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Nas ruas e becos sem saída de Cuba, a liberdade é hoje um grito contagiante e sincero – uma vontade irrefutável. Ao elemento surpresa (pois que muitos já nem esperavam por isso), vem se juntar a pergunta exaltada: “Mas por que demoraram tanto?!”.
Em geral, a liberdade – essa palavra-coringa “que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” – costuma agregar mais do que dividir, e quase sempre semeia unanimidades, tanto em tratados políticos quanto em conversas de bar. Mas há uma hora em que os bares se fecham, e a liberdade acaba vestindo a mortalha do Liberalismo – essa máquina de triturar valores que sacrifica no altar do Mercado a herança preciosa da civilização judaico-cristã. Eis-nos então imersos na Democracia Liberal, em cujo nome tantas cabeças vêm rolando, desde pelo menos a Revolução Francesa.
A “água-fria” lançada na fervura da aclamação unânime vem lembrar (no fim das contas) que a Liberdade não é rigorosamente um princípio, já que depende sempre de parâmetros externos e anteriores a ela. Trocando em exemplos: livre arbítrio, sem dúvida, é ótimo – mas “licença para matar”, nem tanto…
É preciso coragem e independência para pensar a questão da liberdade fora dos limites das platitudes ou da demagogia, nessa terra-de-ninguém que os debochados chamam de “isentosfera”. É preciso pensar, e não pelejar – há que ser filósofo, e não militante. É preciso, enfim, sabedoria para não ser apenas “um homem de seu tempo”... O filósofo político russo Isaiah Berlin, por exemplo, conseguiu isso.
A relevância de ser um ‘táxi intelectual’
Escrever sobre Isaiah Berlin (1909-1997) é ao mesmo tempo fácil e difícil. Como toda criatura que não passou em vão por este mundo, ele cometeu atos e ditos banais, gestos e juízos únicos, ideias claras e emoções difusas. Mas para alguns (e me incluo entre estes), o aspecto mais desconfortável de nosso filósofo e historiador das ideias é a unanimidade meio protocolar com que é citado, elogiado… e logo depois esquecido. Como o personagem da Tabacaria de Pessoa – foi aquele que “tinha qualidades”. Algumas pitadas de incompreensão (ouso arriscar) talvez não lhe caíssem mal.
Algumas pinceladas biográficas: filho de uma abastada família judia, Berlin nasceu na cidade de Riga, no então Império Russo (atual Letônia), às vésperas da catástrofe socialista; ainda adolescente, em 1921, emigrou com a família para a Inglaterra, fugindo do pesadelo concreto da Revolução, e em terras britânicas estudou Línguas Clássicas, História Antiga e Filosofia na Universidade de Oxford; ali, em 1932, tornou-se docente e iniciou carreira acadêmica promissora ao ser nomeado professor de Filosofia no New College; tornou-se também um notável estilista em inglês, língua que adotou como pátria; Oxford foi sua casa por toda a vida.
Transitar entre várias culturas pode ser desconfortável para muitos. Judeu-errante por natureza, Isaiah Berlin se saiu muito bem circulando na fronteira tríplice dos universos judaico, russo e britânico – e dessa “universalidade circunstancial” parece ter nascido seu interesse pela História Universal do Homem, consciente de que (dadas tantas distinções) não existe nenhum “Homem Universal”. Daí, talvez, a forma irônica com que se autodefiniu, mais de uma vez: “Eu sou um táxi intelectual: as pessoas me param, indicam uma direção, e lá vou eu”. É provável que também venha daí (bingo!) sua aceitação uníssona.
O fato é que, de sua diversidade e transitoriedade biográfica e intelectual, Isaiah Berlin soube tirar o máximo e o melhor proveito. Seu “táxi” parecia livre para cruzar novos caminhos e antigos atalhos, sem nenhuma tarifa antepondo limites à sua liberdade. Não por acaso, é nesse terreno arisco que encontramos algumas de suas melhores contribuições teóricas e filosóficas, quando ele traz à tona o “detalhe” de que, no fim das contas, a liberdade tem a ver menos com ideias políticas do que com valores morais.
Outro desafio para analisar sua vida e sua obra é a pletora de ideias e ações, de ensaios e livros que conseguiu produzir. Como exímio polímata, Berlin deixou uma produção intelectual vasta e variada – um edifício vistoso onde há diversas portas de entrada.
(Uma simples busca no Google poderá render ao leitor uma lista bibliográfica longa e generosa – mas isso também traz o risco de afastar apressados e preguiçosos.)
Para o propósito deste artigo, entremos no Edifício Berlin por um portal principal, inaugurado com o ensaio Two Concepts of Liberty (Dois Conceitos de Liberdade), alicerçado sobre a distinção entre duas interpretações do termo liberdade: de um lado, a chamada liberdade negativa, ou ausência de impedimentos à ação do indivíduo; de outro, a liberdade positiva, presença de condições que permitam aos indivíduos atingir seus objetivos.
Apesar do anunciado no título do ensaio, seria reducionista concluir que Berlin estabelece dois conceitos: a rigor, trata-se da arquitetura complexa – e completa – de uma só concepção, capaz de reunir atributos complementares: a ausência de obstáculos e a presença de uma vontade de realizar um determinado fim.
Positiva ou negativa, a liberdade para Berlin diz sempre respeito à interferência de terceiro nas liberdades individuais. É o próprio filósofo quem sintetiza:
* Liberdade Negativa: “Sou livre na medida em que ninguém ou nenhum grupo interfere com minhas atividades. A liberdade política, neste sentido, é simplesmente a área em que posso agir sem sofrer limitações de terceiros. Ao contrário, coerção significa a interferência deliberada de outros seres humanos na área em que eu poderia, de outra forma, agir. Não se tem liberdade política quando se é impedido por alguém de alcançar um objetivo”.
* Liberdade Positiva: “O que torna plausível esse tipo de linguagem é o reconhecimento de que é possível, e até justificável, coagir os indivíduos em nome de algum objetivo (digamos justiça ou bem-estar público) que eles mesmos buscariam se fossem mais esclarecidos. Isso torna mais fácil aceitar que estou coagindo outros em seu próprio benefício, e não em meu interesse; e que sei mais que eles sobre o que realmente necessitam”.
Indo além da definição previsível e corrente – “todo indivíduo ou grupo espera que ninguém interfira ou atrapalhe seus desejos” –, Berlin também vem lembrar que há outras implicações e limites para nossos sonhos: os chamados obstáculos “não humanos”. Entre outros, a própria realidade física do mundo, que nos impede de flutuar ou de sobreviver muito tempo sem comida. E haveria também obstáculos psicológicos – quando, digamos, qualquer um de nós constata que não é capaz de contar além de determinado número (o limite pode variar, de homem para homem, mas sua realidade é irremediavelmente humana). Sem contar limitações anatômicas mais elementares, que nos impedem de voar até a Lua ou enxergar nossa própria nuca.
Eis aqui, sem dúvida, uma das chaves do pensamento de Berlin – mas, especialmente, uma chave-mestra para compreendermos o mundo: sua concepção de liberdade se enraíza num realismo essencial, que recusa a existência de uma liberdade máxima, uma justiça máxima e uma igualdade nessa mesma escala (impossível) de grandeza. Por conta disso, não é lícito, nem moral, aspirar a algo além de uma dose sempre limitada de igualdade, justiça ou liberdade. Afinal, os valores mais caros à existência humana são múltiplos e nem sempre compatíveis entre si.
Digam o que disserem da filosofia de Berlin, mas o pensador russo sempre avançou na contramão das vertentes idealistas e racionalistas dominantes. Se ele era um táxi, certamente dispunha de um GPS capaz de evitar os riscos de um percurso vão, “às cegas”.
Sobre raposas e ouriços
Para levar a efeito seu projeto pluralista – escrever sobre (quase) tudo – Isaiah Berlin viu-se obrigado a ir abrindo espaço em meio a um universo intelectual e acadêmico onde a multiplicidade era antes excepcional do que frequente: para cada polímata como ele, disposto a multiplicar seu naipe de interesses e rever suas posições, havia legiões de especialistas, encastelados num só objeto de estudo e blindados num pequeno punhado de ideias dogmáticas.
Desse desafio, nasceu outra de suas inesquecíveis sacadas – e um livro magnífico: A Raposa e o Ouriço, ensaio sobre a vida e obra deseu conterrâneo Liev Tolstoi, o genial escritor. Acostumado a fazer companhia a outros animais (ou frutas) em fábulas consagradas (para citar alguns: as uvas, a cegonha, o galo e o corvo, por exemplo), aqui vez o astuto canídeo se vê aqui comparado ao espinhoso e arisco animal. O resultado extrapola a proposta inicial de simples “ensaio literário” para afinal se transformar no maior sucesso de Berlin – e numa referência obrigatória para qualquer estudo sobre a História da Vida Intelectual no Ocidente.
A chave do livro nasceu de um aforismo do poeta grego Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante”. Foi o bastante para que Berlin delineasse os dois tipos de personalidades bem diferenciadas que ainda predominam não apenas no meio intelectual – mas também, por extensão, entre artistas, políticos e todos os seres que pensam e respiram…
Segundo a descoberta de Berlin, os “ouriços” do mundo intelectual e artístico estão sempre movidos por uma ideia central, e buscam explicar a diversidade do mundo a partir de um sistema dogmático ou monista. As “raposas”, em contrapartida, defendem que o mundo é suficientemente diverso para não se resumir a um único sistema explicativo. São assim pluralistas: sabem que os objetivos e as motivações são vários e nem sempre compatíveis entre si.
Dante, Platão, Dostoiévski e – nenhuma surpresa! – Marx eram ouriços. Já Shakespeare, Aristóteles, Montaigne, Goethe, Balzac e Ortega y Gasset eram “raposas”. Quanto a Tolstói, que inspirou o livro, seu drama era o de ser naturalmente uma “raposa”, embora desejasse ser um “ouriço”. Explica-se: a amplitude de interesses e ideais do atormentado romancista russo estavam em conflito flagrante com o dogmatismo de sua proposta (tanto sincrética quanto confusa) de um cristianismo de matriz socialista.
A metáfora criada por Berlin veio a ultrapassar o universo dos livros e invadiu o imaginário da cultura de massas. Numa cena de Maridos e Esposas, de Woody Allen, a personagem de Judy Davis não consegue descanso nem prazer na alcova, porque a cabeça está ocupada demais classificando os amigos e colegas de trabalho em “ouriços” e “raposas”.
Ouriços são também todos os dogmáticos e especialistas da Academia e da mídia, ao passo que as raposas, tantas e tantas vezes, surpreendem.
Um liberal, para o bem e para o mal
Entre os leitores e estudiosos da obra Isaiah Berlin, tanto alguns admiradores quanto muitos detratores costumam insistir no mesmo estribilho: era um “liberal convicto”. Mas não se deve esquecer que, sobre o Liberalismo contemporâneo, pesam graves suspeitas de ter, na prática, falseado as melhores intenções teóricas. De um lado, o vocábulo se corrompeu; de outro, gerou um balaio de gatos que afasta os bons e atrai os malvados para a política. No fim das contas, não deixa de ser uma uma injustiça e uma ironia com a memória de Berlin, para quem a res publica, essência da política, implica a primazia da dimensão moral.
Em vida, o liberalismo equilibrado e nada caricato de Isaiah Berlin rendeu a ele, em seus livros e ensaios, capacidade para uma análise lúcida, isenta de paixões. Por isso, ao longo de seis décadas de atividade intelectual, escreveu com brilho sobre assuntos tão diversos quanto filosofia analítica e política, história das ideias e história das culturas, literatura russa e diplomacia. Defensor sereno dos direitos individuais e opositor ferrenho do poder arbitrário de qualquer coloração, conheceu a admiração dos simpatizantes do New Deal (Franklin Roosevelt à frente) e de conservadores como Winston Churchill e Margaret Thatcher. Quando lhe perguntavam seu credo político”, consta que preferia um gracejo: “Se alguma vez houve um liberal de centro, um extrema-esquerda da direita e um extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo”.
Nada disso impediu que, em nome do Liberalismo, Isaiah Berlin às vezes também errasse redondamente na análise. Por exemplo: quando enxergou em Nicolau Maquiavel um “precursor da política liberal” – ao passo que os próprios fatos da História mostraram que o autor d’O Príncipe foi um arauto voluntário e consciente do Estado burocratizado e autoritário que hoje mais e mais mostra suas garras em muitas Democracias Liberais.
“O intelectual verdadeiro”, dizia Berlin, “é aquele que se empenha para fazer com que pessoas, mais do que as ideias, sejam sempre interessantes”. Este talvez seja um dos maiores legados (e, mais do que um legado, um emblema) do pensador russo Isaiah Berlin, essa raposa para sempre elegante no meio de um bando de ouriços sem nenhum interesse.
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