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Se o Senado dos Estados Unidos confirmar – e tudo indica que o fará, já que a maioria é republicana –, Amy Coney Barrett, juíza do Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Sétimo Circuito, em Chicago, vai se tornar a 103ª ministra da Suprema Corte do país, ou, como dizem por lá, “juíza associada”. Ela foi a escolhida de Donald Trump para ocupar a vaga aberta com a morte da progressista Ruth Bader Ginsburg, no dia 18 de setembro, aos 87 anos. Quando isso acontecer, Trump terá nomeado um terço do mais alto tribunal norte-americano.
Assim como os dois que vieram antes dela, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, Barrett é assumidamente conservadora e se reconhece como originalista. Mas o que, de fato, isso significa?
Antes de tudo, é preciso compreender que a Constituição dos Estados Unidos remonta ao fim do século 18 e teve seu corpo originário de artigos aprovado pelos chamados Founding Fathers, os Pais Fundadores da América, que estiveram por trás da independência das Treze Colônias na América do Norte da Grã-Bretanha. Trata-se de uma Carta Magna extremamente enxuta, com somente sete artigos e 27 emendas. Ao contrário do Brasil, portanto, que está em sua sétima Constituição, os EUA guiam-se pelo mesmo texto constitucional desde a época em que se tornaram uma nação independente.
Levando isso em consideração, um magistrado originalista é aquele que busca compreender o significado da Constituição conforme o que foi fixado no momento de sua adoção. A interpretação do texto, nesse sentido, deveria ocorrer de acordo com seu significado original, como o próprio nome dado a essa linha de raciocínio sugere, em consonância com a intenção que os Pais Fundadores tinham à época da promulgação da Carta.
“Um originalista dirá que se você interpreta demais a Constituição, você está ‘traindo’ o texto constitucional. O originalismo é o oposto do chamado ‘constitucionalismo vivo’, que entende que a interpretação da Constituição deve ser atualizada conforme a sociedade se transforma”, afirma José Rodrigo Rodriguez, professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
A fim de entender como a interpretação originalista se daria na prática, o professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Guilherme Brenner Lucchesi cita como exemplo a Quarta Emenda à Constituição dos EUA, que discorre, entre outros pontos, sobre os limites à busca e apreensão de papéis (documentos).
“Um juiz originalista leria da seguinte forma: se fala em ‘papel’, então se trata de um documento físico; um documento eletrônico, um arquivo em PDF, não é papel e não estaria, assim, protegido pelo texto da Constituição. Já um magistrado que entende a Constituição como um ‘organismo vivo’ diria que a proteção que se espera ter sobre um documento em papel é a mesma que se esperaria ter sobre qualquer outro tipo de documento, inclusive eletrônico”, explica.
Argumenta-se que o originalismo visa, de algum modo, evitar uma espécie de “ativismo judicial”, um papel “criativo” do julgador. Nesse sentido, os originalistas defendem que não é papel do Poder Judiciário criar, rejeitar ou emendar leis, mas declarar (ou não) a constitucionalidade delas – conforme, obviamente, a intenção original da Constituição norte-americana e de suas emendas.
“A respeito do ‘ativismo judicial’, depende do lado em que você está. Aqueles que, no debate americano, pensam nos termos do constitucionalismo vivo, vão dizer que o papel da Corte é atualizar a Constituição conforme a sociedade muda, que o texto não pode ficar ‘morto’. Já um juiz mais conservador vai dizer que quem ‘deturpa’ o sentido original do texto constitucional está sendo ativista. Ser ativista ou não, nesse registro, vai depender do lado em que você está”, opina Rodriguez.
As raízes do originalismo
O termo “originalismo” passou a ser utilizado mais comumente para definir essa linha de pensamento após aparecer em um artigo do jurista norte-americano Paul Brest, que já foi reitor da Escola de Direito da Universidade de Stanford, publicado na Boston University Law Review no início dos anos 1980.
A discussão sobre o originalismo ganhou força nas décadas de 1970 e 1980, como contraposição ao período que ficou conhecido na Suprema Corte dos EUA como Corte Warren, quando o constitucionalismo vivo reinou no tribunal.
Entre outubro de 1953 e 1969, a Corte foi presidida por Earl Warren. Curiosamente, o juiz, que também foi governador da Califórnia, era do Partido Republicano, mas defendia que a legenda fosse mais progressista. Sob a batuta de Warren, a Suprema Corte desse período, marcado pela revolução dos direitos civis, ficou conhecida como a mais progressista da história dos Estados Unidos.
No mesmo ano da aposentadoria de Warren, contudo, Richard Nixon assumiu a presidência dos EUA, o que gerou uma espécie de “onda conservadora” no país, que se refletiu, naturalmente, na Justiça. Três de quatro presidentes que vieram logo após Nixon eram republicanos. A exceção foi Jimmy Carter, que governou os EUA entre janeiro de 1977 e 1981 e falhou na busca pela reeleição.
Se Amy Coney Barrett for mesmo confirmada na Suprema Corte, Trump repetirá, inclusive, um feito impressionante de Nixon: ter indicado três juízes ao mais alto tribunal norte-americano durante o primeiro mandato, o que vai consolidar a maioria conversadora na Corte, que deve permanecer assim por muitos anos ainda.
“Trump nomeou Neil Gorsuch, em 2017, e Brett Kavanaugh, em 2018, deixando muito clara uma maioria conservadora de cinco contra quatro no tribunal. Agora, com a morte de Ruth Bader Ginsburg e a nomeação de Barrett, teremos seis conservadores. Ainda que Joe Biden vença as eleições deste ano, dificilmente os democratas vão conseguir, no curto prazo, reconstruir uma maioria progressista na Suprema Corte”, aponta Guilherme Brenner Lucchesi, da UFPR.
Antonin Scalia, o originalista
Ainda que não tenha sido o “criador” da linha de interpretação originalista da Constituição dos Estados Unidos, o principal expoente desse pensamento na Suprema Corte foi, sem dúvidas, Antonin Scalia. Nomeado pelo republicano Ronald Reagan, ficou no cargo entre setembro de 1986 e fevereiro de 2016, quando faleceu.
Nos Estados Unidos, diferentemente do que ocorre no Brasil, não há aposentadoria compulsória para os juízes da Suprema Corte, que podem permanecer no cargo até a morte, se assim desejarem – o que aconteceu também com Ginsburg. Apesar de já estar com 79 anos à época, a morte de Scalia, em decorrência de uma parada cardíaca enquanto o magistrado dormia, pegou a todos de surpresa pelo fato de o jurista ser bastante ativo e não dar sinais de que pretendia se aposentar tão cedo.
“Scalia era um jurista brilhante, bastante conservador. Era muito curioso que, em seus votos, ele tinha um jeito ácido, até engraçado em alguma medida, de dizer que a Suprema Corte estava querendo criar coisas que não estavam escritas na Constituição”, comenta Lucchesi.
Em 2008, Scalia foi entrevistado no mítico programa de televisão “60 Minutes”, da CBS. Quando provocado pela jornalista Lesley Stahl, que questionou se o originalismo não implicava “tentar descobrir a mentalidade de pessoas de 200 anos atrás”, o juiz disse que “bem, não é a mentalidade; é o que as palavras significavam para as pessoas que ratificaram a Declaração de Direitos [Bill of Rights] ou que ratificaram a Constituição". Segundo ele, seu objetivo principal era defender “uma Constituição duradoura”.
Na configuração atual da Suprema Corte dos EUA, consideram-se originalistas os juízes Clarence Thomas, indicado por George H. W. Bush, e Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, ambos indicados por Trump.
Amy Coney Barrett, discípula de Scalia
Terceira indicada de Trump à Suprema Corte, Amy Coney Barrett é uma entusiasta do originalismo. Não à toa ele teve em Antonin Scalia uma espécie de mentor. É que a jurista, logo após se formar na Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame, uma das mais prestigiadas dos EUA, trabalhou como clerk de Scalia entre 1998 e 1999, quando ele já atuava na Suprema Corte.
Os clerks são uma espécie de assessor dos juízes, e Amy era uma das favoritas de Scalia. Ao mesmo tempo, é comum que esses assessores, ainda que fiquem pouco tempo no cargo, desenvolvam uma admiração especial pelos magistrados com quem trabalharam. Em artigo publicado na revista jurídica de sua alma mater, a Notre Dame Law Review, depois da morte de Scalia, Barrett citou o magistrado logo no início do texto:
“O juiz Scalia foi o rosto público do originalismo moderno. O originalismo sustenta que o texto constitucional significa o que ele queria dizer no momento em que foi ratificado, e que esse significado público original é impositivo. Essa teoria está em contraste com aquelas que tratam o significado da Constituição como suscetível à evolução ao longo do tempo. Para um originalista, o significado do texto é fixo, desde que ele seja detectável”.
Barrett deu um exemplo de seu pensamento originalista em 2019, ao julgar, enquanto magistrada do Tribunal de Apelações dos EUA para o Sétimo Circuito, o caso Kanter v. Barr. O que se discutia era que, tanto pela lei federal quanto pela legislação do estado do Wisconsin, o réu, Rickey Kanter, não poderia possuir uma arma de fogo pelo fato de já ter uma condenação criminal. Ocorre que essa condenação dizia respeito a um crime não violento (fraude postal). Para Barrett, isso não deveria desqualificar, de forma automática, um cidadão norte-americano de possuir uma arma para sua defesa pessoal.
Ela foi dissidente no julgamento, mas em seu voto de 37 páginas pontuou que os colegas do tribunal estavam tratando a Segunda Emenda à Constituição dos EUA, que prevê o direito ao porte de armas, como um “direito de segunda classe, sujeito a um corpo de regras totalmente diferente do que outras garantias da Declaração de Direitos”.
Barrett traçou a história das regras de porte de armas para criminosos condenados nos séculos 18 e 19, com o objetivo de argumentar que a Constituição norte-americana e as leis do país deveriam ser interpretadas conforme o significado que tinham quando foram elaboradas.
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