Pouco se sabe sobre a vida do comerciante, político, tradutor e jornalista português João Soares Lisboa. Nascido no Porto, por volta de 1786, veio para o Brasil ainda rapazote e estabeleceu-se na vila de Porto Alegre, onde a família se dedicou ao comércio. Cerca de duas décadas mais tarde, em 1818, já comerciante próspero, Lisboa mudou-se para o Rio de Janeiro, envolveu-se com a política, abraçou a “causa do Brasil” e, em abril de 1822, fundou o jornal Correio do Rio de Janeiro. Favorável à Independência, mas francamente hostil à direção que lhe dava José Bonifácio, o periódico cedo tornou-se alvo do poderoso ministro. Em julho de 1822, Lisboa foi acusado de ofender o Príncipe Regente e transformou-se no primeiro jornalista brasileiro a ser processado por “crime de opinião”. O decreto que orientou o processo, lançado às pressas em 18 de julho de 1822, dizia: “cumpria-me (S. A. R.) necessariamente e pela suprema lei da salvação pública evitar que ou pela imprensa, ou verbalmente, ou de outra qualquer maneira propaguem e publiquem os inimigos da ordem e da tranquilidade e da união, doutrinas incendiárias e subversivas, princípios desorganizadores e dissociáveis, que promovendo a anarquia e a licença, ataquem e destruam o sistema que os povos deste grande e riquíssimo Reino por sua própria vontade escolheram [...]”.
Em outubro do mesmo ano, implicado num suposto “conluio republicano”, foi novamente processado, preso e obrigado a exilar-se em Buenos Aires. Lisboa retornou ao Brasil em 1823, aproximou-se de Cipriano Barata, aderiu à Confederação do Equador (Pernambuco) e acabou morto em combate, a 30 de setembro de 1824, num sítio denominado Couro d`Antas.
O ensaio que publicamos hoje, datado de 10 de abril de 1822, é o primeiro editorial do combativo Correio do Rio de Janeiro. O jornalista expõe aí as razões que o levaram a editar um periódico naqueles tempos tão conturbados e os princípios que guiariam a sua patriótica publicação.
Editorial
Damos princípio aos nossos trabalhos em uma época em que o despotismo luta em toda a Europa com a liberdade, e apenas se pode conjecturar se triunfará a razão, a justiça e o sagrado direito do homem, ou a intriga, a perfídia, a impostura e a escravidão; felizmente para nossos concidadãos –– com quanto prazer o dizemos –– doou-nos o céu, na presente crise, um Rei bom por caráter, um Príncipe liberal até por gênio, o que não só torna menos dificultosa a nossa Regeneração Política, mas até concilia nosso respeito e cordial amor para com suas invioláveis pessoas; debaixo de tão poderosos auspícios, nada temos que recear no desempenho de nossos deveres, e faremos por merecer a estima dos homens probos livres de prejuízos, ou egoístas, que tudo acham bom, porque tudo sacrificam ao seu bem-estar.
Dissemos em nosso projeto que não tínhamos suficiente cabedal de luzes para ilustrar e dirigir a opinião pública, mas tínhamos assaz firmeza de caráter e probidade para manifestá-la. Quanto à primeira parte, não pouparemos o pouco cabedal que temos adquirido pela leitura e estudo particular dos homens sábios em matérias políticas; quanto à segunda, não basta dizê-lo, é necessário prová-lo; nós o provaremos, inserindo com imparcialidade toda a correspondência que nos for dirigida, contanto que não encerre diatribes e sarcasmos, porque não prostituiremos a nossa folha a semelhante linguagem; argumentar é próprio do homem livre, bem educado; atacar é próprio de quem não teve educação, nem adquiriu sentimentos de honra.
Penetrados do mais vivo amor à santa Liberdade, sem espírito de partido e guiados pelos sentimentos do nosso coração, ficamos possuídos, como todos os bons portugueses do Brasil, de uma nobre indignação contra os fatais decretos que promulgara o Soberano Congresso Nacional, em 29 de setembro próximo pretérito. Muito hábeis escritores têm demonstrado os gravíssimos prejuízos que resultavam ao Reino Unido, e principalmente ao Brasil, da fiel observância de tais decretos; não podemos, contudo, ouvir sem horror que se chame ao Soberano Congresso: facção desorganizadora. É impossível conciliar o nome de Deputados da Nação, que foram legitimamente eleitos, com o epíteto de facciosos. Facção significa partido, cabala que se arroga um poder que não tem; e haverá quem se atreva a dizer da legalidade com que se acha representada a Soberania da Nação naquela Augusta Assembleia? Não o cremos; e desgraçada Nação, se tal doutrina fosse verdadeira ou se a adotasse como! Em breve se representariam entre os portugueses as tragédias de Nápoles, que haviam acabar se não principiassem pelos atentados da Revolução Francesa; longe, longe dos portugueses tão medonho quadro!
Que a Soberania reside na Nação é uma verdade matemática tão fácil de demonstrar, como uma proposição de Euclides, e reduz-se a provar se o todo é ou não maior que a parte. Isto posto, e atendendo a impossibilidade física de reunir-se para deliberar um povo em massa, era necessário adotar um método pelo qual se reunissem as frações de Soberania, delegando cada porção de cidadãos à parte que lhes competia em um, dois ou mais deputados, conforme o número de votantes; adotou-se o da eleição indireta –– felizmente reprovado pelo Soberano Congresso, por ser defeituoso –– e resultou a nomeação dos atuais representantes; onde é que está a ilegalidade?
Julgarão alguns entusiastas que pretendemos justificar o Soberano Congresso em todos os seus procedimentos, ou inculcar que se lhe deve respeito divino e servil obediência; seria isso uma contradição manifesta dos princípios liberais que professamos; outra é nossa vereda; convencidos como estamos da legalidade com que se acha representada a Soberania da Nação no Augusto Congresso, não hesitamos em dizer – com a ingenuidade de um homem livre, que detesta o despotismo, seja qual for a autoridade que o exercite – que obrou com despotismo quando promulgou os decretos em questão; contudo, existe grande diferença entre despotismo e facção; esta já definimos o que era, e aquele é a arbitrariedade de um ou de muitos, quando excedem suas atribuições ou os poderes que lhes são delegados, apesar mesmo de toda a legitimidade com que foram constituídos.
É uma ilusão pensar que pode existir poder absoluto e por isso dizermos que: o Soberano Congresso não tem, e não pode ter, poderes absolutos, e obra com despotismo quando excede os limites da autoridade que lhe foi delegada. Talvez pareça atrevida e falsa nossa proposição, porque abalizados escritores como Hobbes reconhecem que a Soberania é ilimitada, ou seja, exercida por um, por alguns, ou por todos, isto é, monarquia, aristocrática ou democrática, e, por consequência, mista ou representativa.
Com desejo de que os sábios nos iluminem, provando melhor o sistema de Hobbes, vamos expor como demonstração da nossa tese o sistema do senhor Benjamin Constant, que é o seguinte. “Não existe sobre a terra nenhuma autoridade ilimitada, nem a do povo, nem a de seus representantes, nem a dos reis, por qualquer título que eles reúnam, e até nem a da lei, porque sendo esta a expressão da vontade do povo, ou do Príncipe, segundo a forma do governo, deve ser circunscrita nos mesmos limites da autoridade de onde dimana”. Os cidadãos possuem direitos individuais, independentes de toda a autoridade social ou política; e toda a autoridade que violar estes direitos torna-se ilegítima. Os direitos dos cidadãos são liberdade individual, liberdade religiosa e liberdade de opinião, na qual se compreende a de publicá-la, o gozo da propriedade e a garantia contra toda a arbitrariedade; nenhuma autoridade pode golpear estes direitos sem dilacerar seu próprio título.
A autoridade da lei, não sendo outra coisa mais do que a expressão verdadeira ou suposta da vontade do povo, não é suficiente para legitimar tudo quanto ela quer, porque esta vontade tem limites; a soberania do povo não é ilimitada, é circunscrita aos limites que lhe marcam a justiça e os direitos dos indivíduos. A vontade de todo um povo não pode fazer com que se torne justo o que é injusto.
Os representantes de uma nação não têm o direito de fazer o que a nação não tem direito de fazer por si mesma. Nenhum monarca, por qualquer título que ele reclame, seja que tome apoio sobre direito divino, ou de conquista, ou assentimento do povo, tem poder sem limites. Deus sanciona senão a justiça. O direito de conquista é a força, e a força não é direito; porque passa aquele que dela se apodera. O assentimento do povo não pode legitimar o que é ilegítimo, porque um povo não pode delegar uma autoridade que não tem. Nenhum déspota, nenhuma assembleia, pode exercer um direito semelhante, dizendo que o povo lhe tem delegado. Todo o despotismo é ilegal, nada pode sancioná-lo; nem a mesma vontade do povo que se alega, porque se arroga em nome da soberania do povo um poder que não está compreendido em tal soberania; e não é somente a desorganização do poder que existe, mas a criação de um poder que não deve existir.
Julgamos provada a nossa proposição; e se o Soberano Congresso, composto na sua maioridade dos homens mais sábios e liberais da nação, se deixou fascinar ao ponto de obrar como déspota, contra os mesmos desejos de seus membros, quanto não é para temer o despotismo de um só, rodeado de poucos ministros, raríssimas vezes com as precisas qualidades e caráter para bem desempenharem seus deveres!
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Amanda Peruchi é doutora em História e autora do livro “Saborear e Curar: a chegada do café no mundo luso-brasileiro” (Coleção Memória Atlântica – Cultura Acadêmica, 2021).
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil” (Editora Globo, 2016, com Sheila Hue) e Franceses o Brasil (Chão Editora, 2021).