pra cima, e depois vai parar nas favelas do Sudeste.) Já na pandemia, eu cheguei à conclusão por causa das mensagens de amigos de bairros bem diversos: um elogiando a criatividade da letra, outro reclamando do vizinho negacionista que ouve “Coronavírus nunca me assustou” em último volume.