É um erro bastante comum associar os “anos redondos”, aqueles que terminam em 0, ao início de uma nova década. Mas, como o nascimento de Jesus Cristo serve de referência para a contagem dos anos no Ocidente e como Ele não nasceu no ano 0, e sim no ano 1, o certo é considerar o início de cada década nos anos terminados em 1.
Ano que vem, portanto, daremos início à década de 2020, que se estenderá até o dia 31 de dezembro de 2030. Pensando nesse horizonte de médio prazo, a Gazeta do Povo perguntou a alguns intelectuais como eles imaginam o Brasil e o mundo daqui a 10 anos – quando, com alguma esperança, esse negócio de pandemia terá se tornado parte do anedotário de nossos filhos.
Confira abaixo as visões de futuro do escritor Alexandre Soares Silva, do jornalista Leandro Narloch, do geneticista Eli Vieira, do historiador Rafael Ruiz, do crítico de cinema Marcos Petrucelli, da doutora em educação Ilona Becskehazy e do editor Rodrigo Simonsen.
Alexandre Soares Silva, escritor
Todos os meus amigos esperam pela volta do pêndulo. Sabe o pêndulo? A humanidade vai muito prum lado, chega no limite, e começa a ir na direção contrária? Então em algum momento das nossas conversas sempre especulamos sobre a volta do pêndulo. Talvez não em 2021, mas em algum momento até 2031, eles esperam, porque “não é possível que as coisas continuem assim”, “onde vai parar”, etc. Mas a volta do pêndulo ainda não vai ser esse ano, porque obviamente ainda temos espaço pra ficarmos mais histéricos. Mais malucos, também. Até 2031 os seus próprios amigos normais e sérios e de terno-e-gravata que se orgulham de ser não-ideológicos vão perguntar por que você é contra verdades óbvias, como teoria de gênero, ou que matemática é racista e sexista. Este ano eles ainda acham graça que matemática seja racista; em 2031 vão achar uma obviedade, e em nenhum momento vão perceber que fizeram uma transição pro outro lado do espelho. 2031 será o ano em que vamos perder as pessoas normais - que, com as suas psiques completamente normais e saudáveis, vão sinceramente acreditar nas coisas mais desconectadas da realidade. Vai ser divertido.
Leandro Narloch, jornalista
Imagine a quantidade de gente que está, neste momento, em qualquer parte do mundo, tentando ganhar dinheiro satisfazendo desejos ou resolvendo problemas dos outros. Um aplicativo revolucionário como o Uber, a cura e a vacina para doenças incuráveis, uma forma de energia abundante e limpa podem surgir em lugares tão imprevisíveis quanto a Califórnia, Bangladesh ou Curitiba. O mundo conectado de hoje transmite não só vírus, mas também ideias – por isso teremos o prazer de desfrutar de inovações meses depois de terem sido criadas. Então há razão para ser otimista: novidades tornarão sua mais fácil e confortável nos próximos anos. Mas isso não significa que o ser humano vai mudar. Continuaremos imaginando razões para nos identificarmos com um grupo e rejeitar os outros; as pessoas seguirão problematizando a sociedade e impondo regras como solução. Em relação ao Brasil, é difícil imaginar que vai virar Cingapura ou Israel na próxima década. Temos grupos de interesse demais, e muita gente influente com ideias velhas na cabeça, para protagonizarmos uma reforma das nossas instituições.
Eli Vieira, geneticista
Em 2031, imagino que os brasileiros estarão mais ricos. Não por mérito do Estado, mas porque agora, durante os anos 2020, mais brasileiros se libertarão da condição dependente e subserviente, devido à popularização das ideias liberais. Será uma mudança gradual, sem cara de revolução. Nenhum indivíduo poderá tomar o crédito por ela, pois terá uma constelação numerosa de protagonistas. O agro será o grande trunfo nacional. As universidades perderão parte de seu glamour e continuarão sua aliança com grande parte da imprensa para alimentar uma esquerda pró-bem estar social que disputará o poder com a base liberal de empreendedores e cidadãos autossuficientes. Com o crescimento da população bilíngue, haverá mais produção cultural de origem nacional em língua inglesa. A Índia crescerá como um competidor da China. Por meio da tecnologia CRISPR, algumas doenças genéticas de herança mendeliana, como Tay-Sachs e Coreia de Huntington, começarão a ser eliminadas na produção de gametas. Estudiosos do ser humano que ignorem a participação importante da biologia no comportamento humano perderão o debate com biólogos, mas se entrincheirarão em dogmatismo de forma análoga a seitas. O mundo será obrigado a debater o direito à modificação genética não só para eliminação de doenças, mas também para ganho de funções. Novas avenidas de inovação pela engenharia genética serão exploradas pela indústria alimentícia, algumas carnes produzidas em biorreator competirão no mercado com carnes de animais de criação. Possivelmente os cientistas se interessarão pela manipulação da forma de plantas lenhosas produzindo casas vivas, após aprenderem melhor como a morfologia é coordenada pelos genes. A ONU estará mais desmoralizada, estados-nação continuarão sendo as instituições mais poderosas do mundo. Não teremos colonizado Marte ainda.
Rafael Ruiz, historiador
Não sou bom de profecias. Acredito mais na imprevisibilidade da condição humana que é existencialmente livre. Algo assim como diz Dostoievski nas suas “Memórias do Subsolo”, está tudo montado nas bases do predizível, das estatísticas, das tendências, das planilhas econômicas. Aconteceu que eu, diz o homem do subsolo, posso fazer o que me der na telha, e faço, dou um chute em todas essas previsões. Dito isto, sou mais de projetar esperanças. Não sei o que será, mas sei o que espero. Espero que as pessoas se sintam cada vez mais responsáveis por suas vidas e pelas vidas dos seres queridos, que descubram o que realmente vale e o que é supérfluo. Espero que cada vez mais os homens percebam o valor da consciência própria, de fazer a coisa certa porque é certa e é assim que a gente se vê diante da própria consciência. Sem necessidade de instâncias reguladoras, ou controladoras ou condutoras da conduta de cada um. Espero que todos nos tornemos conscientes, então, da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade, das nossas incertezas e dos nossos medos e que, em lugar de entregar tudo isso para um suposto “sistema que funciona” (que já vimos que não funciona mesmo), aproveitemos para apoiar-nos uns nos outros, confiar uns nos outros, solidarizar-nos uns com os outros, correndo o risco que a confiança traz consigo e, por isso mesmo, que aprendamos o valor da misericórdia, do perdão e da compaixão.
Marcos Petruceli, crítico de cinema
Confesso que sou uma pessoa otimista, que acredita no Brasil e no povo brasileiro. Ao que tudo indica, em breve teremos vacinas à disposição das pessoas e começaremos a vencer a batalha contra a pandemia. Mas a realidade é que o estrago foi feito. Nesta nova década que se inicia o país terá que trabalhar muito para recuperar a economia, encontrar o rumo do crescimento e também redescobrir sua identidade. Do ponto de vista político, pelo menos, acredito que o brasileiro se cansou do discurso enganador de que somente a esquerda tem o monopólio das pautas sociais. O povo se tocou, entendeu a farsa e não quer mais essa gente no poder. Para terminar, entro na minha seara, o cinema. 2020 foi um ano de mudanças na área cultural, principalmente no cinema. Por força do coronavírus, os cinemas foram obrigados a fechar as portas e fomos obrigados a ficar dentro de casa. E a mágica aconteceu. Rapidamente nos acostumamos a assistir a filmes e séries em nossas ótimas TVs flat de 40, 50, até de 70 polegadas. A sala de casa virou nosso cinema. A famosa indústria do cinema percebeu isso e está alterando todos os planos de negócios. Minha previsão: nos próximos anos, a era do cinema chegará ao fim, dando lugar absoluto de protagonismo ao streaming.
Ilona Becskehazy, doutora em educação
É sempre muito difícil fazer previsões. Quem estuda determinados assuntos pode, no máximo, analisar tendências. Na educação, não sou muito otimista, não acho que possa haver grandes transformações na educação brasileira nos próximos anos, num futuro de curto prazo, porque temos um histórico, um arcabouço institucional, operacional e profissional de baixa qualidade e é difícil sair dessa inércia. Mas vejo a quebra de paradigma de um governo que não tem as mesmas amarras políticas e ideológicas e que libertou a gente para testar outras possibilidades, além de dar voz a uma maioria que estava silenciosa e oprimida. Um governo que inclusive deu voz aos pais insatisfeitos, que não sabiam o que pedir e para quem. Com a liderança do governo federal, me parece que é possível quebrar o paradigma da baixa qualidade. Há muitos nichos que ainda precisam ser rearranjados e precisam de novas referências técnicas para que o Brasil possa sair da inércia e vencer isso. Politicamente, um governo que não tenha amarras com sindicados tem mais possibilidade de quebrar paradigmas técnicos na educação.
Rodrigo Simonsen, editor
O Brasil é a soma das coisas que poderiam ter sido evitadas. Um ponto cego entre a ilusão e a frustração. Qualquer patriotismo soa como um convite ao adultério. Já o mundo parece caminhar em direção à moderação. Talvez a diversidade não seja tão ruim quanto a direita imagina. Talvez a ordem não seja tão ruim quanto a esquerda imagina. Torçamos pelo melhor, esperando sempre pelo pior.