A censura judicial passa mais desapercebida, pois, em geral, não parte sempre da mesma pessoa, não podendo ser personificada, não se prendendo a uma estrutura hierarquizada, a um comando organizado, ou a um projeto de poder de determinado líder.| Foto: Pixabay
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O texto abaixo faz parte do livro "Censura por toda parte - Os bastidores jurídicos do inquérito das Fake News e a nova onda repressora que assola o Brasil" (Ed. Avis Rara), de autoria de André Marsiglia, advogado constitucionalista especialista em liberdade de expressão e professor de direito constitucional.

“...o que se guarda, e se esconde, é a primeira coisa que se assalta; a liberdade do porto é o que o conserva livre da invasão” - Matias Aires

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Evidente que a censura é um instrumento utilizado por mãos que detêm ‒ ou querem deter ‒ o poder. Em governos totalitários, quase sempre esse poder concentra-se nas mãos do Executivo, sendo ele a exercer o ato de censura ‒ por vezes personificado na figura de um ditador, por outras na de um presidente eternizado na função. Não importa, o que caracteriza o totalitarismo desses Estados é a capacidade de centralização do poder, inclusive de censura, exclusivamente nas mãos desta figura, denominada sob muitos títulos.

Quando as pessoas no seu dia a dia pensam em censura, estão referindo-se sempre a esse modelo. Por essa razão, muitas vezes, não é difícil que alguém diga: “Censura? Mas ela acabou no Brasil!” ou “Censura existe apenas em alguns países árabes ou em certas ditaduras da América Latina”. Quem pensa dessa forma tem uma visão equivocada sobre o que é esse mal.

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Acontece que na contemporaneidade não ocorre censura apenas quando o poder está concentrado exclusivamente nas mãos de um governante. Nas democracias modernas, o poder concentra-se nas mãos de diversos agentes públicos e governantes, e isso não afasta a possibilidade da existência da censura, ao contrário, isso a multiplica. Tantas são as mãos em que o poder se concentra, quantas são as possibilidades de que a partir delas surja o ato censório. Em outras palavras, se nos regimes totalitários o poder está centralizado exclusivamente nas mãos da figura que personifica o poder Executivo, sendo ela a promover a censura, nos regimes democráticos modernos, como o poder não está centralizado apenas no Executivo, a censura acontece a partir de muito mais mãos.

Posso afirmar categoricamente que a censura no Brasil nunca acabou, jamais deixou de existir, ela permanece e é tão ou mais cruel que as demais a que assistimos pela janela da história. A censura não acaba, apenas modifica-se, alterna de mãos. Um dos maiores erros conceituais a respeito da censura é acreditar que sua existência não se compatibiliza com as democracias modernas e que, se ela existe, não há democracia, ou então, se há democracia, ela não pode existir. Este erro impõe uma visão limitadora e paradoxal: ou escolhemos ignorar a censura, se nos julgamos em uma democracia, ou escolhermos ignorar a democracia, se nos julgamos sob censura.

Compatibilizar censura e democracia, e enxergar censura fora do eixo do Poder Executivo, torna possível uma compreensão melhor do tema. Políticos de direita afirmam que, no Brasil atual, estamos em uma ditadura, por aqui haver censura.

Políticos de esquerda negam a existência da censura, para não reconhecerem a possibilidade de fracasso da democracia. Ambos estão errados. Existem a democracia e a censura, elas são compatíveis. É um erro que inclusive a imprensa comete, rejeitando muitas vezes utilizar a terminologia “censura”, acreditando que, ao fazê-lo, assumirá um discurso antidemocrático.

Ronald Dworkin afirmava que os espaços abertos com que as constituições modernas e democráticas foram e são concebidas permitem ao intérprete, portanto, sobretudo aos juízes, a concentração de poder na modernidade. Carl Schmitt (1888-1985), filósofo, jurista e teórico político alemão, afirmava que a soberania do Estado está centrada na decisão. Ou seja, o que é ou não constitucional passa às mãos do intérprete dotado de poder concentrado, assim também a censura passa a ser representada pelas decisões judiciais dos magistrados.

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A censura judicial passa mais despercebida, pois, em geral, não parte sempre da mesma pessoa, não podendo ser personificada, não se prendendo a uma estrutura hierarquizada, a um comando organizado, ou a um projeto de poder de determinado líder. No entanto, no Brasil, tudo seria diferente a partir do momento em que as decisões monocráticas de um único juiz da mais alta Corte do Brasil, em Inquéritos sigilosos, praticamente controlaram todas as questões relacionadas ao debate público nacional.