“Incels”, abreviatura de celibatários involuntários, é o termo que descreve as pessoas que não conseguem ter relacionamentos amorosos. Na cultura da internet, o termo se refere mais especificamente a um grupo de homens heterossexuais que se reúnem em comunidades online para compartilhar suas frustrações, atribuindo seus fracassos amorosos à crueldade da sociedade e à superficialidade das mulheres.
O termo ficou mais conhecido após um motorista ter atropelado pedestres com uma van em Toronto, deixando dez mortos e 15 feridos, em abril. Antes de cometer o crime, o autor do ataque havia deixado uma mensagem nas redes sociais fazendo referência à “rebelião incel” e expressando admiração por outro criminoso, que matou seis colegas estudantes e se matou na Califórnia, em 2014, depois de postar um vídeo em que descrevia sua raiva contra as mulheres que o rejeitaram.
Curiosamente, o termo ‘incels’ foi cunhado por uma mulher, duas décadas atrás. Ela queria criar uma comunidade para que pessoas solitárias, como ela mesma, buscassem apoio. O “Involuntary Celibacy Project” era um site que reunia artigos e servia de espaço de discussão a quem não conseguia encontrar um relacionamento, como um grupo de apoio nos primórdios da internet. O tempo passou, e a mulher entregou o site para outra pessoa. A comunidade seguiu existindo e se espalhando para outros sites da internet, e hoje o termo acabou ficando relacionado com as ideias tóxicas divulgadas nas comunidades atuais.
Leia também: Por que as pessoas se comportam mal na internet?
Logo após o ataque no Canadá, o jornal The Guardian conversou com a criadora da comunidade original, Alana, que não quis ter o seu sobrenome divulgado. “Eu me sinto como a cientista que descobriu a fissão nuclear, e depois descobre que ela está sendo usada como arma de guerra”, disse ela ao jornal.
Como tudo começou
O maior fórum dos incels era uma comunidade no Reddit que foi banida em 2017. Este fórum em língua inglesa, que tinha cerca de 40 mil participantes, era menos um grupo de apoio entre pessoas tímidas com dificuldades de relacionamento, e mais uma plataforma para ressentimento e discursos misóginos.
Os seus usuários colocavam a culpa da sua inabilidade de convencer mulheres a se relacionar com eles em homens mais atraentes (os “machos alfa”), nas mulheres, por serem superficiais, e na sociedade, por inventar padrões que excluem alguns homens.
Não demorou para que discursos de ódio contra as mulheres e a defesa de atos violentos, como estupro, começassem. Para alguns, se uma mulher não quisesse fazer sexo como eles mereciam, eles teriam direito de forçá-la.
O Reddit baniu a comunidade principal, mas outras parecidas continuam existindo no site. A gota d’água para a extinção do fórum foi uma postagem em que um usuário foi encorajado e recebeu instruções detalhadas sobre como castrar o seu colega de quarto, que tinha uma namorada e era considerado atraente (um “Chad”, na gíria do grupo).
Que efeitos pode sentir um jovem que mergulha em comunidades que promovem uma cultura que desumaniza as mulheres? Essas discussões online e fantasias com violência podem virar violência na vida real?
Para o psiquiatra Luiz Cuschnir, coordenador do Grupo de Gêneros do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a violência “na vida real” só reflete a violência que existe dentro de cada um, e cada caso é um caso.
“O consumo de notícias e eventos, os relacionamentos afetivos baseados em desrespeito e desvalorização, o estímulo do artificial e superficial, são por si só expressões da exigência que se faz das pessoas serem de determinadas maneiras que violentam a sua essência, cobrando-as dia algo que não conseguem ser. Geram insatisfação que leva a violência. Eventualmente essas pessoas podem se aproximar de grupos, identificando-se com causas que, quando mal conduzidas, em vez de propiciar liberdade de escolha de uma vida melhor para cada um, tomam o rumo de agressão e rebelião ao invés de inclusão e amor”, explicou Cuschnir.
Nossas convicções: A valorização da mulher
Apenas uma ínfima minoria de incels estaria disposta a usar de violência ou terrorismo, e o movimento não é uma ameaça no mesmo nível de grupos terroristas como o Estado Islâmico, de acordo com artigo da Vox. Mesmo assim, o autor alerta para essa nova forma de perigo, "um testemunho do poder das comunidades online de radicalizar jovens frustrados a partir de suas mágoas mais pessoais e dolorosas".
Ross Haenfler, sociólogo e professor do Grinnell College (EUA), disse em artigo no site The Conversation, publicado após o massacre de Toronto, que a maioria dos incels não vai cometer um tiroteio em massa, mas que "a colisão tóxica da sensação agravada de ter direito com a facilidade de acesso a armas [nos Estados Unidos] sugere que sem mudanças significativas na masculinidade, as tragédias vão continuar".
"A 'rebelião incel' não é nada rebelde. Ela sinaliza um recuo às formas clássicas de dominação masculina", afirmou Haenfler.
Rejeição
A Gazeta do Povo conversou com um brasileiro que frequentava a comunidade Incels e outras similares no Reddit, mas que deixou de visitar esses fóruns por causa do “derrotismo e negatividade” dos grupos, embora não tenha mudado a sua mentalidade em relação a relacionamentos.
“Eu me sentia em casa, pois eram lugares com pessoas como eu, solitárias e que nunca conheceram nada além de rejeição e fracasso com o sexo oposto; um lugar em que eu poderia desabafar, pois as pessoas lá sabiam exatamente como era estar na mesma situação, e não ficariam me dando conselhos vazios, que já ouvi milhões de vezes”, disse o rapaz de 28 anos, que não quis se identificar.
Ele conta que as postagens misturavam desabafos de usuários lamentando sua situação e textos mais agressivos, com “discurso de ódio”.
Para ele, existe incompreensão e ódio contra pessoas como ele, resultado de uma minoria mais agressiva. “As pessoas subestimam o mal que a solidão e a rejeição podem fazer a uma pessoa. É algo que pode tornar o cara cínico, amargo, frustrado. E nessa espiral de sentimentos ruins, nem todos têm a resiliência mental para sair inteiro”, afirmou o homem, que acredita que muitos incels estão irreparavelmente quebrados por dentro, e que não existe ajuda para que eles voltem ao normal, nesses casos.
“Sinceramente, não sei se estou quebrado, meu sentimento principal é mais apatia do que ódio ou revolta”, ressaltou, acrescentando que não tem a intenção de fazer as pessoas sentirem pena dos incels.