“Nada existe na realidade política de um país se não estiver primeiro em sua literatura”.
Hugo von Hofmannsthal, escritor austríaco
Mesmo aos que não pertencem às vetustas estirpes antediluvianas (e qual de nós pertence, com exceção de minha rabugenta vizinha de andar, cuja aparência recende a tempos imemoriais?), é dado saber que os profetas sempre tiveram papel proeminente na antecipação dos acontecimentos – e, por inexorável consequência, em sua realização.
Da Bíblia hebraica às mitologias greco-romanas, encontramos incontáveis exemplos de homens que, ao promover tais prodígios, desempenharam um papel decisivo nas conquistas morais e políticas de seus povos. Isaías, Elias, Moisés, Lao Tzu, Confúcio… Como constante em meio a tantas variáveis, a advertência de que a palavra de Deus (ou dos deuses, ou de algum Oráculo menor) é infalível – e que dela é arriscado tentar fugir ou desdenhar. Que o diga, entre outros, o desafortunado rei tebano que não conseguiu evitar o destino de patricida e incestuoso. São tudo favas contadas. E também incontestáveis águas passadas: porque o futuro não é mais o que tinha sido – e tudo parece indicar que a era do profetismo acabou. Ou, ao menos, era o que eu supunha, até fazer uma descoberta entre minhas estantes empoeiradas.
Na biblioteca de Borges (esclareça-se: de Antonio Fernando Borges, este que vos escreve), há uma prateleira dedicada à ficção científica e suas variantes filosóficas que atendem por utopias e distopias, essas incontáveis variações dos sonhos e pesadelos criados pela imaginação. Num dos extremos, um volume já bastante gasto (o quinto, a partir da esquerda) chamou-me outro dia a atenção – e embora já o tivesse lido e relido, acabei por sacá-lo da prateleira e me flagrei folheando-o, com um inesperado sentimento de novidade: o romance “profético” Admirável Mundo Novo, do inglês Aldous Huxley. Afinal, quem não o conhece? Eu, por exemplo, supunha que já tinha esgotado o essencial sobre o livro. Eu, como tantos de nós, estava devidamente equivocado.
E assim se passaram seis séculos… Como ‘assim’?
Em nossa época de ilimitado desapontamento, admira e consterna ver que boa parte da inquietação quanto ao futuro parece estritamente focada em resultados lotéricos, em prognósticos pandêmicos ou nas chances amorosas de tantos casais, através de aplicativos de encontros. Num tal presente (este nosso) marcado por tecnologias avançadas, comportamentos sem limites e um monitoramento das populações ao mesmo tempo exponencial e sutil, não há como negar que os prognósticos de Huxley em seu livro se confirmaram à plena – com uma exatidão que nenhum astrólogo de plantão teria arriscado. E afinal quem ainda não conhece todas essas antevisões?
Como se sabe, a história de Admirável Mundo Novo gira em torno de um Centro de Incubação e Condicionamento, onde as pessoas são literalmente produzidas a partir de uma avançada tecnologia genética e um esmerado condicionamento psicológico e emocional. O resultado é uma civilização rigorosamente estratificada em cinco castas que atendem às diferentes finalidades sociais, em graus decrescentes de inteligência e perfeição física: Alfa (com uma supercasta Alfa+), Beta (e sua elite Beta+), Gama, Delta e Ípsilon. Além da qualidade das criaturas, a própria quantidade é mantida sob controle, evitando excedentes demográficos.
Como sabe também mesmo quem nunca leu o romance, a sociedade planejada por Aldous Huxley se apoia em conquistas que já nos são familiares, à larga:
- o domínio tecnológico da reprodução humana, com ênfase exclusiva na fertilização in vitro;
- a implementação de avançadíssimos recursos contraceptivos e de estimulação química da libido;
- como primeira decorrência “natural”, uma sexualidade sem freios, voltada unicamente para o prazer;
- como segunda decorrência, menos “natural”, a dissolução (na verdade, proibição) da estrutura familiar, sem vínculos de casamento ou de paternidade;
- o uso regular de um psicotrópico de primeira linha, o Soma, que atua reduzindo a ansiedade, estresse, a tristeza, a angústia, e todo e qualquer sentimento negativo dos “humanos”;
- a aplicação (também sistemática) do que viria a ser conhecido como Programação Neurolinguística, condicionando de forma planejada os pensamentos e emoções dos “humanos”.
A isso se somem um punhado referências eruditas a Shakespeare, espécie de dever cívico-literário de todo inglês, e alguns tantos detalhes pirotécnicos (aliás presentes e também em outros autores, de Júlio Verne a H. G. Wells): foguetes poderosos e de uso cotidiano; cinemas sensitivos e interativos, que permitem ao público experimentar simultaneamente as sensações e emoções reproduzidas na tela; um serviço individualizado de transporte público que torna “obsoletos” aplicativos como Uber e 99.
Diante da impressionante acuidade de antecipação dos aspectos comportamentais dessa prisão feliz e sem grades, em geral ausentes ou minimizados em outros escritores futuristas, seria então o caso de bater o martelo, erguer a bandeira ou entregar o troféu, ao som da sentença proclamatória: “Aldous Huxley acertou em tudo!”.
Nem tanto, leitor – nem tanto. Ao contrário de George Orwell (cf. 1984), Huxley acertou em quase tudo. Menos na data: a Londres de seu “admirável” mundo se ambienta… por volta do ano de 2540! Não por acaso, em 1946 o autor se admirava de ver tantos daqueles devaneios científicos já se delineando no horizonte. Seu espanto parecia sincero: como assim, quase seis séculos antes?... Mais sincero do que o assombro, no entanto, era outro sentimento mais grave e doloroso: seu remorso.
Páginas de um profeta arrependido
Esta foi, caro leitor, a novidade que vim a conhecer no sovado volume, cujas páginas iniciais desavisadamente saltei, em busca do primeiro capítulo. E, mesmo encerrada a leitura, ou nas leituras seguintes, jamais tinha retornado a elas – e assim deixei escapar informações tão relevantes que praticamente reconfiguram toda a “cena do crime” e, em numerosos aspectos, transformam o perfil do nosso vilão – de vidente genial e acurado, para triste profeta arrependido.
Já não se fazem adivinhos como outrora. Se o velho Isaías se alegrou muitos séculos antes com a certeza de que o Messias anunciado viria de fato – e veio, com Jesus Cristo em pessoa –; se Elias, Amós ou Jeremias aceitaram sem vaidades o papel que lhes coube, de “ajudar a acontecer” acontecimentos futuros, o mesmo não se poderá dizer de um escritor futurista como Aldous Huxley, réu-confesso, nas referidas páginas, como uma espécie de profeta arrependido.
As páginas referidas integram um constrangido prefácio do próprio autor para a edição de 1946 de seu romance, admiravelmente aplaudido pelo público. Logo no parágrafo de abertura, ele estabelece o tom de seu mea-culpa:
“Todos os moralistas estão de acordo em que o remorso crônico é um sentimento dos mais indesejáveis. Se uma pessoa procedeu mal, arrependa-se, faça as reparações que puder e trate de comportar-se melhor da próxima vez. Não deve, de modo nenhum, pôr-se a remoer suas más ações. Espojar-se na lama não é a melhor maneira de ficar limpo”
Passando da vida real para a arte, Huxley vai aos poucos revelando a natureza e a intensidade do remorso de que pretende se desvencilhar, antes que se torne “crônico”:
“Também a arte tem a sua moral e grande parte das regras dessa moral é idêntica, ou pelo menos análoga, às regras da ética vulgar.”
Com a analogia, nosso profeta parece anunciar, em seu desconforto, que haveria coisas a reparar em seu romance – e a maioria delas de natureza ideológico-moral. Pois (como ele mesmo explicita) “tentar remendar uma obra defeituosa para lhe dar uma perfeição que ela não tinha (…), passar a idade madura a tentar remediar os pecados artísticos cometidos e legados por essa pessoa diferente que eu era na juventude, tudo isto certamente é vão e fútil”. Não é preciso ser espetacularmente brilhante pata entender que Huxley está falando dos outros defeitos não artísticos.
A ideia de livre-arbítrio, por exemplo, que ele via então com escárnio assumido:
“Na época em que o livro foi escrito, a ideia de que o livre-arbítrio foi concedido aos seres humanos para que pudessem escolher entre a demência e a loucura era uma noção que eu achava divertida e quem sabe perfeitamente verdadeira.”
Ao que tudo indica (ou, pelo menos, o prefácio assim sugere), alguma coisa mudou de lugar na consciência de Huxley. “Hoje [i.e., em 1946] já não tenho nenhum desejo de demonstrar que é impossível ter um espírito sadio”. E, embora, logo adiante, o autor admita que a saúde do espírito continua sendo um “fenômeno muito raro”, sua mudança de foco já lhe permite tecer críticas e alertas para os perigos de uma sociedade tão minuciosamente organizada. Quinze anos depois de o ter escrito, Huxley já admite que, por ser um livro sobre o futuro, o mais relevante sobre Admirável Mundo Novo é conferir se suas profecias têm ou não a chance de se realizarem. O resto, podemos deduzir, seria simplesmente o resto.
Infelizmente, não é bem assim. Em sua crítica ao modelo diabólico de sociedade que elaborou no livro, Huxley arrisca um mea-culpa que não é dos mais inocentes, sugerindo que “a revolução verdadeiramente revolucionária não acontecerá no mundo exterior, mas na alma e na carne dos seres humanos”. Nas entrelinhas (ou nem tanto assim), podemos ver nítida a ideia de que ele pode ter abandonado aquele modelo de revolução, mas o ideal revolucionário ainda não o tinha abandonado. Confusamente, chega a afirmar que, para além do ideal de revolução política de Robespierre ou de revolução econômica de um Babeuf, o “verdadeiro apóstolo da revolução verdadeiramente revolucionária” seria ninguém menos do que o Marquês de Sade!
Mas, passado o susto inicial da leitura, logo vemos que a ousada assertiva é parte de uma “estratégia mais ampla” (não necessariamente “melhor”), pois logo a seguir nosso contrito profeta parece botar ordem na casa, e sentencia: “Sade era um louco, e o fim mais ou menos consciente da sua revolução era o caos e a destruição universal”. Aparências costumam enganar, e aqui mais uma vez não se foge à regra: se o insano marquês não era ainda o modelo de revolução, isso não quer dizer que não exista um ideal a ser rastreado. Huxley permanece prisioneiro da armadilha de sempre buscar um “mundo admirável”, e por conta disso dedica uma parte substancial do prefácio a enumerar novas sugestões para a Boa Revolução – mas delas é mais prudente e elegante poupar o leitor.
A bem da verdade, cabe registrar que em 1958 Huxley publicou uma coletânea de ensaios a que chamou Regresso ao Admirável Mundo Novo, fazendo um balanço inquietante – e mais detalhado do que o do prefácio – sobre a realização antecipada de suas projeções literárias. Dessa vez, ele admitiu mais abertamente, e por certo com maior remorso, que “o pesadelo da organização total emergiu do futuro distante e agora está à nossa espera, ao virarmos a esquina”.
De volta para um futuro já passado
“Mas voltando ao futuro: se eu tornasse agora a escrever este livro (…)”: tal passagem do Prefácio – prometo ser a última com que fustigo e martirizo o leitor – soou-me como uma alusão sugestiva (mas sei que também absurda e extemporânea) a uma cena do filme De Volta para o Futuro, de Robert Zemeckis: aquela, justamente, em que o divertido personagem do cientista-louco Emmett Brown se confessa arrependido de ter criado a máquina do tempo – e promete destruí-la. Dessa frase de Huxley, mas também por extensão de todo o Prefácio, ficou-me a impressão de que, se pudesse voltar atrás alguns anos, Aldous Huxley teria preferido “desescrever” seu Admirável Mundo Novo. Pena que, diferentemente da fantasia do filme de Zemeckis, a realidade (passada ou presente) seja por definição irrevogável.
Quando reiterou, na frase que o tornaria mais famoso do que seus livros, que “nada existe na realidade política de um país se não estiver primeiro em sua Literatura” –, Hugo von Hofmannsthal estava apenas alertando que a imaginação sempre vem antes da ação. O que equivale a dizer que nada se pode concretizar em ato se não puder ser previamente concebido, em termos de ideias e valores. O que não é passível de ser pensado é impossível de ser realizado.
Entrando por esta vereda de raciocínio, é válido observar que todo o clima brutal contra a nobreza e a Igreja desencadeado pela Queda da Bastilha (vulgo Revolução Francesa) já estava definido e idealizado nas obras anticlericais e autoritárias de Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau, da mesma forma que as ideias postas em prática pelos bolcheviques estão prenunciadas desde sempre no perfil dos intelectuais que protagonizam romances como Os Demônios e Crime e Castigo, de Dostoiévski, ambientados décadas antes da eclosão dos fatos. Em muitos sentidos, toda literatura é sempre de antecipação.
Por certo, há exemplos mais pontuais e hiperbólicos do que o do arrependido Huxley: veja-se o pouco sutil H. G.Wells que, não satisfeito em remodelar o futuro em seus livros (cf. A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos), propôs-se a transformá-lo com as recomendações totalitárias elencadas no assombroso A Conspiração Aberta – que ainda hoje deve andar semeando caraminholas em garotos de miolo-mole e em coroas endinheirados em busca de mais poder. Mas, se o leitor apressado quiser extrair das presentes linhas suas próprias ilações conspiratórias, não fique tão animado. Tecer uma teoria da conspiração é como construir uma bomba atômica: qualquer estudante secundarista pode fazer isso, se dispuser do tutorial adequado na Internet e, é claro, de um pouco de urânio ou plutônio.
No plano intelectual, também não será difícil encontrar o equivalente desse material radioativo – pois está disponível mais próximo do que se possa imaginar… Digamos, por exemplo, que esteja à disposição no próprio romance de Aldous Huxley: sobre ele, muito já se especulou que as semelhanças de seu admirável mundo novo com nossa realidade pouco admirável não são as proverbiais meras coincidências. Em mais de uma dessas teorias, consta que o escritor inglês teria sido contratado (a pergunta que não quer calar: por quem?) para elaborar um modelo de mundo tecnológica e politicamente controlado. A conferir.
Repare o leitor que aqui já estamos muitos passos à frente do conhecido modelo que em 1949 o sociólogo Robert K. Merton chamou de “profecia autorrealizável”. Merton sugeriu que, quando esperam ou acreditam que alguma coisa está para acontecer, pessoas agem como se a profecia já fosse real e assim acabam por efetivamente a realizar. Em breve síntese: ao ser assumida como verdadeira – mesmo sendo falsa – uma previsão pode influenciar o comportamento das pessoas, levando-as a tornar a profecia real.
Eis enfim, leitor, o triste destino das profecias contemporâneas: o de serem fabricadas – de tal modo que já nem possam ser chamadas de… profecias. Definitivamente (e minha rabugenta vizinha talvez possa confirmar): arrependidos ou não, já não se fazem profetas como os d’antanho.