Na capital da Finlândia, Helsinki, um programa de amparo utiliza a própria moradia como meio de recuperação social.| Foto: Bigstock
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Pelo sétimo ano consecutivo, a Finlândia vem conseguindo reduzir a quantidade de pessoas vivendo em condição de rua naquele país. Os dados fazem parte do mais recente relatório da ARA, a agência governamental finlandesa responsável pela implantação de políticas sociais de moradia, e mostram que a quantidade de sem-tetos hoje no país representa apenas um quarto do que era visto na Finlândia em 1987. O sucesso se deve a um programa criado nos Estados Unidos nos anos 1990, mas que foi extremamente aprimorado pelos escandinavos: a iniciativa “Housing First, ou “Moradia Primeiro”.

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A diferença entre este modelo e as formas tradicionais de amparo social é a ordem em que as medidas são tomadas. Normalmente, os programas sociais exigem que as pessoas em condição de rua primeiro reestruturem suas vidas – muitas vezes tendo que lidar com vícios em bebida e outras drogas – para assim terem condições de conseguir um emprego e pagar as contas. No modelo housing first, a primeira medida é garantir às pessoas uma casa, que é tida não como uma recompensa, mas sim como o alicerce sobre o qual ela pode reconstruir a própria vida.

“Perder a própria casa é uma experiência terrível, pode acontecer por inúmeras razões desde problemas financeiros, abuso de drogas, desemprego e até mesmo problemas no casamento”, explicou Heli Alkila, diretora de uma empresa ligada à Deaconess Foundation, uma das organizações que trabalham com a iniciativa na Finlândia.

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“No modelo tradicional, um apartamento é a última medida de apoio que é dada aos sem-teto, nunca a primeira. Pelo princípio ‘Housing First’ não tratamos o lar como uma recompensa por bom comportamento. Ele é sim um direito fundamental, uma medida de dignidade humana. Ter a própria casa e pagar o próprio aluguel traz um senso de segurança, o que facilita a reabilitação dessas pessoas”, explicou ela, em entrevista por email.

É importante frisar que os beneficiários do programa, como bem explicou Alkila, pagam para morar nas casas. Eles assinam um contrato formal de aluguel, com direitos e deveres bem estabelecidos. Pode parecer contraditório, já que uma pessoa que foi morar na rua por problemas financeiros, por exemplo, não teria a princípio condições de arcar com este custo. Mas é aqui que o programa Housing First mostra sua engenhosidade como um círculo virtuoso.

Organizações como a Deaconess Foundation pegam empréstimos do governo a juros baixos e investem na compra, reforma e construção dessas moradias populares. Eles então alugam os apartamentos para as pessoas em situação de rua, e atuam como facilitadores para que essas mesmas pessoas entrem nos programas sociais do governo finlandês e recebam uma determinada quantia em dinheiro – alguns desses programas exigem uma renovação cadastral mensal, o que pode exigir um pouco mais de quem está em situação tão vulnerável.

Com o valor recebido pelo aluguel das casas, as organizações pagam os empréstimos e o dinheiro volta para o governo. Elas também empregam assistentes sociais, presentes na maioria dos prédios de apartamentos e disponíveis para atender às necessidades dos moradores.

“Não dá para ficar sóbrio morando na rua”

Morar nas ruas, em qualquer lugar do mundo, pode ser uma das piores experiências pelas quais um ser humano está sujeito a passar. Mas na Finlândia, onde durante o inverno é comum as temperaturas chegarem à casa dos 30 graus negativos, é ainda mais terrível. De certa forma, isso explica a baixa desistência de quem entra no programa Housing First: em todo o país, de cada 5 pessoas que garantem o direito à moradia, 4 permanecem nas casas pelo tempo que for necessário (não há período máximo de permanência).

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Entre os contratos firmados com a Deaconess Foundation, esse índice é ainda menor. “Nosso serviço de ‘Housing First’ tem tido ótimos resultados, com apenas 2% dos residentes voltando a morar nas ruas”, disse Alkila.

Outra organização, a Y-Foundation, traz em seu site depoimentos de moradores do projeto Housing First. Um desses depoimentos, de um homem de 44 anos que preferiu não ter o nome revelado, é chocante. Ele conta que já teve que dormir dentro de uma lixeira, e que não esquece o tempo em que teve que dividir um banheiro público com outras cinco pessoas em pleno inverno. “Nós tínhamos um teto, mas certamente não era aquecido”, conta o homem.

Ele também revela ter bebido praticamente todos os dias enquanto esteve morando nas ruas, não para ficar bêbado, mas como uma forma de passar o tempo. “Ser um sem-teto significa beber todos os dias. Quando eu consegui meu apartamento, fiquei muitos meses sem beber nada de álcool. Não dá para ficar sóbrio quando você mora na rua, ninguém consegue.”

O homem conta que começou a ter problemas com moradia quando abandonou a própria casa para morar com uma namorada. O relacionamento não deu certo, e ele precisou sair direto para as ruas. “Agora, se qualquer coisa acontecer, eu posso simplesmente voltar para o meu apartamento. É mais fácil, porque eu tenho sempre as minhas chaves do meu apartamento no meu bolso.”

Finlândia em números

Quando se colocam lado a lado, os números de Finlândia e Brasil são de uma disparidade brutal. O país escandinavo tem pouco mais de 338 mil quilômetros quadrados de área territorial, o equivalente ao estado de Goiás. A população total do país em 2019 era estimada em pouco mais de 5,5 milhões de pessoas, praticamente o mesmo número de pessoas que formava o púbico-alvo da campanha de vacinação contra a gripe no estado de Minas Gerais em 2018.

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A renda média do finlandês em 2019, segundo o órgão oficial de estatísticas daquele país, foi de 3.398 euros, o que em conversão direta resulta em impressionantes R$ 20,7 mil. A título de comparação, o salário médio dos trabalhadores brasileiros no mesmo ano, segundo estudos do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), foi de R$ 2.413. A cifra é inferior à ajuda mínima oferecida pelo governo da Finlândia para seus beneficiários de programas sociais: 497 euros (equivalentes a mais de R$ 3 mil em conversão direta).

A realidade brasileira

O levantamento da ARA, citado no início da reportagem, fala em 4,6 mil pessoas ainda vivendo em situação de rua na Finlândia, a maioria nos arredores da capital Helsinki. No Brasil essa população é superior a 100 mil pessoas, segundo dados de 2016 do Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (Ipea).

Cuidar dessas pessoas é uma das atribuições do Ministério da Cidadania, da Mulher e dos Direitos Humanos. O modelo “Housing First” está no radar da pasta desde 2016. A iniciativa é tida “como a melhor resposta de políticas públicas” para pessoas em situação de rua, mas o ministério admite que que “estados, Distrito Federal, municípios e a sociedade civil ainda carecem de informações aprofundadas sobre a metodologia e principalmente sobre como implantar os projetos em suas localidades”, segundo nota enviada por email.

O documento cita dois projetos pilotos, um em Curitiba e outro em Porto Alegre. Do primeiro há pouca informação, apenas que o trabalho é feito em parceria com a Mitra da Arquidiocese de Curitiba e que o acesso a uma moradia permanente, e a consequente superação da situação de rua, trouxe melhoria da qualidade de vida dos atendidos.

Sobre o projeto na capital gaúcha, o ministério informa que das 70 pessoas atendidas 14 deixaram de fazer uso de substâncias psicoativas. Deste mesmo público, 12 moradores não precisaram mais de internação em clínicas de tratamento de saúde mental. Após o início do projeto, informa a nota, nenhum dos 70 moradores voltou para os abrigos coletivos da Assistência Social.

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Provocada a sugerir uma forma de implementar uma iniciativa parecida aqui no Brasil, Heli Alkila elencou algumas prioridades. Uma delas é aumentar a oferta de moradias dignas com preços acessíveis. Outra é contar com assistentes sociais realmente engajados no apoio aos “clientes”, como são chamados por ela os moradores.

“Os assistentes não podem desistir de seus clientes e nem perder as esperanças, ainda mais nos casos mais desafiadores. Eles precisam trabalhar juntos, assistentes e clientes, para que estes encontrem as soluções necessárias para permanecer nas moradias. A forma como os assistentes se engajam nesse trabalho, com justiça e respeito, ajuda a aumentar a confiança dos clientes nas suas próprias habilidades, o que acaba fortalecendo a confiança deles nas outras pessoas.”

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]