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Num livro surpreendente, Mary Eberstadt argumenta que as políticas identitárias atuais nasceram das feridas abertas pela Revolução Sexual.
Num livro surpreendente, Mary Eberstadt argumenta que as políticas identitárias atuais nasceram das feridas abertas pela Revolução Sexual.| Foto: Pixabay

Com Primal Screams: How The Sexual Revolution Created Identity Politics [Gritos primitivos: como a Revolução Sexual deu origem às políticas identitárias], Mary Eberstadt aprofunda sua análise inteligente da Revolução Seuxal, análise que teve início com seu primeiro livro, Home Alone America [América sozinha em casa]. Vemos uma pensadora que esteve envolvida com seu tema de estudo por muito tempo, que compreendeu sua complexidade e que o analisou partindo de várias perspectivas, uma pensadora que dá a seus leitores uma obra sobre a qual se debruçarem – obra que merece elogios.

Em Primal Screams, Eberstadt diz que as políticas identitárias de hoje em dia nasceram de uma ferida antropológica profunda aberta pela Revolução Sexual. Isto é, a ascensão das políticas identitárias revelam que as pessoas estão passando por uma crise de identidade porque a Revolução Sexual provocou o colapso da família e, por consequência, do indivíduo. Isso gerou uma crise para toda a Humanidade no mundo ocidental. A pergunta fundamental “quem sou eu?” não pode mais ser respondida diretamente. Quando respondida é por meio de uma identidade alternativa. Eberstadt chama isso de “o uivo psíquico mais premente do nosso tempo”.

O livro é desenvolvido de uma forma parecida cmo seu livro anterior, How the West Really Lost God [Como o Ocidente realmente perdeu Deus]. Ele começa com um resumo do assunto e de sua nova teoria (“A Grande Dispersão”), na qual ela demonstra, por meio de uma análise social e cultural, a dispersão das famílias humanas, três capítulos de provas impressionantes que mostram a conexão entre A Grande Dispersão e a manifestação contemporânea das políticas identitárias, e uma conclusão. Ao contrário de seus livros anteriores, contudo, depois da conclusão temos a oportunidade de ler comentários de Rod Dreher, Mark Lilla e Peter Thiel. O livro termina com um posfácio no qual Eberstadt escreve um breve libelo.

Identidade, pertencimento e pecado

A pergunta “quem sou eu?” nos acompanha desde o Éden, juntamente com perguntas como “A onde pertenço?”, “Qual o objetivo da vida?”, e assim por diante. Essas perguntas e outras semelhantes são a “busca por um sentido que sempre impulsionou o coração humano”, como escreveu o Papa João Paulo II na encíclica Fides et Ratio. Houve um tempo em que essas perguntas eram respondidas com uma segurança maior em todas as esferas da vida: família, amigos, religião e comunidade religiosa, e outras esferas de convívio, como a cidade. Como escrevi na National Affairs, os laços compartilhados pelas pessoas nessas esferas sobrepostas moldam a identidade e dão à pessoa uma sensação de fazer parte de um todo maior. Hoje o ser humano está uma grave crise de identidade não porque esteja (ou não) fazendo a pergunta “quem sou eu?”, e sim porque aqueles aspecto da vida que costumava propiciar respostas profundas se erodiu.

O que provocou essa erosão? Pensadores e autores discordam, dando respostas diferentes a essa pergunta. Eu argumento que a raiz do problema é um colapso da nossa compreensão metafísica do mundo e da pessoa humana, e as sementes dessa perda foram plantadas por Ockham e Lutero, bem antes de Descartes e Voltaire. Assim como ocorre com várias ideias, alguns semeiam, outras irrigam e outros colhem. Mas por que essa colheita metafísica teve início? Bom, as respostas a essa pergunta remontam ao Éden, quando Adão e Eva se apropriaram da prerrogativa de decidirem o que é bom e o que é mau.

A história do homem é uma história de oscilações. Oscilamos entre tempos em que permitimos que Deus reclame para si sua justa autoridade sobre essa pergunta e tempos em que a tiramos de Suas mãos e reclamamos a autoridade para nós mesmos. Isso acontece no arco histórico humano e acontece particularmente na jornada de cada pessoa.

Em sua resposta a Eberstadt, Mark Lilla reclama que conservadores são “viciados em narrativas de decadência”, que nossa investigação e análise nos levam a culpar algo ou alguém por nossos males sociais. Ele chega a desenvolver um argumento interessante: “O mais convincente motivo para os problemas sociais sempre é aquele que remonta às nossas escolhas erradas feitas no Éden. Mas é difícil mobilizar politicamente as pessoas para que elas combatam um pecado de que somos todos culpados. A política exige que haja serpentes”. Minha resposta a isso é: ele tem razão, até certo ponto, mas as duas coisas não são excludentes. Eberstadt nunca escreve que a única causa da ascensão das políticas identitárias é a Revolução Sexual. O que ela faz é mostrar como essa revolução afetou profundamente a sociedade humana. Em última análise, essa é a origem do problema – isto é, o fato de a política exigir serpentes é, em si, uma das consequências do nosso pecado original.

Os medos do homem moderno

Ao escreverem Gaudium Et Spes, em 1965, os sacerdotes do Concílio já percebiam os medos do homem e faziam um resumo deles. O homem é inseguro de si mesmo, graças a uma discrepância entre a riqueza e o poder econômico de alguns e a pobreza de outros, uma discrepância entre a liberdade irrestrita e as novas formas de “escravização social e psicológica”, a ascensão de ideologias destrutivas e o insaciável desejo por um homem materialmente avançado sem progresso espiritual. Durante o Concílio Vaticano II, os sacerdotes reconheceram que tinham um problema antropológico em mãos. Esse problema antropológico foi uma das causas (dentre várias) da Revolução Sexual.

Eberstadt argumenta que nossa crise de identidade está atrelada ao individualismo radical que prosperou com a Revolução Sexual. Ela mostra que o colapso da família foi o que permitiu esse individualismo radical. E, apesar de não dizer explicitamente, acredito que ela concorda que isso é uma via de mão dupla. O individualismo cresceu ao longo da história norte-americana e esse crescimento foi um terreno fértil para a Revolução Sexual. A Revolução Sexual foi uma espécie de precipício no qual a família se jogou. Isso, por sua vez, deu impulsou à dispersão, o que levou ao individualismo radical.

A Revolução Sexual não surgiu do nada. Ela foi uma consequência natural de um espírito democratizante descontrolado. Ela fez mais sucesso nas sociedades democráticas que foram perdendo os elementos da sociedade tradicional desde que – em geral por meio de uma revolução – se afastaram delas. Esses países ocidentais ao mesmo tempo também se transformaram nos países mais ricos do mundo. Mark Lilla tem razão em dizer que “é difícil entender a enorme revolução nas sociedades humanas – e, diria, na psicologia humana – criada pela prosperidade e tecnologia em nosso tempo”. O amor pela prosperidade material, juntamente com o individualismo (que, na época de Tocqueville, era um neologismo que ele usava para descrever arquetipicamente os Estados Unidos), provocaram um caos na sociedade. Por exemplo, sociólogos descobriram uma correlação entre riqueza e divórcio. Quando, por exemplo, uma sociedade está em recessão, a taxa de divórcio se estabiliza e cai.

A Revolução Sexual e as sociedades tradicionais

Ainda temos que observar que as ideias da Revolução Sexual tiveram um sucesso restrito em países ainda compostos por sociedades tradicionais. Essas ideias nocivas foram mitigadas por sociedades que mantiveram seus elementos tradicionais quanto ao casamento, família e política. Essas sociedades não pensavam em termos de direitos individuais ou pessoais, nem eram democráticas em suas estruturas políticas.

Quando a pílula anticoncepcional chegou ao Iraque, por exemplo, muitas das mulheres cristãs educadas e socialmente conservadoras começaram a tomá-la, reduzindo, portanto, o tamanho de suas famílias. Como também nota Lilla, o “emburguesamento” acontece com o aumento da riqueza e também com os “gostos e exigências da classe média”. Depois que a pílula anticoncepcional se tornou comum, as iraquianas cristãs raramente tiveram mais do que dois ou três filhos. Com cinco filhos, eu era tão diferente na subcultura imigrante iraquiana-americana que alguns achavam que eu tinha me convertido ao mormonismo.

Ainda assim, pessoas que desprezam o papel da Revolução Sexual e que dizem (acertadamente) que havia abuso sexual e promiscuidade antes da Revolução Sexual não levam em consideração o fato de que a permissividade criada pela Revolução Sexual abrange todos os problemas que existiam antes. Uma coisa é a classe aristocrática mergulhar na imoralidade aqui e ali. Outra bem diferente é toda a sociedade viver cotidianamente sob esse ethos.

Eberstadt afirma que a Revolução Sexual é agora um dogma intocável da esquerda. Eu perguntaria aos que se submetem a esse dogma se eles negam que uma busca generalizada pelo prazer sexual individual deu mesmo origem a um aumento historicamente sem precedentes nos lares desfeitos e nos filhos de pais solteiros. Também perguntaria como eles propõem ajudar uma filha de pais separados que está em conflito constante por causa do trauma pessoa pelo qual passou.

Recuperando nosso humanismo

A tese de Mary Eberstadt é acertada e ela reforça isso com provas. Ela demonstra não apenas a devastação familiar da Revolução Sexual mas também a crise de identidade resultante disso, a manifestação externa que necessariamente se seguiu à revolução. E embora ela defensa a tese de que a Revolução Sexual criou uma crise de identidade em massa e que, portanto, ela fez surgirem as políticas identitárias, a autora escreve, no começo do livro, que reconhece que há outros fatores a serem considerados também.

Dizer que o fenômeno das políticas identitárias tem mais de uma causa não é desvalorizar as outras. E, assim como o colapso das famílias não é o único motivo para o identitarianismo, também há várias causas por causas de outros fenômenos que exercem importantes papeis na nossa divisão nacional, para além das políticas identitárias.

Honestamente, é bastante difícil resistir ao individualismo e seus benefícios, até mesmo para conservadores que talvez conheçam intelectualmente seu caráter destrutivo. Todos devemos estar na defensiva. Primal Screams é cheio de ideias. Eberstadt identifica e oferece insights importantes sobre nosso desejo disseminado de reconhecimento, o comportamento infantilizado daqueles que usam a política identitária como arma política, o ressentimento da apropriação cultural, a insegurança da privação doméstica, a androginia como estratégia de sobrevivência, o movimento #MeToo, o feminismo moderno e as causas de sua vulgarização, e mais.

Em seu comentário sobre Primal Screams, Rod Dreher escreve que, assim como na Roma Antiga, nós nos esquecemos da arte de criar e manter famílias. Eu iria além. Há muito acredito que nos esquecemos de como ser humanos. Isso é, em essência, o que temos de reaprender. O processo de restauração é árduo e não é para os fracos. Ainda assim, a sociedade humana se restaurou antes. Nada é impossível com Deus.

Luma Simms é bolsista do Centro de Ética e Políticas Públicas e estuda a vida e o pensamento dos imigrantes. Seus textos já foram publicados na National Affairs, Law and Liberty, The Wall Street Journal e National Review.

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês

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