Um sistema de inteligência artificial (IA) auxiliou Ann (47), paralisada há 18 anos após um Acidente Vascular Cerebral (AVC), a conversar novamente. Para tanto, um dispositivo do tamanho de um cartão de crédito foi implantado no cérebro de Ann. Conectado a computadores, o sistema decodificou os sinais cerebrais da paciente e, por meio de um avatar, recriou sua fala.
Os avanços são do time de pesquisa liderado pelo Dr. Edward Chang, chefe da cirurgia neurológica na Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF). “Nosso objetivo é restaurar uma forma de comunicação plena e incorporada, que é a maneira mais natural de conversarmos com outras pessoas”, disse. “Esses avanços nos aproximam bem mais de fazer com que isso se converta em uma solução real para os pacientes”.
Mesmo que esse tipo de solução esteja longe de ser acessível para as pessoas em geral, há questionamentos em relação ao uso mais amplo de aplicações tecnológicas semelhantes, que não visem a reabilitação, mas a potencialização de faculdades e habilidades humanas.
“Claramente, a tecnologia que traduz impulsos neurais em comportamento mecânico está a avançar rapidamente e já é de grande utilidade para pessoas com deficiência”, afirma Steve Fuller, professor da universidade de Warwick, na Inglaterra, e autor do livro Humanity 2.0 [Humanidade 2.0] sobre as interações entre humanos e os sistemas tecnológicos.
Ainda assim, o desenvolvimento não deixa de trazer seus riscos. Claudio Cavallari, neurocientista, pesquisador, gestor de TI e fundador da start-up Neurociente, alerta que “tudo precisa passar por grandes camadas de avaliação. Biohackers, por exemplo, podem acessar dispositivos neuronais e gerar quantidades específicas de magnetismo e eletromagnetismo capazes de alterar as emoções”.
AVC e Síndrome do Encarceramento: a história de Ann
Há dezoito anos, quando tinha apenas 30 anos, Ann sofreu um acidente vascular cerebral enquanto jogava vôlei com as amigas. Gravemente paralisada, ela perdeu o controle de todos os músculos do corpo e, inicialmente, não conseguia nem respirar sozinha.
Além de não saber identificar a causa do AVC, os médicos tampouco puderam explicar como Ann desenvolveu a Síndrome do Encarceramento (LIS), na qual a pessoa segue consciente, mas com a paralisia total dos membros e da face, levando à incapacidade de exibir expressões faciais, movimentar-se, falar ou comunicar-se, exceto por códigos realizados por meio de movimentos dos olhos.
“Da noite para o dia, tudo foi tirado de mim. Eu tinha uma filha de 13 meses, um enteado de 8 anos e cerca de 2 anos de casada. A síndrome do encarceramento (LIS) é exatamente o que parece. Você está totalmente consciente, tem sensação plena, todos os cinco sentidos funcionam, mas você está trancado dentro de um corpo onde nenhum músculo funciona”, disse Ann por meio do aplicativo que usa para se expressar.
Reabilitação e sistema para se comunicar
Diante dessa condição, Ann precisou passar por diversas sessões de reabilitação física e neurológica, nas quais reaprendeu a respirar e a movimentar o pescoço. Ela ainda conseguiu retomar a movimentação dos músculos faciais o que lhe permitiu voltar a rir, chorar, sorrir e piscar. Mas não foi possível retomar a fala.
Por essa razão, no dia a dia, Ann se comunica por meio de um dispositivo implantado em seus óculos, que permite que ela fixe o olhar nas letras de um teclado virtual na tela de seu computador e, por meio dessa digitação visual, forme palavras e frases. O processo, no entanto, é lento e demanda que ela faça pequenos movimentos com a cabeça para realizá-lo.
O primeiro caso bem-sucedido da equipe do Dr. Chang
Ann chegou até a equipe do Dr. Chang depois que descobriu as pesquisas que estavam sendo realizadas com um paciente que também tinha paralisia severa, chamado Pancho. Assim como ela, o paciente havia sofrido um derrame e os pesquisadores queriam traduzir seus sinais cerebrais em texto.
A pesquisa realizada com Pancho foi o primeiro caso bem-sucedido da tentativa de decodificação completa de sinais cerebrais de alguém que estava paralisado e não conseguia falar, segundo o Dr. Chang.
No caso de Ann, a equipe foi além e traduziu os sinais neurais em uma fala real, recriada por meio de um avatar que também teve expressões e movimentos faciais.
O desenvolvimento da pesquisa com Ann
Para realizar a decodificação dos sinais cerebrais de Ann, foi implantado um conjunto de mais de 250 eletrodos na superfície de seu cérebro, em uma região crítica para a fala. Esses eletrodos interceptaram os sinais cerebrais que a paciente produzia quando tentava falar.
O implante foi conectado a um conjunto de computadores por meio de um cabo que se projeta através de uma abertura no crânio da paciente. Durante várias semanas, Ann auxiliou os pesquisadores a treinar o sistema de IA para reconhecer seus sinais cerebrais de fala. Para tanto, ela precisou repetiu diferentes frases a partir de um conjunto de mais de 1.000 palavras.
IA tradutora de sinais neurais em fonemas
Após o treinamento, o algoritmo da IA pôde associar os impulsos cerebrais a fonemas e, então, formar palavras e frases. A voz do avatar foi desenvolvida com base na voz da própria paciente, através de uma IA de aprendizagem de idiomas, que analisou a gravação de um discurso de casamento que Ann fez em 2005.
O sistema é capaz de decodificar aproximadamente 80 palavras por minuto. O resultado é bastante superior ao do sistema de comunicação baseado em texto, utilizado por Ann no dia a dia, que só pode produzir cerca de 14 palavras por minuto.
No estudo sobre o caso publicado na revista científica Nature, o pesquisador Sean Metzger afirma que a “precisão, velocidade e vocabulário são cruciais. É o que dá a Ann o potencial, com o tempo, de se comunicar quase tão rápido quanto nós e de ter conversas muito mais naturais e normais."
Outros usos da IA para a leitura e estimulação de impulsos neurais
As pesquisas da equipe do Dr. Chang não são as únicas em utilizar IA e sistemas computacionais para tradução de impulsos neurais. Outro caso emblemático é o de Sarah, que sofria de depressão profunda e persistente, e que já havia esgotado todos os tratamentos convencionais. “Eu estava no fim da linha, gravemente deprimida. [...] Não era uma vida que valesse a pena ser vivida”, disse ela.
Em 2021, outra equipe da Universidade da Califórnia implantou eletrodos no cérebro da paciente para neutralizar a comunicação entre os neurônios que geravam seu quadro depressivo. Após a cirurgia, Sarah afirmou ter experimentado uma melhora imediata e significativa do quadro.
Transumanismo para restauração de habilidades e capacidades
A restauração ou ampliação de capacidades e habilidades humanas por meio da tecnologia é um tema abordado pelo transumanismo, um movimento multidisciplinar que estuda como a tecnologia é capaz de fundir o corpo e a mente humana, permitindo a transcendência de limitações.
“No caso de Sarah, ela não tinha impulsos que produziam a felicidade no cérebro e o sistema implantado agora traz isso para ela. Isso quer dizer que a felicidade dela é transumana, robótica, ou seja, que ela se tornou uma transumana?”, pergunta Cavallari.
Um dos questionamentos às propostas transumanistas é o de uma possível modificação da espécie humana. “Se eu instalo um chip na minha mente para aprofundar minha memória, eu me transformo em uma nova espécie? Ou o meu cérebro tem capacidade para se adaptar e responder a esse dispositivo externo?"
Ao invés de criar uma nova espécie ou ser humano, o neurocientista acredita que avanços como os produzidos pela equipe do Dr. Chang apenas melhoram o ser humano.
Para quem essas tecnologias são destinadas?
Cavallari ainda afirma que, pessoalmente, prefere métodos não tecnológicos e não invasivos para potencializar suas capacidades. “Eu, como neurocientista, não gostaria de ter nenhuma alteração vinda de uma máquina. Um chip pode aumentar minha memória, mas eu prefiro deixar que a vida corra seu fluxo”.
No entanto, ele destaca que não tem deficiência alguma e que, portanto, não vive a situação de pessoas como Ann e Sarah.
Para evitar usos indevidos, Fuller afirma que a maioria dos países impõe barreiras para impedir que soluções como essas sejam simplesmente utilizadas para o aprimoramento das habilidades individuais.
Riscos de alucinação, vieses e tradução imprecisa
Ainda que os resultados obtidos pelos pesquisadores no caso de Ann possam impressionar e motivar as pessoas a buscarem soluções semelhantes, há riscos na interação entre a IA e o cérebro humano, como a criação de vieses e alucinações.
Cavallari explica que o nosso próprio cérebro cria distorções para aumentar sua eficiência, o que gera a busca pela redução constante no consumo de energia para realizar as mais diversas tarefas.
“O nosso cérebro nos engana muito. Estudos nos mostram como o próprio cérebro realiza automações e padronizações para que ele consuma menos energia”, afirmou.
Assim, para saber se, por exemplo, a tradução dos sinais cerebrais em palavras é precisa e calibrada, é necessário avaliar as bases nas quais o sistema de IA está sendo treinado e com as quais trabalha, bem como as variáveis e parâmetros que permitem que ele não alucine e que não crie vieses na tradução e interpretação.
Novas tecnologias, mesmas fraquezas humanas?
A respeito da acuidade das traduções feitas pela IA, Fuller afirma que ainda não existe um padrão acordado - independentemente do meio ser a fala humana, a escrita humana ou versões mecânicas de ambos.
“É por isso que as pessoas podem mentir e que tanto os controladores de IA quanto os hackers de IA podem potencialmente distorcer o modo como a tradução ocorre”.
Na opinião do professor, embora a tecnologia e o contexto social, político e econômico tenham mudado, o problema é em grande parte o mesmo. “O transumanismo é geralmente confirmado por estes desenvolvimentos [da tecnologia], embora os mesmos velhos pontos fortes e fracos da condição humana estejam a ser amplificados numa escala maior”.
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