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O candidato republicano à vice-presidência, o senador J.D. Vance, de Ohio, conclui seu discurso no terceiro dia da Convenção Nacional Republicana (RNC) no Fórum Fiserv, em Milwaukee, Wisconsin, EUA, no dia 17 de julho de 2024.
O candidato republicano à vice-presidência, o senador J.D. Vance, de Ohio, conclui seu discurso no terceiro dia da Convenção Nacional Republicana (RNC) no Fórum Fiserv, em Milwaukee, Wisconsin, EUA, no dia 17 de julho de 2024.| Foto: EFE/EPA/SHAWN THEW

Ao anúncio de J. D. Vance como o segundo nome da chapa republicana a concorrer às próximas eleições nos Estados Unidos, seguiu-se o tradicional escrutínio dos veículos de comunicação às propostas, crenças e costumes do político: no que, afinal, acredita o homem escolhido para ser o vice-presidente de Donald Trump?

Atual senador de Ohio, Vance atraiu atenção significativa da imprensa durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016, quando ainda era um ferrenho opositor de Trump e seu livro de memórias “Era uma vez um sonho: A história de uma família da classe operária e da crise da sociedade americana” alcançou o topo da lista de mais vendidos do jornal New York Times. À época, era um protestante pouco ligado à fé, de modo que sua religiosidade não saltou aos olhos da imprensa.

Três anos após o pleito que elegeu Trump, contudo, Vance converteu-se ao catolicismo romano. Às vésperas de uma eleição que se desenha ainda mais estridente do que as últimas, um novo rótulo emerge entre comentaristas que procuram classificar as convicções políticas e religiosas do senador de Ohio, que tem sido descrito como um “integrista católico”.

Oposição à modernidade e ao liberalismo: o que é o integrismo católico?

Qual a urgente e constante necessidade de se questionar os termos dos quais a mídia lança mão irrefletidamente em tempos eleitorais - “neofascismo”, “ultradireita”, “ultracatólico” -, a definição do integrismo católico é, antes de tudo, um problema teórico. Em texto clássico sobre o assunto, o sociólogo brasileiro Antônio Flávio Pierucci descreve a dificuldade do mundo anglófono para delimitar o termo, traduzido como "integralism" - o que, no Brasil, remete imediatamente ao movimento fundado por Plínio Salgado na década de 1930.

Para a maioria dos historiadores, contudo, o integrismo tem suas raízes no século XIX e remonta aos primeiros conflitos entre a Igreja Católico e a modernidade, uma oposição foi demarcada ainda em 1864 pelo Papa Pio IX, por meio do Syllabus Errorum, um documento anexo à encíclica Quanta Cura contendo oitenta proposições incompatíveis com o catolicismo: entre elas, o relativismo religioso, o racionalismo, o modernismo e a laicidade do Estado.

Seu sucessor, Leão XIII, também teceu duras críticas aos frutos do liberalismo nascente em suas encíclicas: condenou a ideia de liberdade irrestrita de pensamento (Libertas Praestantissimum, 1888) e a liberdade religiosa, defendendo também a união da Igreja e o Estado (Immortale Dei, 1885). Entretanto, o termo em si só se tornaria popular no papado de Pio X, autor da encíclica Pascendi Dominici Gregis (1907), uma exortação sobre as doutrinas modernas, e do decreto Lamentabili Sine Exitu (1908), que se opõe à interpretação historicista da Bíblia e dos dogmas católicos.

"Não se trata, portanto, de um grupelho de malucos completamente descolado do ministério católico: muito pelo contrário. Por muitos anos, o que se entende por integrismo foi a posição oficial e majoritária da Igreja”, explica o historiador Victor Gama, doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas.

O contexto político e histórico do movimento explicita sua tendência: trata-se da reação católica às revoluções liberais do século XIX que destituíram a Igreja dos estados papais e que, em muitos países, se traduziram em franca perseguição ao clero e às ordens religiosas — como o emblemático caso da Revolução Francesa. Por outro lado, na mesma época, testemunhou-se a consolidação das ciências e do método histórico-crítico de interpretação das Sagradas Escrituras.

“Tudo isso oferece instrumentos para que a teologia faça uma leitura histórica do Evangelho, despindo-o de suas características sobrenaturais. Nesses dois contextos de contestação do poder temporal e espiritual da Igreja, se dá o surgimento do integrismo. Não à toa, o título do movimento diz respeito ao pleito à integridade da fé”, explica Gama.

O integrismo católico no século XXI

Mais de um século após sua gênese, o integrismo católico mantém sua oposição ao liberalismo, mas sua faceta atual envolve algumas nuances e atualizações em face dos desafios contemporâneos.

“Geralmente, o liberalismo é entendido como uma filosofia política que apoia limites à autoridade do governo e proteções constitucionais para os direitos dos indivíduos e minorias. Mas os integristas católicos argumentam que o liberalismo é incapaz de estabelecer formas profundas de comunidade humana porque valoriza o individualismo e a liberdade acima de todas as coisas.

A ironia (...) é que o liberalismo não é realmente tão liberal. Em vez disso, o liberalismo exige — e impõe — a adesão a um certo conjunto de valores, como a tolerância e o pluralismo, que impedem a criação de uma ordem social na qual os seres humanos possam realizar um significado maior, dado por Deus, para suas vidas”, explica o professor de Estudos Religiosos da Faculdade Santa Cruz, Matthew Schmalz.

No esteio das críticas ao liberalismo cultural — entendido como o cerne do progressismo atual e da própria cultura woke —, fortifica-se nos Estados Unidos movimentos conservadores autoproclamados iliberais, aos quais tem se associado o rótulo do integrismo.

Destacam-se neste meio autores como o jornalista iraniano-americano Sohab Ahmari, o jurista catedrático de Harvard Adrian Vermeule e o cientista americano Patrick Deneen, amigo próximo de J. D. Vance. Entrevistado pela Gazeta do Povo em 2020, Deneen é autor do best-seller “Por que o liberalismo fracassou?” (Ed. Ayinê), elogiado pelo ex-presidente americano Barack Obama e pelo filósofo marxista Cornel West. Ele e outros simpatizantes do iliberalismo costumam defender um governo forte, trabalhista e pautado por valores cristãos em oposição tanto ao Estado laico contemporâneo, supostamente neutro em questões religiosas, quanto ao livre mercado.

Há que se pontuar que a Doutrina Social da Igreja, fortemente embasada na encíclica Rerum Novarum, também de autoria de Leão XIII, reconhece o direito à propriedade privada, mas enfatiza que essa propriedade deve ser usada para o bem comum. O documento afirma que o Estado tem um papel importante em garantir a justiça social e que deve intervir para proteger os direitos dos trabalhadores; além de defender a formação de sindicatos e criticar duramente a crescente separação entre capital e trabalho.

Por esta razão, muitos intelectuais descritos como “integristas” dirão que estão apenas subscrevendo a doutrina da Igreja. Não à toa figuras como o teólogo e escritor Scott Hahn, um dos mais populares apologistas católicos do mundo, costuma ser descrito como integrista. Eis, neste exemplo, um bom retrato da celeuma corrente nos meios católicos: em seus livros, Hahn critica duramente o liberalismo e a neutralidade do Estado quanto a questões como o casamento homossexual.

Por outro lado, o teólogo também diferencia o liberalismo ideológico do movimento contemporâneo pelas liberdades civis e de mercado: é, inclusive, figurinha carimbada nos encontros anuais do Acton Institute, influente think tank americano a favor do livre mercado e opositor aos conservadores “integristas” tidos por autoritários e apegados a uma interpretação extrema do liberalismo (como se verifica nesta entrevista com o padre Robert Sirico, fundador do Acton, concedida à Gazeta em 2022).

Em que medida, portanto, a crítica ao liberalismo se configura uma posição natural à Igreja, e em que medida se trata de uma vertente específica? Trata-se de uma questão complexa, sobretudo tendo-se em vista um presente no qual quaisquer posições firmes com relação ao aborto, aos novos paradigmas de gênero ou mesmo ao laicismo corrente são taxadas como radicais.

Neste sentido, talvez o melhor que se possa oferecer ao debate são os próprios textos da Igreja. “O documento do Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae, afirma que o Estado deve proteger a liberdade religiosa de todos, não apenas dos católicos. Esta é uma posição que alguns integristas católicos considerariam problemática”, explica o professor Schmalz. “Outros críticos argumentaram que o integrismo católico é ‘irrazoável’ e impraticável porque a sociedade precisa depender da cooperação de indivíduos que inevitavelmente têm ideias e valores diferentes”.

“Nos documentos do século XIX, a Igreja basicamente condena a democracia. Anos depois, em uma mensagem de Natal, o Papa Pio XII a elogia. Surgem grandes pensadores católicos que entendem que é possível transigir com a modernidade sem deixar de ser católico, porque na dinâmica moderna as coisas mudam com rapidez”, acrescenta o historiador Victor Gama.

“Vale lembrar que, quando a Igreja defendia sua união como Estado, o fazia em um contexto de perseguição — o clero era perseguido na França em favor da ‘laicidade’. Hoje, nós entendemos a laicidade em outra chave. Por isso, dentro do catolicismo, há quem diga que o integrismo não serve mais para o nosso tempo porque ele não percebe a movimentação dos tempos.”

J. D. Vance: integrista ou apenas católico?

Tendo em vista as variantes que envolvem a classificação, é o caso de questionar, por fim: Vance, afinal, é um integrista? O vice-candidato à presidência dos Estados Unidos já afirmou ser um admirador da Doutrina Social da Igreja que, como se viu, não fornece diretrizes específicas para a atuação do Estado, reservando-se a negar o socialismo e afirmar a proteção à família, à propriedade e ao princípio da subsidiariedade.

Para Schmalz, as propostas de restrição da imigração aproximam o candidato do integrismo: “Os integristas católicos podem justificar a oposição à imigração e migração porque acreditam que a sociedade precisa ser mais homogênea para ter um sistema de valores compartilhado”. Por outro lado, o senador já declarou que, embora acredite no casamento entre homem e mulher, uniões civis homossexuais não são um problema a ser combatido — posição que o afasta, por exemplo, do ex-presidente da Hungria, Viktor Orbán, figura frequentemente admirada pelos conservadores iliberais.

A oposição de Vance às cirurgias de transição de gênero em menores, por sua vez, pouco tem a ver com o catolicismo: trata-se de uma crítica respaldada por liberais e conservadores clássicos, feministas e mesmo setores da esquerda tradicional. A mesma dicotomia se aplica ao tema das mudanças climáticas: ainda que o vice de Trump se mostre cético com relação à gravidade do problema, são muitos os iliberais conservadores que não apenas o afirmam, como o creditam ao recrudescimento do próprio liberalismo exploratório.

Em outras palavras, parece precipitado — ou, no limite, um tanto exagerado — classificar o senador de Ohio como uma ameaça à laicidade do Estado ou da pluralidade cultural ou religiosa. Somente uma possível eleição e o correr dos anos poderão comprovar se Vance é um integrista católico — ou se é só católico mesmo.

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