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'House of Cards' quer ser relevante, mas não tem nada importante a dizer

Frank Underwood (Kevin Spacey): plano maligno | David Giesbrecht / Netflix/Divulgação
Frank Underwood (Kevin Spacey): plano maligno (Foto: David Giesbrecht / Netflix/Divulgação)

“Aqui estou, presidente desses Estados Unidos. Você fez essa aposta, América. Você votou em mim”, Frank Underwood (Kevin Spacey) diz para a audiência enquanto é empossado presidente na quinta temporada de "House of Cards." “Você está confuso? Está com medo? Porque o que você pensou que queria agora está aqui, e você está aí, olhando abalado, perplexo, pensando se isso é o que você realmente pediu.” 

Essa é uma das várias cenas em que “House of Cards” coloca a era Trump como ponto central. Mas para todos os fins da série, em um momento em que a cultura é reciclada freneticamente na forma de argumento político, a quinta temporada de “House of Cards” é um grande exemplo de como uma série ou filme pode ser altamente, quase incrivelmente, relevante sem adicionar uma única observação importante às nossas discussões políticas. 

Relevância pode ser um desafio para as séries da Netflix devido ao modo que o serviço de streaming grava e lança as temporadas das suas séries. Em emissoras de TV, as séries começam as temporadas com alguns episódios finalizados e os roteiristas continuam escrevendo novo material, que é filmado e editado conforme a temporada avança. 

Na Netflix, por outro lado, os showrunners roteirizam, filmam e editam uma temporada inteira de uma vez, e então lançam todos os episódios online. Isso significa que acontecimentos atuais podem se sobrepor aos episódios finalizados; quando falei com Norman Lear há algumas semanas sobre o remake excelente da sua série “One Day At A Time” na Netflix, ele disse que a grande diferença entre trabalhar para a Netflix e para uma emissora de TV é que no serviço de streaming “é impossível ser completamente atual.” 

A quinta temporada de “House of Cards” resolveu esse problema ao filmar durante o novo governo Trump. As filmagens começaram em julho do último ano e terminaram em fevereiro, algumas semanas depois do presidente Donald Trump ser empossado. Como resultado disso (e de alguns bons palpites), os episódios estão apinhados de tramas que serão familiares a qualquer um que tenha assistido pelo menos uma cobertura de notícias no último ano: tramas de supressão de votos (N.T.: com o voto opcional nas eleições americanas, alguns estados, condados e partidos podem criar mecanismos para dificultar, conforme for conveniente, a votação de certos grupos demográficos), medos relacionados a terrorismo, descontentamento com a supervisão do Congresso, um presidente ansioso com o volume e o entusiasmo dos seus seguidores, uma eleição jogada para o Congresso, um candidato à presidência que pode ser instável, acordos com o mercado chinês e malevolência russa, hackers, coletivas de imprensa suspensas, restrições de vistos como um teatro de segurança nacional e ataques químicos na Síria. (Também tem uma dose adicional de sexo e assassinato, às vezes ao mesmo tempo.) Claro, em se tratando de “House of Cards”, todos esses desenvolvimentos acontecem em um ambiente definido totalmente por ambição pessoal e sem qualquer ideologia. 

Isso pode ser como o criador da série, Beau Willimon, e seus substitutos como showrunners, Melissa James Gibson e Frank Pugliese, acreditam que a política funciona. Eles estão errados, obviamente, como ficaria claro para qualquer um que veja congressistas republicanos aprovarem uma lei de saúde pública, o que seria um suicídio político, para abrir caminho para grandes cortes tributários. E apesar dessa atitude sempre ter tido um lado feio, na era Trump, “House of Cards” parece ainda mais vago e desagradável do que já havia sido nas suas trajetórias passadas. A série tem uma tendência sórdida a alimentar e ao mesmo tempo encobrir os piores impulsos da nossa política. 

Um exemplo perfeito disso é a trama dessa temporada de supressão de votos. Frank e sua esposa, Claire (Robin Wright), agora servindo como vice presidente, elaboram um plano maligno para roubar as eleições em nome do candidato republicano, governador Will Conway (Joel Kinnaman, que, exceto pelo seu papel em “Robocop”, precisa muito de um novo agente). Evocando a ameaça da Organização do Califado Islâmica, os Underwoods induzem vários estados de balanço (N.T.: estados americanos que, historicamente, são decisivos para os resultados das eleições presidenciais) a abrir “centros de votação” altamente militarizados, em um esforço de desacelerar a virada de Conway. E no dia das eleições, eles executam um ataque telefônico a um dos centros, levando vários estados a se recusarem a atestar os seus resultados e deixando a eleição presidencial impassível. 

Supressão de votos é um fenômeno real. Mas na versão de “House of Cards”, acontece por causa de duas pessoas ambiciosas e malignas que querem ganhar uma eleição. Essa é uma história de gênios do mal, não de tentativas racistas de impedir o voto de americanos negros, hispânicos e multirraciais. 

Como crítica, eu geralmente me oponho a dizer que uma série ou filme deveria ser alguma coisa além do tema que um artista escolheu. Mas neste caso, é notável observar que “House of Cards” pega um problema extremamente relevante e profundamente debatido e não apenas o reduz a uma motivação particular de dois indivíduos, mas também elimina completamente a possibilidade de preconceito racial. É difícil pensar em uma escolha que poderia enfatizar com mais clareza a ideia de que os problemas da política americana estão confinados a um grupo pequeno de maus elementos e não tem nada a ver com preconceito sistêmico ou com a estrutura da política. 

A cada momento em que é possível escolher entre um diagnóstico racional dos problemas da política americana e um enredo que retrata os nossos problemas como resultado de indivíduos malignos e conspirações sinistras, é enfadonhamente óbvio o caminho que “House of Cards” escolherá. 

Intrigas globais obscuras? Sim! E, bônus, eles tem retiros ao estilo Bohemian Grove (N.T.: Bohemian Grove é um acampamento pertencente ao clube privado Bohemian Club, onde líderes da elite política e econômica americana se reúnem anualmente) com rituais pagãos! Jornalistas que estão na verdade interessados em acumular poder para si mesmos? Sim! Congressistas em posições de supervisão que não tem nenhum interesse real na integridade do governo? Sim! Consultores políticos que pulam de candidato a candidato e de partido a partido? Duas vezes sim! Até para os padrões homicidas de “House of Cards”, uma trama em que Claire mata o seu amante, Tom Yates (Paul Sparks), que havia ameaçado revelar seus segredos, se desenvolve mal em um ambiente em que alguns conservadores de destaque disseminam teorias de conspiração ruins sobre o assassinato do membro do Comitê Democrático Nacional, Seth Rich. 

Se “House of Cards” tivesse avançado na visão de mundo de Trump, e tivesse feito isso de modo convincente e com um drama atraente, eu ficaria mais impressionada com tal audácia do que estou com o espetáculo abafado que é mostrado aqui. Mas porque os Underwoods não têm ideologia, “House of Cards” acaba não tendo mais familiaridade com um problema real do que é necessário para sustentar uma trama por um ou dois episódios. 

Trump pode não ter paixões políticas particularmente fortes, mas o seu alarmismo sobre crime urbano, esforços de hostilidade racial, ressentimento pelas elites e capacidade ilimitada de autopromoção têm sido elementos consistentes da sua figura pública. “House of Cards” pega a paranóia da era Trump e limpa de todo racismo, da “ansiedade econômica”, da epidemia de opioides, de suburbanos ansiosos e de uma economia que passa por mudanças estruturais radicais e não pode ser negociada de volta ao seu passado mítico. 

O tom paranóico da série dialoga não só com o medo de “elites globais” sinistras, mas também com o pensamento conspiratório que tem se espalhado por alguns setores da esquerda. Nenhuma pessoa realista ainda pensa que Trump está jogando uma partida de xadrez de oito linhas. Mas muitas pessoas ainda parecem ter esperança que Trump vai se revelar tão comprometido que ele será removido do cargo ou renunciará. A decisão de Frank Underwood no final da temporada de abandonar a presidência é uma resposta a esse desejo fútil, ao invés de um reconhecimento da bagunça complicada que é mais do que provável que esteja no nosso futuro. 

Isso não é levantar um tapete para mostrar o que está escondido embaixo dele, ou mesmo um sumário de uma eleição ao estilo Voo 93, como Michael Anton diz, sem fôlego, durante a campanha. É um argumento para desinteresse total. Em todo o desespero da série para fazer referência à era Trump, tem uma coisa que é ignorada. 

Em “House of Cards”, a revitalização cívica que incentivou as marchas de mulheres, um crescimento das ligações para os escritórios de congressistas e um aumento no número de potenciais candidatos é reduzido largamente a algumas pessoas gritando impotentes no portão da Casa Branca. Reconhecidamente, isso ameaçaria a ideia central da série de que política é apenas um jogo de status, e que ninguém se importa realmente com qualquer problema, até porque isso poderia impedir de se beneficiar por alguma política. 

Talvez isso seja conveniente se o seu objetivo é manter as pessoas grudadas na frente da tela, em vez de mostrar para elas um lado real e estimulante da política americana. Como os planos dos Underwoods, o embuste do final da temporada não muda o fato de que “House of Cards” não é nada além de um golpe de longo prazo.

Tradução de Andressa Muniz

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