Ainda que do outro lado do Atlântico, João Pereira Coutinho é uma das vozes mais proeminentes no Brasil quando o assunto é poder, liberdade e vida em sociedade. Doutor em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa, é autor de “Por que Virei à Direita?” e “As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários”; e colunista da Gazeta do Povo.
O autor é um dos convidados da edição de 2021 do Fórum da Liberdade, que começa nesta tarde (16). Sobre as redes e a democracia – um spoiler da palestra que inaugura o evento – e os desafios da liberdade em meio à pandemia, João Pereira Coutinho falou à reportagem por e-mail. Leia, abaixo, a entrevista.
Muita gente disse que o coronavírus escancarou as contradições do pensamento liberal. Por aqui, por exemplo, tivemos 20 bilionários entrando na lista da Forbes e metade dos brasileiros sofrendo de insegurança alimentar. Como falar de liberdade econômica em um país tão dividido?
Grandes catástrofes, como pandemias, atingem diferentemente as pessoas: os mais ricos viverão sempre num planeta diferente da população restante. Mas o problema da desigualdade, que a pandemia tornou mais óbvio, é anterior a ela e não me parece que seja o resultado da liberdade económica. Creio, aliás, que é o resultado do inverso: do excesso de estatismo, patrimonialismo, corrupção e descaso oligárquico com o destino dos mais pobres. O bicho, nesse quesito, está inocente.
Ainda sobre as fissuras do liberalismo expostas pela pandemia: há uma crítica mais sutil, que diz respeito não apenas ao liberalismo econômico (menos impostos, mais facilidade de fazer negócios, menos benefícios estatais), mas ao ideal liberal da primazia da individualidade. Há quem diga que, na prática, há cada vez mais individualismo, o que acaba por aprofundar o fosso entre as elites e o povo. Para o senhor, esta crítica faz sentido?
Individualidade e individualismo, apesar de serem citados como sinónimos, não são. O valor da individualidade é liberal por definição: na transição do mundo medieval para o mundo moderno, os indivíduos viram-se como portadores de certos direitos inalienáveis que nenhum poder absoluto ou tirânico poderia subverter. É uma visão nobre, que infelizmente está posta em causa nesse tempo de tribalismos políticos em que a tribo, e não o indivíduo, é preponderante. Individualismo é a incapacidade de pensar a sociedade – ou, melhor dizendo, o “bem comum” – e de me pensar como parte dessa sociedade, com meus direitos e deveres. Quando o individualismo triunfa, isso constitui uma das principais ameaças à sobrevivência da democracia, tal como Tocqueville já tinha detectado na América do século 19.
Como o senhor enxerga a questão da abertura das igrejas em meio à pandemia? O Estado é quem deve julgar se a religião é ou não um serviço essencial?
Bom, eu creio que a religião é um “serviço essencial” para os crentes, porque nem só de pão vive o homem. Ainda para mais num contexto de catástrofe. O Estado pode impor certas restrições sanitárias. Mas a abolição completa de qualquer serviço religioso me parece uma visão estreita do que é “essencial” para um ser humano.
Um exercício imaginativo: o que os grandes nomes do pensamento liberal e conservador - Adam Smith, Hayek, Burke, Oakeshott - diriam sobre a forma como o Ocidente está lidando com a pandemia? (Parece que estamos tomando um banho...) O que diriam, por exemplo, de Angela Merkel, Boris Johnson, Benjamin Netanyahu e de Jair Bolsonaro?
Não faço ideia. Mas sempre rio com a ideia absurda de que a pandemia mostrou a falência do pensamento liberal na medida em que o Estado é mais necessário do que nunca. Isto mostra dois erros. Primeiro, um desconhecimento da filosofia liberal. Basta ler Adam Smith: em nenhum momento da sua obra ele exclui o papel do Estado: para proteger a nação de uma agressão externa; para ministrar a justiça; e para garantir certas instituições e trabalhos públicos que não podem ser assegurados pela iniciativa privada. Por outro lado, se a pandemia revelou alguma coisa, não foi a excelência dos Estados no Ocidente. Foi a total impreparação deles para lidarem com a pandemia, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, na Ásia (e aqui não incluo a China, que não é exemplo para nada). O mantra não deve ser “mais Estado”, mas “melhor Estado” – mais eficaz, mais profissional, mais versátil.
Nos últimos anos, se, por um lado, vemos emergir um negacionismo obtuso quanto à validade da ciência e do método científico, por outro, vemos a ciência emergir como a senhora soberana da verdade. Seriam os cientistas os novos sacerdotes do Ocidente? Como isso impacta nossa relação com o próximo?
Desde o século 19 que a ciência e o cientismo (não são a mesma coisa) ocuparam os tronos vazios das antigas religiões. Ao mesmo tempo, e com o recuo da vida eterna, houve uma revalorização radical da vida terrena; não admira que a Saúde passou a ser a suprema deusa dos homens modernos. É tudo que temos porque só temos uma vida para viver. Isso nos tornou mais neuróticos e hipocondríacos, sempre atentos ao mínimo sinal de risco. A principal consequência é que estamos menos autônomos e mais dependentes de poderes tutelares, que nos infantilizam para lá do tolerável.
O senhor poderia, por gentileza, nos dar um spoiler da sua palestra? As redes sociais vão erodir a democracia?
Não, vão transformá-la. Saber se a democracia liberal resiste é uma incógnita.
Sobre as fake news: o senhor acredita que o caminho para é a regulamentação? Quais são os limites da ação do Estado para coibir discursos falsos ou potencialmente danosos?
O caminho para as “fake news” é não ter “fake readers”. Isso significa que a formação e a educação são hoje mais importantes do que nunca para que as pessoas saibam navegar sem embaterem em icebergs. Ter os governos como vigilantes das “fake news” só pode ser piada; os governos são sempre os maiores produtores de “fake news”.
Além das restrições óbvias - ameaça à integridade física, calúnia e difamação - o senhor acredita que algum outro tipo de discurso deveria ser banido das redes sociais?
Sou a favor do fim do anonimato nas redes, o que significa que as plataformas devem identificar, quando judicialmente necessário, quem usa as redes para difamar ou caluniar. Exatamente como acontece nos jornais. A partir daí, cada um é responsável pelas coisas que escreve – e o controlo deve ser feito a posteriori, por via judicial.
O senhor acredita que a era do cancelamento tende a um fim?
Não. A vontade de “cancelar” é uma constante na história da humanidade.
Entre muitos conservadores brasileiros, nota-se uma preocupação com o iminente desmoronamento da Civilização Ocidental. Esta é uma preocupação justificada ou uma paranóia? O que há, afinal, a ser salvo da tal Civilização Ocidental?
É uma paranóia. Não existe nenhuma idade de ouro para onde devemos retornar. E a civilização ocidental é mais resistente do que esses náufragos imaginam.
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