Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Opinião

“Igrejinha progressista”: divulgação científica brasileira tem viés identitário e esquerdista

Divulgação científica, uma "igrejinha progressista"
O trabalho de quem se vê como Prometeu entregando o fogo científico para as massas é marcado de indiferença ou antipatia por conservadores e liberais. (Foto: Eli Vieira com Dall-E)

Ouça este conteúdo

Quando o Instituto Serrapilheira foi fundado, em março de 2017, ele declarou como missão “valorizar o conhecimento científico e aumentar sua visibilidade” no Brasil, como diz o site da entidade, que é privada e sem fins lucrativos.

Mas existe uma lei quase tão implacável quanto as leis de Newton e Mendel exercendo influência sobre esse tipo de organização: é a Primeira Lei de O’Sullivan. Ela foi assim formulada em artigo de 27 de outubro de 1989 na National Review, pelo próprio John O’Sullivan, jornalista britânico que escreveu discursos oficiais para Margaret Thatcher:

“Todas as organizações que não são explicitamente de direita com o tempo se tornarão de esquerda.”

John O'Sullivan

Ele cita como exemplos a Anistia Internacional e, mais profeticamente, a ACLU (União Americana de Liberdades Civis) e a Fundação Ford. A ACLU praticamente abandonou sua missão de defesa da liberdade de expressão pela pauta progressista identitária, e a Fundação Ford é hoje uma das principais financiadoras do ativismo progressista — inclusive no Brasil. O mesmo caminho previsível aconteceria com o Serrapilheira.

“Pontos de vista” que ficam nas aparências e breve período de “neutralidade”

Na seção “Quem somos” de sua página oficial na internet, em outubro de 2018, o instituto Serrapilheira já listava entre seus objetivos, no fim da lista, “incentivar a diversidade de raça e de gênero na ciência no Brasil”. Com o passar do tempo, a página foi ficando mais verbosa, introduzindo mais elementos com valência ideológica. Em maio de 2020, a “Quem somos” introduziu a seção “Nossos valores”, sendo o primeiro deles “diversidade na ciência”.

Este valor da “diversidade” era importante porque “grandes resultados advêm de uma ciência praticada a partir da incerteza e do risco” e “essa é uma ciência possível quando há liberdade de ideias e pluralidade de pontos de vista”.

A menção a “risco” parece ser uma admissão de que esse valor não é uma unanimidade política. O trecho pode passar uma impressão falsa de que o interesse é em pluralidade ideológica.

Não é: como eles próprios explicaram, no mesmo parágrafo: “é essencial um grupo mais diverso de jovens pesquisadores que pensem a ciência sob diferentes olhares”, por isso “incentivamos a diversidade étnico-racial ou de gênero na ciência no Brasil”. Ou seja, os tais “pontos de vista” diversos na verdade são marcas de fenótipo.

Por acaso a etnicidade ou o gênero de alguém condiciona a forma como a pessoa pensa? As inovações de Marie Curie (ou seu marido) sobre a radioatividade vieram de seu sexo?  O identitarismo parece querer concluir que sim, mas sabe que em público é melhor dizer que não.

Para entender o que há de errado nisso, deixo a resposta para a escritora de romances policiais Dorothy Sayers, em um famoso ensaio de 1938:

“O que é repugnante a todo ser humano é ser pensado sempre como membro de uma categoria e não como uma pessoa individual. O que é irrazoável e irritante é presumir que todos os gostos e preferências que se tem estão condicionados à categoria à qual se pertence.”

Dorothy Sayers

Surpreendentemente, a página que define a identidade do Instituto Serrapilheira teve um período de neutralidade política. O vocabulário acima sobre raça e gênero desapareceu entre os dias 13 e 26 de maio de 2020 (confira o antes e o depois). Foi estranha a súbita neutralidade, depois de a entidade ter publicado um manual com nove páginas “de boas práticas em diversidade na ciência” com o mesmo vocabulário anterior. Sinal de tensão interna?

Mas entre março e outubro de 2023, o vocabulário com “risco” de ser politizado voltou e ficou. O instituto voltou a dizer que incentiva “diversidade de gênero e raça na ciência”, e agora outra pauta progressista foi abraçada: duas menções a “combate à desinformação”, área cuja legitimidade acadêmica e científica levou uma surra recentemente nas páginas da revista Nature.

A neutralidade temporária da página “Quem somos” segue a premissa da Lei de O’Sullivan de suposta falta de posicionamento político. Antes, durante e depois, é possível encontrar viés nas redes sociais e notícias selecionadas do Serrapilheira. Encontrei termos como “masculinidade tóxica”, uma palestra de destaque de uma “filósofa e ativista” fundadora do Instituto Geledés da Mulher Negra (financiado por Soros), apoio à ativista pró-descriminalização do aborto Debora Diniz, entre outros exemplos.

Durante o período de “neutralidade”, o Instituto Serrapilheira deu destaque à opinião de Márcia Lima, professora de sociologia da USP: “Não existe objetividade científica no mundo que possa prescindir do olhar da diversidade”. Esta opinião faz parte da constelação de ideias de ceticismo exagerado contra a ciência dentro da academia que a filósofa britânica Susan Haack, em seu livro “Defendendo a Ciência — Dentro do Razoável” (Stentor Books, 2023), chamou de “novo cinismo”. Lima ajudou a fazer o manual do instituto mencionado. “Não existe meritocracia se não há igualdade”, acrescentou de forma oracular.

O que ceticismo contra a objetividade da ciência, ou que segura essa objetividade como refém até que os cientistas se ajoelhem diante de preceitos progressistas, está fazendo na página de um instituto criado para promover a ciência? Minha explicação mais curta é, mais uma vez, viés político.

Ninguém está dizendo aqui que nada do que o Instituto Serrapilheira faz tem valor, muito pelo contrário. O problema desse viés político é que tem o potencial de afastar pessoas cujo temperamento favorece autonomia individual, hierarquia baseada em competência e ceticismo contra soluções utópicas, em suma, pessoas que não são de esquerda ou progressistas. Em outras palavras: o viés institucional atua contra a importantíssima diversidade de pensamento, não a favor.

Quando duas metas com frequência antagônicas — divulgar ciência e promover ideologia — aparecem lado a lado, a pergunta imediata é: qual vai ganhar na queda de braço? Vimos o que aconteceu com Harvard, que usa “Veritas” como lema público, mas “justiça social” como lema oculto, promovendo uma cultura acadêmica de censura cuja incoerência custou o cargo de uma reitora e milhões de dólares de doadores decepcionados.

Influenciadores científicos e sua antipatia por tudo o que não for canhoto

Todo mundo tem viés político e tribal. Eu tenho, você tem. Mas quando alguém diz se dedicar ao papel de Prometeu de levar a chama do conhecimento do Olimpo às massas (uma imagem que facilmente cai em autoelogio), o que se espera é que a pessoa ao menos tenha algum interesse de aplicar o mesmo rigor intelectual sobre as ideias e valores da política.

Quando o viés desta pessoa é favorável ao progressismo, uma visão política popular nas universidades que tem tido uma obsessão pela erradicação completa dos preconceitos (às vezes a altos custos), é uma dupla falha que não só não se interesse por conhecer o liberalismo e o conservadorismo, mas expresse preconceito contra pessoas com essas posições.

O primeiro divulgador científico que vou acusar de preconceito contra conservadores sou eu mesmo. Felizmente, um preconceito que abandonei após ler autores como Roger Scruton, John Kekes e Thomas Sowell — o último é interessante o suficiente para ter sido citado pelo psicólogo de viés progressista Steven Pinker, mas continua sendo esnobado pela maioria de seus correligionários políticos. No meu antigo Twitter, há mais de dez anos, repliquei uma pergunta do astrônomo Carl Sagan em seu último livro “Bilhões e Bilhões” (Companhia de Bolso, 2020, original de 1997): “o que os conservadores estão conservando?”, e dei minha própria resposta: “privilégios”.

Esta única palavra, e seu uso pejorativo, já era suficiente para mostrar para qual tribo eu estava tentando demonstrar lealdade. Eu estava mais agindo por instinto do que colocando as ferramentas intelectuais que aprendi com o próprio Sagan em prática.

Similarmente, o paleontólogo Paulo Miranda do Nascimento, mais conhecido como Pirula, que atua no YouTube fazendo ensaios geralmente de qualidade com 40 minutos ou mais, disse em 15 de abril de 2019 no Twitter que “em até 5 anos, a crença no terraplanismo será majoritária entre os evangélicos neopentecostais brasileiros. Escrevam, me cobrem”. Passou o prazo. Cobraram. A resposta à cobrança: “não [se] pode afirmar que não aconteceu” e “não generalizei os evangélicos”.

O Datafolha tem acompanhado o terraplanismo no país. Em julho 2019, 7% dos brasileiros acreditavam que a Terra é plana. Em abril 2024, quando se completou o prazo da profecia de Pirula, o número foi de 8% (não se pode afirmar um aumento, contudo). As pesquisas não viram diferenças significativas entre eleitores de Lula ou Bolsonaro quanto a isso.

O Datafolha não dividiu por crença religiosa, mas sabemos pelo Ipea, em 2022, que evangélicos são 32% dos brasileiros, e pouco mais da metade desses são pentecostais. Se a previsão de Pirula fosse acertada, muito mais que 8% dos brasileiros teriam que ser terraplanistas agora. A conta não fecha. Se a sugestão não foi baseada em conhecimento, veio de onde? Desconfio que o erro dele é parecido com o meu.

O único divulgador de ciência com o privilégio de ser citado na página “Quem somos” do Instituto Serapilheira é o biólogo Átila Iamarino, que atua há mais de dez anos em blogs e no YouTube. Ele teve apoio do instituto quando atingiu o zênite de sua notoriedade: ao divulgar os números de infectados e vítimas da Covid-19, especialmente no começo da pandemia.

Iamarino baseou-se um modelo do Imperial College de Londres e previu em março de 2020 que, em cinco meses, um milhão de pessoas morreriam de Covid no Brasil. No canal MyNews, ele disse dias depois que em um cenário de abertura completa o número de vítimas seria de três milhões. Passados os cinco meses, no final de agosto, morreram 121.381 pessoas de Covid, segundo o Ministério da Saúde. A perda de tantas vidas humanas evidentemente é uma tragédia, nunca é demais ressaltar. Mas previsões tão errôneas são prejudiciais porque muitas vezes orientam políticas públicas, que tenderão a ser falhas por causa da disparidade nos dados. Átila pediu para o canal MyNews remover a previsão de três milhões.

O que isso tem a ver com viés político? As tribos políticas não são iguais em comportamento. Sowell teorizou que o alarmismo é muito mais comum entre pessoas progressistas ou de esquerda. O alarme serve para criar um ambiente em que o progressista emerge como o detentor da solução perfeita, que vê mais longe e tem um senso mais apurado de justiça que os outros: Cassandra tem mais virtudes que os tolos que não a ouvem.

Quando há problemas complexos como pandemias, em que o pouco que se tem de conhecimento e capacidade de previsão é cercado e perfurado de ignorância, há sempre escolha. E foi isso o que aconteceu na Suécia, que não fez lockdowns e teve a maior postura de respeito a liberdades de todo o Ocidente.

Dois experientes epidemiologistas suecos olharam para o mesmo modelo do Imperial College usado pelo biólogo brasileiro e, por conhecerem o histórico de previsões catastróficas que não se concretizaram daquele grupo de pesquisa, resolveram fazer diferente e ignorar as ameaças e acusações dos alarmistas contra a Suécia. O mais experiente deles, Johan Giesecke, disse o seguinte sobre a previsão do grupo a respeito do mal da vaca louca em 2001: “Eles pensaram que 50 mil pessoas morreriam. Então quantas morreram? 157”.

Resultado: o país em que cabeças mais frias prevaleceram obteve um dos melhores resultados de toda a Europa na pandemia. No fim, Átila tentou se justificar dizendo que até os confinamentos feitos pela metade no Brasil, sem endosso do governo federal, tiveram alguma eficácia. Não é o que diz uma revisão dos estudos, que concluiu que até os mais rigorosos confinamentos não funcionaram.

Não é só no alarmismo que Átila mostra suas preferências políticas às vezes divorciadas das evidências. Durante a pandemia, ele teve uma curiosa insistência em citar e recitar números da China, mesmo com denúncias de fraudes no número de mortes, por exemplo na comparação com a atividade dos crematórios, sob a justificativa que eram os dados que se tinha para trabalhar. Recebeu um notório elogio da embaixada da ditadura comunista.

Em janeiro de 2021, publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo um texto com o título “Autoritarismo necessário” e chamada “Ou será preciso calar as vozes antivacina ou tornar a vacina compulsória”. Censura ou coerção foi a falsa dicotomia que ofereceu. Ele chamou os invasores do Capitólio de “terroristas” e parecia contente pela censura imposta a Donald Trump no Facebook e no Twitter (a censura também envolveu uma reportagem verdadeira sobre o laptop do filho de Joe Biden, Hunter).

Entre os divulgadores de ciência, por influência de autores como Carl Sagan e Michael Shermer, é comum que se considerem “céticos”. Mas o texto de Átila é cheio de certezas: “cloroquina não funciona. Questão resolvida”. Felizmente outras pessoas de esquerda são mais céticas, como se viu recentemente entre colunistas do Nexo e d’O Globo. Também recomenda frágeis obras sobre “desinformação” e “fake news”.

O biólogo mais tarde se arrependeu do título “Autoritarismo necessário”, mas não do conteúdo do texto. Talvez o título tenha sido um lapso de sinceridade exagerada. Mais comum no progressismo é defender o autoritarismo e o preconceito que não ousam dizer seu próprio nome.

Não foi o único a fazer sincericídio. Pesquisas têm mostrado que muitos acadêmicos estão contentes com o domínio da esquerda nas universidades e há áreas em que mais de 50% confessam que discriminariam ativamente colegas conservadores. Quantos se confessariam preconceituosos? Suspeito que quase nenhum.

Viés político é inibidor da curiosidade e da multiplicidade de hipóteses

Dei a mim mesmo, Pirula e Átila como exemplos porque somos pessoas relativamente públicas e podemos lidar com críticas.

De muitos outros exemplos que eu poderia apontar do viés político inibindo a curiosidade — pois elege poucas hipóteses aceitáveis num universo maior de ideias viáveis — vou encerrar com um dos mais feios, e o que me trouxe a esta Gazeta do Povo pela primeira vez: divulgadores científicos progressistas se juntaram para fazer a alegação sem substância de que a genética da mestiçagem brasileira seria uma prova de que ela resulta na maior parte, ou até exclusivamente, do estupro.

Respondi a isso com a minha estreia no jornal em outubro de 2020, e mais uma vez em dezembro de 2023. Minha mensagem é que há muitas outras hipóteses (melhores) para explicar a desproporção de contribuição de grupos raciais à mestiçagem brasileira na herança materna e paterna. Preciso repetir periodicamente a mensagem porque são alguns dos próprios geneticistas, inclusive participantes dos estudos, que vão à imprensa defender essa ideia absurda para a qual não dispõem de nenhum método interno à genética para corroboração. E defendem porque, assim como eu uma década atrás falando em “privilégios”, sabem que isso conta pontos de “boa pessoa” para a tribo política que domina a maior parte das universidades, redações e instituições burocráticas.

Há nove anos, legendei um trecho de palestra psicólogo social Jonathan Haidt, que se revelou um dos pensadores mais importantes dos nossos tempos. Haidt, em seus estudos sistemáticos das ideologias políticas, apontou que esquerda e direita resistem à ciência de formas diferentes. A direita resiste a teorias sobre a idade do planeta, o parentesco e mudança das espécies, a participação do ser humano no aquecimento global. A esquerda resiste à pesquisa do quociente de inteligência, uma das mais bem replicadas de toda a psicologia. Já vi ataques baixos a essa pesquisa dos divulgadores brasileiros.

A tribo progressista também resiste a diferenças (especialmente cerebrais e comportamentais) entre os sexos, vira “criacionista” acima do pescoço, não para propor um Criador, mas uma Criadora: a cultura, ou, como dizem, “construção social”. Finalmente, em seu projeto antipreconceito, a esquerda finge que não vê as boas pesquisas feitas sobre a precisão dos estereótipos, que mostram que o senso comum não é irracional.

Como defende Susan Haack, o senso comum é o pai da ciência. Assim, quem tem desconfiança contra o senso comum, e crê que ele nada mais é que um emaranhado de ódios, preconceitos e fake news, também não é grande amigo da ciência, mesmo que a bajule com um preconceito reverso de exaltar as marcas superficiais de cientificidade (um preconceito chamado cientificismo).

Não acho que tomei o elixir antiviés e que agora estou livre de cometer erros similares. A visão que tenho de racionalidade é que ela é mais bem feita em grupo, com uma cultura de investigação aberta, liberdade de expressão e uma dose cavalar de coragem. Uma andorinha só não faz verão.

Mas é hora de a divulgação científica, que às vezes mais parece uma “igrejinha progressista”, reconhecer que com frequência sua antipatia contra o senso comum, a tradição e os que desconfiam de poderes centralizados a levou muitas vezes à cegueira, à falta de curiosidade, a atuar contra os valores epistêmicos e éticos que alega esposar.

Fazer alarmismo a respeito dos terraplanistas, criacionistas, homeopatas e psicanalistas não está funcionando mais para sinalizar virtudes. Especialmente quando o telhado acadêmico é de vidro e abriga uma série de ideias tolas como a mania da “construção social”, o zumbi do marxismo que continua comendo cérebros apesar de ter morrido na economia, a Máquina do Medo do Imperial College e a insensatez do identitarismo.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.