O primeiro resultado da busca da hashtag #trauma no TikTok - a rede social chinesa com mais de um bilhão de usuários – feita para esta reportagem exibe uma jovem, aparentemente entre os seus vinte e poucos anos, descrevendo “reações que as pessoas não percebem que vêm do trauma”, ao som de uma música melancólica ao fundo. Quando ela mexe a cabeça para os lados, as frases aparecem na tela: “ficar desconfortável quando as pessoas brigam/gritam”, “ter medo de intimidade/não gostar de toques físicos”, “se sentir emocionalmente conectado a todo mundo por se sentir obrigado a entender as emoções de todos”.
O desconforto mediante toque físico, bem como a dificuldade em estabelecer laços afetivos podem ser – com ênfase na indicação de possibilidade -, de fato, comportamentos decorrentes de más experiências passadas, das mais severas (como casos de abuso sexual) às mais cotidianas (traições e decepções amorosas). É de se esperar que o leitor conheça, contudo, um ou outro parente ou amigo próximo que, sem ter passado por nenhuma destas situações, simplesmente não é dado a abraços apertados. Ficar desconfortável em meio a discussões alheias, especialmente quando os envolvidos “aumentam o tom”, por outro lado, é uma reação praticamente universal. Faz sentido que a primeira suspeita mediante este comportamento seja a existência de um trauma?
O problema é que as definições de trauma – palavra originária do grego “traumatos”, que significa “ferida” e, por centenas de anos, permaneceria restrita a danos físicos – foram atualizadas, dando margens a interpretações com pouco ou nenhum respaldo científico que, na prática, só fazem deteriorar a saúde mental de uma geração já combalida.
O termo que antes era usado para descrever as fortes reações experimentadas por veteranos de guerra, sobretudo depois da Guerra do Vietnã – episódios de violência súbita e aguda, pesadelos frequentes, perda de apetite, terror desenfreado mediante barulhos altos, entre outros -, e que deu origem ao diagnóstico de estresse pós-traumático, esticou-se a ponto de abranger quaisquer experiências desagradáveis, contando que sejam descritas pela vítima como “traumáticas” – ou nem isso.
Em janeiro deste ano, o ministro das Relações Indígenas do Canadá, Marc Miller, acusou cientistas que solicitavam evidências de que as 215 sepulturas localizadas na Columbia Britânica pertenciam mesmo a povos nativos de “retraumatizar os sobreviventes”. Em universidades americanas, ativistas pedem a criação de “safe spaces”, espaços preparados para receber jovens que se sentiram violentados ao ouvir de um eventual palestrante que só existem dois gêneros ou que o racismo não é um problema “estrutural”. Na imprensa, não faltam artigos abordando o “trauma” da eleição de Donald Trump em 2016 ou a de Jair Bolsonaro em 2018.
Em contrapartida, alguns dos maiores especialistas em estresse pós-traumático no mundo alertam para o crescente mau uso do termo e para uma verdade escondida no senso comum, cada vez mais amparada pela ciência: o ser humano é, na verdade, muito mais adaptável do que imaginamos.
"Até recentemente, a maior parte do que sabíamos sobre trauma vinha do estudo das respostas mais graves [aos eventos adversos], como o transtorno de estresse pós-traumático (...) O problema surge quando focamos apenas nesse objetivo e ignoramos as experiências daqueles que não mostram reações tão extremas”, escreve o psicólogo George Bonanno, professor de psicologia clínica da Universidade de Columbia e autor do recém-lançado “The End of Trauma” (“O Fim do Trauma”, ainda sem tradução para o português).
"Nem mesmo o estresse pós-traumático é uma categoria estática, imutável. São estados dinâmicos com fronteiras difusas que se desdobram e mudam ao longo do tempo. (...) Na verdade, nem mesmo um evento violento ou com risco de vida é inerentemente traumático. Tais eventos são apenas 'potencialmente traumáticos'. Boa parte do resto depende de nós. Esse 'resto' varia muito mais do que supõe a perspectiva padrão sobre o trauma".
Da guerra do Vietnã ao TikTok: a história do trauma
Embora haja registros do uso da palavra "trauma" na língua inglesa em meados do século XVII, segundo o Dicionário de Inglês de Oxford, foi só no século XIX, em meio à Revolução Industrial, que os médicos voltariam sua atenção aos operários vítimas de graves acidentes de trabalho que manifestavam sintomas inexplicáveis - falhas de memória, falta de apetite, ansiedade e irritabilidade excessivas -, inicialmente atribuídos problemas neurológicos.
Foi só em 1889 que o neurologista alemão Hermann Oppenheim propôs a hipótese de que alguns destes males fossem, na verdade, de origem psicológica. Apesar da pouca repercussão à época, o livro Die Traumatischen Neurosen (As neuroses traumáticas) é o primeiro a utilizar o termo "trauma" para descrever um fenômeno psicológico. Enquanto isso, na Universidade de Viena, o médico Sigmund Freud arriscava suas primeiras interpretações de comportamentos nocivos e involuntários associando-os aos “traumas sexuais”.
As duas grandes guerras mudariam de vez a compreensão do trauma, levando a psicologia a se debruçar sobre as reações de médio e longo prazo causadas por experiências altamente estressantes – ainda que, por algum tempo, as reações póstumas fossem consideradas irrelevantes ou associadas à covardia. O final da Segunda Guerra Mundial marcaria o lançamento da primeira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), ou DSM, que se tornaria a "bíblia" dos psiquiatras. A versão incluía uma descrição da “reação aguda ao estresse”, ainda sem uma lista de critérios claros para sua descrição.
Foi só depois da guerra do Vietnã, em 1975, que os relatos aterradores de soldados sobreviventes, bem como seus sintomas persistentes anos após a volta para casa, levariam a psiquiatria a se debruçar a sério sobre o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), que seria oficialmente incorporado ao DSM-III em 1980.
“O trauma foi tratado como uma reação a situações que envolvem risco de vida e essa definição permanece consistente até hoje. Trata-se de uma identificação bastante estreita e baseada em evidências”, defende o psiquiatra Michael Scheeringa, professor da Universidade de Tulane e autor do livro “The Trouble with Trauma” (“O Problema com o Trauma”, ainda sem tradução para o português), em entrevista à Gazeta do Povo.
Guerra, estupro e tortura eram considerados na categoria que, por outro lado, dava pouca importância a eventos que hoje se entende por severamente impactantes, como abuso sexual familiar. O psiquiatra Bessel van der Kolk, autor do best-seller "O Corpo Guarda as Marcas", escreve que a versão de 1980 do DSM ainda afirmava que "há pouca concordância em relação ao papel do incesto entre pai e filha como fonte de uma séria psicopatologia subsequente".
A década de 1990 veria o nascimento de movimentos para definir o trauma de forma mais ampla - segundo Scheeringa, com base em estudos de qualidade questionável. “Houve muitas outras tentativas para definir todos os tipos de eventos estressantes e sem risco de vida como trauma, provavelmente porque o TEPT se tornou muito bem aceito. Qualquer pessoa que tente chamar a atenção para sua causa ou publicar um artigo pode fazer um estudo mal projetado e encontrar casos falsos positivos de TEPT para seu evento estressante”, diz Scheeringa, para quem o conceito de trauma sofreu um sequestro político.
“Há uma distinção muito clara entre evento adverso, ou evento estressante, e trauma. O trauma é uma ameaça à vida e os eventos estressantes não. Não é realmente uma zona cinza. Os ativistas que estão tentando ampliar a definição de trauma para incluir eventos sem risco de vida estão fazendo isso para promover suas agendas e obter mais atenção e financiamento para seus programas sociais”, afirma o especialista.
A transformação não se restringiu a um único termo. De acordo com um estudo publicado em 2016 pelo psicólogo australiano Nick Haslam, outros conceitos da psicologia clínica e social como "abuso", "bullying" e "preconceito", sofreram grandes alterações nos últimos 40 anos, sendo a mais importante delas a subjetividade absoluta. Em outras palavras, as definições de trauma, bullying ou abuso não dependem mais de critérios objetivos: tudo depende de como a vítima se "sentiu". Com as fronteiras cada vez mais à mercê das redes, não é de se surpreender que a hashtag #trauma alcance nada menos do que 9,2 bilhões de visualizações no TikTok e que a pandemia do coronavírus tenha prefigurado um novo “trauma coletivo”.
Onde foi parar a resiliência?
É verdade que ainda há muito a ser estudado e compreendido acerca das consequências psicológicas de um evento que não apenas ceifou a vida de 6,27 milhões de pessoas no mundo como trancafiou trabalhadores em suas casas, afastou crianças das escolas e reduziu drasticamente a renda de centenas de milhões de famílias. Mas, ainda assim, para que se possa fazer um diagnóstico preciso do problema, é preciso diferenciar os eventos potencialmente traumáticos do trauma propriamente dito.
“É possível que um paciente que desenvolveu dificuldade respiratória súbita e inesperada e quase morreu por causa disso possa ter uma experiência com risco de vida que causa o transtorno do estresse pós-traumático”, explica Scheeringa. “Mas todas as outras experiências causadas pela Covid – os bloqueios em massa, o trabalho como profissional de saúde, etc - não são traumas. Estes são os estressores”, explica.
“Independentemente da forma como os lockdowns se desenrolaram, a Covid inegavelmente interrompeu nossa vida. Mas, pessoalmente, não vou equiparar isso a um trauma coletivo. O trauma coletivo é muito mais sério. O Holocausto judaico é o trauma coletivo mais reconhecido e pesquisado, e sinto que Covid e confinamento não equivalem a genocídio, desastres naturais ou ataques terroristas”, acrescenta o psicólogo Dennis Relojo-Howell, membro da British Psychological Society e fundador do portal Psychreg, em entrevista à reportagem.
Um exemplo marcante de como o impacto de eventos potencialmente traumáticos tende a ser diluída com o tempo para a maioria das pessoas – sem que isso implique que não haja vítimas com sequelas psicológicas severas – é extensamente narrado por Bonanno em “The End of Trauma”: o ataque terrorista ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001.
"O comissário de saúde da cidade de Nova York antecipou uma iminente 'crise de saúde mental pública'. (...) Autoridades da cidade consultaram especialistas em trauma de todo o país e 'começaram a fazer os preparativos para treinar um exército de terapeutas voluntários'. (...) Mas quase todo mundo próximo ao ataque estava condenado a sofrer? O transtorno de estresse pós-traumático era inevitável? Para a maioria dos profissionais de saúde mental da época, as respostas foram um retumbante sim", relata o psiquiatra.
Ocorre que a premeditada crise nunca veio. E, um ano após o 11 de setembro, a pesquisadora Patricia Resick, diretora do Centro para Recuperação de Trauma da Universidade do Missouri foi uma das poucas vozes a admitir que as profecias estavam erradas. "As expectativas das pessoas sobre o impacto do ataque na saúde mental do país estavam erradas. A lição? Emoções fortes não equivalem a psicopatologia".
"Com tanta atenção ao TEPT, parece que exageramos na correção. (...) O trauma não é mais reprimido. Ele agora se reafirma com ousadia no título de séries de televisão e videogames, páginas da web e blogs. Está nos nomes de organizações profissionais e revistas acadêmicas. (...) Com todo esse trauma, o que é ou onde foi parar a resiliência?", questiona Bonnano.
A perda da fé na resiliência humana – já amplamente comprovada pela ciência, como alguns dos maiores especialistas na “psicologia da felicidade” do mundo atestam nos elogios ao livro de Bonanno – talvez seja a pior das consequências do alargamento sem precedentes do conceito de “trauma”, justamente por dificultar o acesso a tratamentos adequados mesmo para experiências adversas que não se enquadram na categoria.
“Se terapeutas e pacientes trabalham na suposição de que alguns eventos estressantes foram traumas, quando não são, eles acreditam erroneamente que os sintomas dos pacientes foram causados por estes acontecimentos. Muitos pacientes e terapeutas formam uma espécie de conluio para encontrar explicações fáceis para problemas que, na verdade, não têm soluções simples. Quando os pacientes passam anos com a ideia errada sobre a origem de seus problemas, podem estar perdendo tempo na terapia”, explica Michael Scheeringa.
“Em nosso admirável mundo novo sobrecarregado com a indulgência dos que se fazem de coitados, a resiliência está se tornando cada vez menos provável de ser um traço genético transmitido para a próxima geração”, diz Relojo-Howell, acrescentando que também há uma série de pesquisas indicando que se a capacidade de enfrentar adversidades é “um traço influenciado por uma combinação de genética, história pessoal, ambiente e contexto situacional”. Para que não reste dúvida, afinal, de que o elogio à resiliência não é mero capricho de quem enfrentou poucas intempéries, cabe o lembrete do psicólogo Viktor Frankl, que desenvolveu seu método terapêutico enquanto prisioneiro no campo de concentração de Auschwitz: “quando não podemos mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos”.
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