Quando chegou ao Brasil pela primeira vez, como missionário, nos anos 50, Gary Neeleman, pouco sabia sobre o país. Anos depois, Neeleman, que é pai de David Neeleman, fundador da companhia aérea Azul, pode dizer que firmou laços profundos com o Brasil e acompanhou de perto diversos momentos significativos da história nacional.
O jornalista e cônsul honorário do Brasil em Utah, nos Estados Unidos, esteve em Curitiba na última quinta-feira (27) para lançar seu novo livro, “A Migração Confederada ao Brasil: Estrelas e Barras Sob o Cruzeiro do Sul”, em coautoria com a mulher Rose, com quem já publicou outras nove obras.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, Gary fala sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos desde a Segunda Guerra, políticas de imigração e sua atuação como cônsul. Confira:
O senhor trabalhou por muito tempo como correspondente da UP no Brasil – inclusive, cobriu o golpe militar. Como foi aquela época?
Nosso escritório em São Paulo contava com 23 jornalistas. Éramos responsáveis por levar as histórias do Brasil para o exterior – eu era um dos poucos americanos a falar português, então eram extremamente dependentes de mim, inclusive para o papel de tradutor em conversas com autoridades. Uma dessas pessoas era o general do II Exército Amaury Kruel. No final de março de 1964, Castelo Branco já marchava para São Paulo e o II Exército ainda não tinha se posicionado e eu precisava de uma resposta do Amaury para enviar aos EUA. Ele não queria me responder claramente, então me disse: “Gary, você sabia que americanos e brasileiros têm muito em comum, certo?”. Meio sem entender, respondi que sim e ele retrucou: “nosso principal ponto em comum é que nenhum de nós fala espanhol”. Ali ele estava me dizendo que o Brasil não se tornaria uma Argentina ou um Peru e que iria apoiar Castelo Branco.
Seus livros, indiretamente, tenham também como enredo as relações entre Brasil e EUA; talvez sejam obras mais sobre relações internacionais do que sobre história em si. E neles o senhor fala do Brasil como se realmente fosse brasileiro...
Amo os dois países e não conheço nenhum americano que ame o Brasil como amo. Meu filho, mesmo vendo que o Brasil tem problemas, montou uma companhia aérea aqui porque acredita no país. Fico triste porque os próprios brasileiros desconhecem as contribuições que o país deu. E Brasil e EUA sempre foram aliados, são as duas maiores nações da América. Aos 19 anos, quando entrava em casas como missionário, via fotografias nas paredes imagens de presidentes norte-americanos. Quantos brasileiros se chamam Franklin, Jefferson ou Washington? Os próprios personagens da série “O Gordo e o Magro” são mais populares aqui do que nos EUA.
Historicamente, minimizamos a importância da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Seus livros desmistificam esta tese, certo?
O Brasil salvou a guerra no sul do Atlântico, com borracha, com soldados e com bases estratégicas. 55 mil seringueiros foram do Nordeste até a Amazônia, 26 mil morreram de malária ou febre amarela e, indiretamente, também eram soldados. No que se refere a produção de borracha, então, vocês foram fundamentais: o Japão tomou ilhas asiáticas e todo o território da Malásia e Singapura, 97% da produção de borracha industrial estava lá. Já sobre as bases militares, uma das mais importantes estava no Rio Grande do Norte. Muito se fala das bases no Atlântico Norte e na Europa, mas do Brasil saiam aviões a todo instante, que poderiam alcançar a África do Brasil, mas não dos EUA. E, hoje, no Aeroporto Santos Dumont, temos a bandeira dos EUA ao lado da britânica e da brasileira – mas não há a bandeira da Rússia lá.
Há o mito de que os EUA usou essa borracha, mas não pagou.
Contamos essa história no livro. Chegamos em Rondônia há sete anos, para pesquisar, e ouvimos: “achamos muito bom que vocês usaram nossa borracha, mas queremos saber quando vocês vão nos pagar”. Encontramos os documentos que provam esse pagamento: foram, na época, US$ 145 milhões pago ao Banco do Brasil. Em 1946, isso era muito dinheiro. Até o ex-presidente Lula chegou a afirmar diversas vezes que a dívida nunca foi paga, mas agora ele pode encontrar essas informações no livro. O presidente Roosevelt chegou a se reunir com Getúlio Vargas em Natal. E nada saiu do Brasil antes do dinheiro entrar nos cofres nacionais.
Sobre seu outro livro (“A Migração Confederada ao Brasil: Estrelas e Barras Sob o Cruzeiro do Sul”), podemos afirmar que Dom Pedro II estava certo sobre o que aconteceria nos EUA?
O Brasil tinha duas vezes mais escravos que os EUA, mas a situação americana tinha chegado em um ponto crítico, beirando a guerra civil. Dom Pedro estava muito interessado em saber como os americanos iriam resolver este problema. Ele compreendeu como poucos o conflito entre Sul e Norte, e queria evitar isso. Mas também sabia que, estourando uma guerra civil, os EUA teriam problemas com a produção de algodão e acreditava que o Brasil poderia ocupar este espaço. Ele mandou emissários para abrir um escritório em Nova York convencer os sulistas americanos a ajudar na criação de uma indústria de algodão aqui. Durante esse período, 10 mil pessoas vieram ao país.
Esse movimento migratório foi bem sucedido?
Em Americana (SP), há mais de mil túmulos de confederados. Escutamos a história de todos, o sofrimentos deles. Mas foi um povo que se integrou tão bem aos brasileiros que ajudaram até mesmo na Guerra do Paraguai. Também foram eles que fundaram o Hospital Samaritano em São Paulo, o Colégio Mackenzie em Piracicaba. Foram responsáveis por muitas coisas boas aqui no Brasil. Lógico, eles queriam educar seus filhos, mas também os brasileiros.
Hoje, quais são suas atribuições como cônsul honorário do Brasil em Utah?
Facilitamos a vida da colônia brasileira. Temos 20 mil brasileiros na região. Se alguém está irregular no país, precisa ter seus documentos em ordem. Surgem problemas de documentação diariamente. Mas também auxiliamos em qualquer questão. A própria Laís Souza, quando sofreu o acidente enquanto treinava para as Olimpíadas, procuramos auxiliar ela e a família de todas as formas que conseguimos. Temos também problemas novos que surgem diariamente: um golpe novo envolve um malandro norte-americano, que encontra uma brasileira bonita pela internet, vem ao Brasil, casa com ela, e na hora que chegam aos EUA, a abandona. Sem falar em inglês, sem estrutura alguma. As jovens caem na ilusão do sonho americano, Disney e Green Card, mas a realidade é muito diferente. É algo que tem se tornado comum, e temos advogados que trabalham gratuitamente conosco para resolver esses problemas. Além disso, trabalhamos em conjunto com a comunidade: eu e a Rose, minha mulher, montamos um programa de ensino bilíngue português – inglês em Utah: onze escolas ensinam os dois idiomas para crianças em todo o High School.
Resumidamente, o senhor dedica-se a auxiliar imigrantes brasileiros nos EUA. Como enxerga as políticas de imigração do governo Trump?
Logicamente, sou contrário a esta visão. Meus filhos e minha família cresceram no Brasil, o mundo é um lugar para todos. Trump é pragmático, é um homem de negócios bem sucedido, inegavelmente, mas sua compreensão de mundo é limitada e ele sofrerá muito para aprender isso.
Já há resistência interna dentro de setores que ajudaram a elegê-lo?
Diferente do Brasil, o congresso americano tem muito poder, e o próprio partido já o inibe em alguns pontos. A história do muro, por exemplo, é absurda. Todos sabiam que era uma bravata. A piada recorrente é que o Canadá deveria construir um muro para evitar que fugíssemos para lá.
O complexo de vira-lata do brasileiro é real?
Isso me deixa louco. Estava em uma conferência nos EUA alguns anos atrás e havia três economistas brasileiros. A economia brasileira estava bem, mas cada um deles falou horrores do Brasil e fiquei ouvindo. Fui o último a falar e disse que eles eram uma vergonha para o país. O Brasil tem problemas, claro, é inegável, mas não se pode afirmar que ele “não vale nada”. O brasileiro é fantástico, há tanta coisa para vocês se orgulhar. Infelizmente, sempre aparece um escândalo: Petrobras, políticos corruptos, mas eles não representam os brasileiros, são uma parcela mínima dentro de um contexto enorme. E ainda há dificuldade em valorizar o que é daqui: os aviões da Embraer são incríveis. O David usou 100 aviões da Embraer nos EUA antes de qualquer um e depois montou a frota da Azul só com aviões da Embraer. Hoje ele tem alguns aviões AirBus 230, porque a Embraer não fabrica esses modelos. Se fabricasse, tenho certeza que seriam excelentes.
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