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Guerra cultural

Identitarismo quer mudar significado das palavras. Dicionários estão obedecendo?

Ilustração de balas de revólver saindo de uma boca
Dicionários da língua portuguesa ainda não aderiram ao identitarismo, mas já mostram alguns sinais de vieses políticos que prenunciam futura aderência. (Foto: Bigstock / digitalista)

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O dicionário de inglês americano Merriam-Webster tem atraído a ira dos conservadores por redefinir palavras de uma forma que consideram mais amena ao progressismo do que ao significado usual das palavras. As principais alterações foram feitas em 2020, ano em que a pauta identitária racial atingiu um zênite na cultura americana. A palavra “racismo” foi alterada a pedido de uma ativista para incluir “opressão sistêmica”. Ao fazer a alteração, o editor Alex Chambers agradeceu à ativista por sua insistência e pediu desculpas “pelo dano ou ofensa que causamos pela falha em tratar da questão mais cedo”.

Já as palavras relacionadas ao gênero tiveram alterações que consistem especialmente em fazer ressalvas. Enquanto a edição de 2009 do Merriam-Webster associava feminino a “ter alguma qualidade (como a gentileza) associada ao sexo feminino”, em 2020 foi introduzida a ressalva “às vezes associada ao sexo feminino”. A fêmea passou de um ser que definitivamente “produz óvulos” para um ser que faz isso só “tipicamente”. O termo “identidade de gênero” também foi introduzido.

No Brasil, tentativas de tomar as rédeas da língua portuguesa e guiá-la para outros propósitos estão mais em listas de termos ou expressões não recomendados. Uma das mais notórias é a cartilha “Politicamente Correto & Direitos Humanos” publicada em 2004 por uma secretaria da presidência de Lula. Com aparência de dicionário especializado, a cartilha defende, por exemplo, que “veado” é uma referência preconceituosa a homossexuais masculinos, mas lista “entendido” entre as “expressões adequadas”. Também alega que “elemento” é um termo que tem o propósito de “desqualificar pessoas suspeitas de praticar delitos”.

A cartilha não tem o mesmo respeito de dicionários da língua portuguesa como Aurélio, Houaiss e Silveira Bueno. A reportagem buscou diferentes edições desses dicionários, impressas e disponíveis na internet, com anos de diferença, para investigar se algum fenômeno parecido com o observado em inglês no Merriam-Webster poderia estar em curso no Brasil. Também checou o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras, que não dá definições, mas serve como uma lista de palavras reconhecidas; e o dicionário Priberam online, de Portugal.

Verbetes de gênero e sexualidade na língua portuguesa

Ao definir feminismo (“doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade”, “teoria que sustenta a igualdade (...) de ambos os sexos”), o Grande Dicionário Houaiss online — oferecido pelo UOL e publicado desde 2012 — sugere uma comparação com “masculinismo”, definido de forma negativa três vezes como “presunção de primazia dos direitos dos homens na sociedade”, “defesa do comportamento, valores etc. tidos como caracteristicamente masculinos, sem equivalência com os das mulheres” e “antifeminismo, machismo”.

Comparativamente, a primeira edição do Houaiss, publicado pela Objetiva em 2001, traz essencialmente a mesma definição de feminismo, mas sem a sugestão de comparar com “masculinismo”, verbete que inexiste nela. Assim como há ativistas feministas que dizem que buscam a igualdade entre sexos, também há ativistas masculinistas que dizem o mesmo a respeito do masculinismo. É possível achar contraexemplos de ideias e ações anti-igualitárias em ambos os movimentos, em especial entre os ativistas que se definem como “radicais”. A inovação no Houaiss online desde a sua primeira edição toma um lado nesse embate político.

O minidicionário Silveira Bueno, em segunda edição da FTD em 2007, é mais sucinto: feminismo é “movimento que prega a igualdade entre os sexos”. O verbete “masculinismo” também não consta. Ocorre o mesmo em diferentes versões do Aurélio, como a segunda edição de 1986 da Nova Fronteira, o minidicionário em oitava edição da Positivo, de 2010, e a quinta edição do mesmo ano e mesma editora usada no aplicativo Aurélio Digital. O VOLP aceita as palavras “feminismo”, “feminista”, “masculinismo” e “masculinista”, já o Priberam dá uma definição genérica de “masculinismo”, sem relação com as questões políticas, e é o único dos consultados que inclui o verbete “femismo” e o define como “linha de pensamento segundo a qual a mulher domina socialmente o homem e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas”, o que é bastante similar à sua definição de “machismo”, trocando os sexos.

Entre os dicionários consultados, não foram encontradas definições de “homem”, “mulher”, “menina” e “menino” que tenham os mesmos sinais de influência do identitarismo que os encontrados no Merriam-Webster. Curiosamente, na contramão do identitarismo de gênero, o Houaiss desde a primeira edição inclui entre as definições de homem uma pessoa do sexo masculino “em que sobressaem qualidades como coragem, força, determinação, vigor sexual”, dando como exemplo “o João é homem suficiente para enfrentar esse revés”. E, como as versões mais antigas do Merriam-Webster, define mulher sem ressalvas como um ser “sensível, delicado, afetivo, intuitivo”.

“Homofobia” está ausente do Aurélio de 1986, mas presente nas edições mais novas, além do Houaiss e do Silveira Bueno, que trazem também “homossexualismo”, que desagrada aos ativistas, junto com “homossexualidade”, que preferem. Também são oferecidos como sinônimos “heterossexualidade” e “heterossexualismo” para pessoas com atração pelo sexo oposto, o que desafia a ideia de muitos ativistas de que o sufixo “-ismo” só é usado para uma conotação antiquada de ser gay como uma doença.

Também não estão na segunda edição do Aurélio os verbetes “sexismo” e “misandria” (aversão a homens), mas se encontram “misoginia” (aversão a mulheres) e “misantropia” (aversão a pessoas).

Questões raciais nos dicionários

Os dicionários consultados não apresentam a versão identitária de “denegrir” das redes sociais, que alegam que o verbo é uma alusão pejorativa à pele negra. Onde mencionam “nas coxas” ou “fazer nas coxas”, também não apresentam a falsa etimologia segundo a qual isso seria uma referência a telhas feitas usando coxas de escravos como moldes. Os principais dicionários da língua portuguesa também não fazem menção à redefinição de “racismo” pelos identitários, que querem introduzir “poder” na semântica da palavra para vetar que o racismo possa acontecer em direções surpreendentes em que negros também podem ser racistas em vez de apenas vítimas de racismo. Também, por enquanto, não aderiram à formulação “racismo estrutural” ou “racismo sistêmico”.

Uma palavra que é tratada como indesejável pelo ativismo antirracista, mas era bastante comum há poucos anos, é “mulato”. Aqui, as etimologias concordam com os ativistas que a palavra tem relação com mula. O Dicionário Etimológico do professor emérito do Colégio Pedro II Antenor Nascentes, de 1955, enfatiza que essa comparação é pelo cruzamento de linhagens diferentes: “Como significava um produto híbrido [do cavalo com a burra ou do jumento com a égua], passou depois a aplicar-se ao filho de homem branco e mulher negra ou vice-versa”. A primeira edição do Houaiss dá “burro pequeno” como uma das definições. Nascentes cita um exemplo desse uso no trovador medieval Gil Vicente, rejeita uma etimologia alternativa que põe como raiz o árabe mowallad (filho de árabe com estrangeiro), e menciona neutramente a alternativa de Fernando Ortiz, segundo o qual “mulato” veio “do mandinga malato, [que significa] clareado, não escuro”.

No entanto, os ativistas e a cartilha politicamente correta do primeiro governo Lula alegam que a raiz de mulato em mula não é só pela hibridização de duas linhagens diferentes de equídeos, mas que teria o elemento principal de desumanização pela comparação ao animal. É verdade que mulato foi empregado de forma pejorativa contra muitas pessoas, inclusive o Padre Antônio Vieira (1608-1697). Mas havia e ainda há empregos neutros e até positivos. Como é o uso que faz o significado, os ativistas são os atuais maiores responsáveis pela crescente percepção de que a palavra “mulato” é só negativa e nunca neutra ou positiva. É uma profecia autocumprida.

Neologismos

Outra área da língua em que o ativismo identitário faz pressão é em neologismos e novas expressões que caem na boca da imprensa e dela para povo. O dicionário Merriam-Webster faz um trabalho de constante triagem e inclusão dessas inovações. Por exemplo, incluiu o verbo “deplatform”, algo como “remover de uma plataforma”, um verbo que identitários usam para atenuar sua frequente adesão a táticas de censura. Palavras que se tornam tendência entre libertários e conservadores, como um novo sentido para “based” (algo como “bem embasado”, usado para elogiar pessoas que dizem coisas que ressoam com suas crenças), não recebem a mesma atenção.

Na nossa língua, o dicionário português Priberam adicionou um sentido brasileiro informal de lacrar: “destacar-se por ser ou fazer algo com excelência, qualidade ou sucesso; ser incrível”. Mitar também foi incluído com sentido semelhante: “fazer algo com muita qualidade e de forma extraordinária ou lendária; destacar-se pela excelência na realização de algo”. Nisso o Priberam não é acompanhado pelo Aurélio ou pelo Houaiss — para os dicionários brasileiros e para a ABL, o verbo mitar não existe. Parece que os dicionaristas portugueses estão acompanhando mais a política tupiniquim que os brasileiros.

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