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Imperiofobia: o que a escola não nos contou sobre o Império Espanhol

Derrota da "Armada Invencible", em 1588, durante a guerra anglo-espanhola
Derrota da "Armada Invencible", em 1588, durante a guerra anglo-espanhola (Foto: Wikipedia)

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Quem concluiu o ensino regular no Brasil possivelmente tem a ideia de que os espanhóis do período das grandes navegações eram bárbaros, incultos, intolerantes, que tiveram muita sorte por terem encontrado toneladas de ouro em um lugar inexplorado, e que foram lançados à periferia da história tão logo dissiparam a fortuna. Em suma, seres “incivilizados”. Não é incomum portanto pensarmos que os maiores piratas do Caribe eram espanhóis, quando na verdade eram ingleses, apenas para citar um exemplo.

A visão distorcida de determinados fatos históricos, entretanto, não é obra do acaso. É o que conta a historiadora espanhola Maria Elvira Roca Barea, em seu livro “Imperiofobia e lenda negra: Roma, Rússia, Estados Unidos e o Império Espanhol”, traduzido recentemente pela editora Vide Editorial (e cuja edição espanhola já chegou à expressiva 30ª edição).

Outros acontecimentos pouco conhecidos talvez deem mais dimensão de como a importância que se dá a determinados fatos históricos moldou erroneamente a nossa visão: 1) depois da derrota da chamada “Armada Invencible”, a Inglaterra produziu a maior frota naval conhecida até a Primeira Guerra Mundial para invadir Cartagena das Índias e, a partir daí, dominar a América Espanhola, sofrendo uma derrota aterradora; 2) a Espanha foi responsável por descobrir e cartografar praticamente todas as ilhas e rotas marítimas do maior oceano do mundo, o Pacífico; 3) a primeira moeda internacional foi o Real de a Ocho, que começou a circular pelo império espanhol no século XVI e era aceita até mesmo nos Estados Unidos até a primeira metade do século XIX.

Foi o escritor espanhol Julián Juderías que cunhou o termo Leyenda Negra, em livro homônimo, publicado em 1914, para defender seu povo contra a ideia de que “eram intolerantes e fanáticos”, pedindo que a história de seu país fosse estudada “sem entusiasmos tolos e sem preconceitos injustos”. Porém, durante o século XX, o tema não recebeu a devida atenção até ganhar nova relevância graças a Roca Barea, que conseguiu enquadrar o tema dentro de uma perspectiva mais ampla.

A autora mostra que a operação sistemática de difamações contra uma nação imperial não é uma excepcionalidade histórica sofrida pela Espanha, mas algo recorrente na história, quando um império cresce a ponto de ser quase insuperável econômica e militarmente. Tese que chama de “imperiofobia”.

Ao contrário do que aconteceu com outros impérios, como Roma ou mesmo os Estados Unidos, porém, os ataques atingiram tão profundamente a alma espanhola, que são poucos aqueles, dentro da própria Espanha, com coragem para defender seu país contra uma historiografia estrangeira, normalmente de vertente franco-inglesa, que deturpa ou ignora os feitos relevantes do país vizinho, por vezes transformando vitórias em fracassos.

São três as características da imperiofobia levantadas pela historiadora: o império inconsciente, o desejo profundo de riqueza e poder e a inferioridade moral/racial. O primeiro refere-se a mostrar que o império em questão não se estabeleceu pela competência pessoal e a qualidade das instituições deste povo, mas por um mero acaso da fortuna, que lhe sorriu de repente, para desventura de outros. O segundo é o desejo insaciável de explorar riquezas e dominar inescrupulosamente outros povos. O terceiro, refere-se à baixa qualidade moral dos dominadores (é comum ouvir que a colonização ibérica foi feita meramente por arrivistas, ladrões e prostitutas).

Para a difusão dessa visão (ou narrativa, como se diz hoje) foi usada uma intensa máquina de propaganda que, ao longo do tempo, alterou os pesos dos eventos históricos, dando relevo a alguns e suprimindo outros.

Os exemplos disso abundam no livro de Barea, para aqueles que querem se aprofundar. Mas um dos principais movimentos de opinião dirigidos contra a Espanha foram decorrentes da guerra de independência da Holanda.

Sobre esse último tópico, vale a pena explorar sua relação com a história do Brasil.

O que o Brasil tem a ver com isso

Normalmente não nos damos conta, mas o Brasil esteve imbricado nos eventos da chamada Guerra dos 80 anos. Até de forma importante: foi perto do período da União Ibérica (1580 a 1640) que a famosa Batalha dos Guararapes (1648 a 1649), apontada por alguns como símbolo do nascimento da consciência nacional, foi travada contra os invasores holandeses.

Pela própria ordem dos acontecimentos, podemos constatar o seguinte:

  1. O Brasil foi descoberto pouco antes de que o protestantismo ganhasse força no norte da Europa e, portanto, começou a ser construído dentro de um contexto das chamadas “guerras de religião”. Os jesuítas tiveram um papel preponderante na educação dos países católicos e, consequentemente, do Brasil. 
  2. O Brasil foi, durante quase 100 anos, parte do Império Espanhol e esteve necessariamente implicado na guerra contra a Holanda.  
  3. A expulsão dos holandeses de Pernambuco (Guararapes) se deu pouco após o fim da União Ibérica e durante um período de consolidação da Holanda como um país independente e de sua expansão comercial e marítima.

Não seria de admirar que a propaganda de guerra holandesa, que veremos com mais detalhe adiante, atingisse em alguma medida o Brasil, dado que, pela união política, pelo relacionamento com a Igreja Católica, pela semelhante (embora não idêntica) forma de expansão ultramarina e pelos projetos de civilização que portavam, Portugal e Espanha estavam neste período concorrendo (isto é, correndo lado a lado) pelos mesmos objetivos.

Objetivos que, por óbvio, chocavam-se com os das potências marítimas em busca de ascensão no período: Holanda e Inglaterra.

Um estudo específico sobre o período, enfocando o Império Português, é algo que a mera leitura do livro por um brasileiro sugere imediatamente.

Mas voltemos nosso olhar para a Guerra dos 80 anos.

Da propaganda à enciclopédia

É preciso contextualizar o cenário geopolítico do período. Carlos V, rei do Sacro-Império Romano-Germânico, nascido e criado em Flandres (atual Holanda), era o monarca de meia Europa, e legou a seu filho, Filipe II, um império gigantesco, que sob esta coroa chegou ao cume de sua expansão. Além das terras de ultramar de Portugal e Espanha, Filipe II ainda detinha os domínios do sul da Itália e do território correspondente à Bélgica e à Holanda.

Esta enorme zona de poder e influência acirrou as rivalidades europeias. No período, França, Inglaterra e a rebelde Holanda foram os principais rivais do Império Espanhol.

A Holanda, enquanto nação independente, não existia até o século XVI, mas uma parte da oligarquia local, sobretudo aquela ligada ao protestantismo calvinista, desejava a independência do país.

Não se pretende aqui analisar a Guerra dos 80 anos, suas razões e todas as questões envolvidas. Toda forma de governo tem seus prós e contras, e os detalhes desta história são vastos e controversos. Contudo, é fundamental saber que: 1) Filipe II era filho de um flamenco, portanto, tinha total legitimidade sobre o território; 2) havia muitos nobres locais fiéis ao rei da Espanha, que lutaram a seu favor na guerra.

O uso da imprensa (então uma descoberta técnica relativamente recente) contra o poder imperial foi, portanto, massivo na Holanda para ganhar apoio e legitimidade interna durante a guerra.

Esse uso é citado por Roca Barea, mas quem melhor o descreve é o historiador americano Philip W. Powell, em seu livro “Tree of Hate” [Árvore do Ódio, em tradução livre], no qual consta um capítulo somente sobre o período, chamado “Guerra de Papel”.

Assim discorre Powell, citando P.A.M Geurts [que escreveu “De Nederlandse Opstand in de Pamfletten” ou A Revolta Holandesa nos Panfletos, em tradução livre],  sobre a necessidade que tinham os insurretos de angariar apoio interno para a Guerra dos 80 anos: “O inimigo teve de ser pintado como o diabo, em prol dos irresolutos e duvidosos, que eram sempre a maioria da população que tinham de convencer. Muitos folhetos foram empregados neste pouco nobre mas necessário assunto”.

Dentre os inúmeros panfletos que foram usados como propaganda de guerra, aquele que alcançou os mais amplos e duradouros efeitos foi a “Apologia de Orange” de 1580.

Nele constam:

  • Ataques aos ministros do rei em vez de ao próprio soberano, justamente para evitar dissidências internas.
  • Enormes exageros sobre os poderes e feitos da inquisição, embora a inquisição espanhola não tenha sequer se instalado na Holanda. 
  • Formação de uma opinião sobre a crueldade da Espanha tanto nas guerras locais, quanto em alusões e exageros a guerras contras os índios nas Américas.
  • Ênfase em presumir que a Espanha pretendia dominar o mundo inteiro. 
  • Emprego propagandístico da Noite de São Bartolomeu, atribuindo a culpa aos espanhóis 
  • Formação de uma corrente de opinião segundo a qual os governadores espanhóis da Holanda eram fantoches do Papa, atingindo dois inimigos com um só golpe: Espanha e Igreja Católica.

Powell também traz exemplos de inúmeros panfletos que eram publicados contra o Império Espanhol. Entre eles, há um datado de 1587 e reimpresso em 1608, intitulado “Considerações gerais que todos os amantes da Pátria devem ter em conta seriamente sobre o proposto Tratado de Paz com os Espanhóis”. Sob esse gracioso nome, a peça diz que o rei mandou assassinar seu filho “por desobediência”, e também sua esposa para “facilitar suas inclinações ao adultério”, entre outros exageros sobre a inquisição e a expansão americana.

Tal propaganda foi batida e rebatida ao longo de gerações e teve reflexo para muito além do período de 80 anos em que se fixa a historiografia da guerra, dado que o interesse comercial dos holandeses nos domínios hispano-portugueses não se encerrou com o fim do conflito.

Na última parte do livro, Roca Barea descreve como essa propaganda foi se consolidar na versão oficial dos livros didáticos. Graças aos iluministas franceses, os preconceitos contra a Espanha perderam seu verniz anticatólico e anti-imperial e recebem uma versão “enciclopédica”.

A versão iluminista “interessa sobretudo porque é aquela destinada a perdurar e a incrustar-se como uma parte constitutiva da modernidade por meio do liberalismo. É aquela que aparta Espanha, não mais de Deus, mas da civilização e da modernidade”, descreve ela.

Essa versão se encontra já no huguenote Pierre Bayle (1647-1706), um dos pioneiros no tema; na Carta 78 das “Cartas persas” e em “Do espírito das leis” de Montesquieu; em Voltaire; em Guillaume-Thomas Raynal; e na própria “Encyclopédie”, nos artigos escritos por Louis de Jaucourt, e em uma série de outras obras do período.

O iluminismo consolidou na França, e logo em todo o Ocidente, uma nova classe falante com poder de decidir o que era certo ou errado, justo ou injusto; suplantando gradativamente o poder social que antes era de exclusividade da Igreja.

Essa história mereceria uma análise à parte, mas o que interessa aqui é como Roca Barea mostra que os tópicos de propaganda antiespanhola foram aproveitados pelos iluministas para criar a versão “enciclopédica” da Espanha, que é mais ou menos a que chegou até nós.

Esse aspecto dá elementos suficientes para entender a importância dessa obra, que fez sucesso do outro lado do Atlântico, e quantos campos de pesquisa a leitura pode abrir. Ademais, há um forte indício de que nosso “complexo de vira-latas” pode ter origem, mesmo que tangencialmente, nos ataques dirigidos ao Império Espanhol.

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