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Joaquim Gonçalves Ledo, um articulador da Independência
| Foto: Wikimedia Commons

Joaquim Gonçalves Ledo, o autor do ensaio que publicamos hoje, nasceu em Cachoeiras de Macacu (RJ), em 11 de dezembro de 1781, e morreu, nas proximidades de Sumidouro (RJ), em maio de 1847. Filho de pai português e mãe brasileira, o jovem, aos 14 anos, transferiu-se para Portugal a fim de concluir os seus estudos preparatórios e, posteriormente, cursar Direito na Universidade de Coimbra. Em 1808, porém, Ledo perdeu o pai e retornou às pressas para o Brasil, retornou sem concluir os estudos, mas com fortes vínculos com a maçonaria e contagiado pelas ideais iluministas.

A sua adesão à “causa do Brasil” começou cedo, nos tempos de Coimbra. Instalado no Rio de Janeiro, participou da criação da Loja Maçônica Comércio e Artes, em 1815, e fundou, em parceria com o cônego Januário da Cunha Barbosa, o jornal Revérbero Constitucional Fluminense. Desde a sua primeira edição, em 15 de setembro de 1821, o impresso advogou a separação da colônia de sua metrópole e a necessidade de uma constituição para o Brasil.

Gonçalves Ledo, em linhas gerais, defendia a Independência do Brasil e a imediata instalação de uma república no país, embora não fosse de todo hostil a uma monarquia que libertasse os brasileiros do jugo português. Proclamada a Independência, lutou pela convocação de uma Assembleia Constituinte e pressionou para que D. Pedro I jurasse a Constituição. Em rota de colisão com o então poderoso José Bonifácio de Andrada e Silva, Ledo teria ido parar na cadeia se não tivesse escapulido para Buenos Aires, onde aguardou a queda de seu opositor.

O escrito que se segue foi publicado no referido Revérbero Constitucional Fluminense, em março de 1822, e é uma excelente amostra das ideias deste brasileiro que foi um dos principais articuladores do processo de Independência e um dos mais destacados políticos do Primeiro Reinado.

Reflexões

Quando a raiva dos partidos começa a dividir uma nação, a verdade, sólido interesse dos povos, confunde-se e perde-se na luta porfiada das paixões que então se desencadeiam. Aqueles mesmos que têm a fortuna de lobrigá-la, não poucas vezes são obrigados a calar-se para não serem vítimas da maledicência, da intriga e do ódio. Cada um partido começa a encarar os objetos pela cor das suas paixões; com todo o empenho procura fazer prosélitos e apoiar-se na opinião; apresenta sempre os seus próprios interesses e sentimentos, como interesse e sentimento geral; e, na falta de razões, recorre à impostura. Quisesse o céu que mendigássemos entre estranhos a prova desta verdade!...

Apareceu entre nós a Constituição; era impossível que os princípios despóticos do governo então existente não fizessem que logo se abraçasse o novo sistema; mas também, desde então, se principiou a dar nome de republicanismo à sincera adesão para com as máximas do governo representativo. Os devotos da arbitrariedade, aqueles que à sua sombra haviam exaurido a substância deste país, temendo a cada instante ver quebrado o fio que prendia a espada da justiça iminente às suas cabeças, lançaram mão de todas as calúnias para macular os mais puros e mais decididos liberais. Por outra parte, estes atribuíram aos servis tantos projetos que, todavia, apesar dos seus bons desejos e da sua facilidade em conceber esperanças, eles nunca talvez imaginaram.

Pareciam, porém, extintos ou pelo menos acalmados os partidos, e os sentimentos gerais convergindo para um único centro da felicidade pública. Eis que começa a formar-se uma nuvem negra, carregada de eletricidade, que arrebentou sobre o Brasil, despejando do seu seio dois raios abrasadores. Tais são os decretos que mandam retirar o Príncipe e estabelecem o novo sistema de governo para as províncias do nosso Reino; governo sem unidade e que parece antes ditado pelo Gênio da Discórdia, do que calculado pela Sabedoria coletiva da nação. Quem não creria, à vista do estado de civilização e categoria do Brasil, que todos os brasileiros fizessem dos seus sentimentos um sentimento só, gritando, como homens livres: não, não queremos. Nós juramos uma Constituição que nos prometia igualdade de direitos, e que agora nos diferencia tanto dela, quanto vai da liberdade à escravidão; a fé nas promessas é a base das sociedades, e muito ignominiosa nos seria a defecção ao juramento prestado, se se não manifestasse agora, que jurámos uma coisa e que outra se nos verifica. Não, não queremos. Dividiram-se, porém, e o mais é que não existe a divisão somente entre províncias, mas até entre os moradores da mesma cidade... Já não há artifício que não empreguem, sentimento que não exaltem, disputas que não esquentem, para ver se desfazer a nossa brilhante reunião, semeando o desgosto, a discórdia e até promovendo a desconfiança no governo com a pintura de males que só são possíveis e só existem nos corações dos perversos. Eles sabem que um edifício abalado é mais fácil de derribar-se, e que os amantes da liberdade constitucional devem temer a perda deste tesouro inapreciável, por isso bosquejam o despotismo como resultado dos nossos procedimentos, para assustarem os liberais mais símplices, porque, estremecida a sua firmeza com estas visões, ou sonhos, engrossa o partido da opressão colonial e ajustam-se os ferros nos pulsos dos que só querem a liberdade.

Cada um partido começa a encarar os objetos pela cor das suas paixões; com todo o empenho procura fazer prosélitos e apoiar-se na opinião; apresenta sempre os seus próprios interesses e sentimentos, como interesse e sentimento geral; e, na falta de razões, recorre à impostur

Até certo tempo, pareceu que todo este manejo tenebroso e iníquo vinha da divisão, de nefanda memória, que com escândalo da razão e da virtude achava patronos e até escritores que os aplaudissem; mas, depois que ela se ausentou, somos persuadidos de que este manejo também nasce de certas víboras encobertas, que existem no meio de nós e que, colhendo a substância do Brasil, recebendo dele uma existência social, que, aliás, não teriam, são ingratamente os seus maiores inimigos, maldosas vespas que, malignas por natureza, fazem o mal por força de instinto, e até sem proveito particular. Quanto era bem entendida aquela Lei de Sólon que obrigava os cidadãos todos nos perigos da pátria a declararem-se por um partido? Se ela existisse entre nós, quantos Tartufos, nas classes mais elevadas, veríamos nós, largando a roupeta da hipocrisia e declarando-se acerbos inimigos daquele sistema que parecia ser o seu? Quantos punhais, quantos patíbulos veríamos prometidos aos mais abrasados no amor de uma causa que eles, simuladamente com o sorriso de Judas, dizem que é a da razão? Quantos incensos veríamos que se queimam em roda do trono e do Ministério, que aqueles que ali os oferecem desejariam ver convertidos em veneno? Quantos epigramas não soltam eles, despojadamente, quando não temem o espreitador patriota? Que tática infernal, nas classes baixas, não vemos nós quase todos os dias praticada? Que calúnias escandalosas que se espargem, que persuasões que se fazem, que falsas correspondências que se fingem, que libelos infamatórios que se publicam, que notícias desfavoráveis que se assoalham; que intrigas odiosas que se tramam e, sobretudo, que descaramento e que vileza para prosseguirem no mesmo caminho em que são desmentidos a cada passo e em que a cada passo se conhecem mais a mais os seus perniciosos fios? Uns gritam que se tenta destruir a Constituição, que eles mesmos a não querem por casa, e que é impossível arrancar-se dos corações brasileiros; outros, que o Ministério marcha a arvorar o despotismo – e eles frequentam as salas dos ministros. Estes louvam o desorientado governo de Minas Gerais, onde, contudo, eles não falariam com tanto despejo; e ameaçam-nos com Bahia e Pernambuco. Aqueles chamam assalariados quantos defendem a causa do vilipendiado Brasil... Que malvada raça de harpias tem o Brasil a desgraça de acatar no seu seio? Bem sabem, contudo, os que inspiram estes receios, os que propagam estas indignas suspeitas, que o tempo há de dissipá-las, e que não se fundam em fatos que façam duvidosa a nossa constitucionalidade; mas eles continuam, talvez desafiando algum ato de despotismo pela exasperação da nossa liberal prudência, para justificarem as suas calúnias; eles prosseguem, porque é este o modo de produzir inquietações e anarquia.

Os brasileiros de bom senso são assaz perspicazes para que deixem estes amantes da desordem tender aos seus perniciosos fins, sem apontarem aos seus irmãos o perigo a que os arrastam e o meio de o evitarem, consolidando cada vez mais a nossa confiança na sabedoria e liberalidade do nosso atual governo. Oxalá pudéssemos nós, pelo sacrifício dos nossos bem curtos talentos, persuadir uma firme, uma honrosa, uma necessária reunião de vontades e sentimentos, sendo a Constituição o nosso principal apoio, e o nosso Regente o centro do governo que anime e atue os muitos e distantes pontos na circunferência do grande Reino do Brasil! Nós sabemos o que é Constituição, e conhecemos quanto se apartam dela aqueles que, semeando a desconfiança e acendendo a discórdia, promovem a anarquia e a desgraça, dizendo-se zelosos de um bem que, sem dúvida, não apreciam em seus procedimentos. Nós entendemos, com Bentham, que a Constituição é uma legislação dirigida principalmente a conferir poderes e a prescrever deveres, ditada pela equidade e pelo princípio de utilidade igual a toda a família nacional; sabemos, com Locke, que para melhorarmos de condição nos submetemos ao novo governo civil constitucional, que só deve tender a produzir entre nós tranquilidade, segurança e bem público; sabemos, com Montesquieu, que a liberdade em um governo deve ser tal que um não tema a outro cidadão. Se firmados nestes princípios persuadimos a reunião, defendendo os nossos direitos, mostramos por isso mesmo que detestamos a doutrina de Machiavel, só abraçada por homens ou perversos ou ignorantes, que pretendem dividir para reinar, levando esta perniciosa divisão, não só de província a província, mas ainda de cidadão a cidadão.

Entre os dissidentes da nossa justa causa, avultam, de um modo atendível, os membros do governo de Vila Rica; dizendo-se constitucionais, eles parecem proceder como republicanos; já fazem proclamações incendiárias à frente da tropa; já se arrogam atributos soberanos e outros só próprios do poder executivo; intenta-se a organização de uma legião de honra, conferem-se patentes e clama-se, apesar disto, que o Rio de Janeiro quer tombar no antigo despotismo; o mais é que um dos seus deputados para as Cortes não hesitou em dar-lhe o tratamento de Governo Interinamente Soberano. Os povos, sopeados pela força, gemem nas comarcas daquela província, desafogam-se de suas queixas, ou no seio de uma experimentada amizade, ou em repetidas cartas aos seus correspondentes. Será possível que dure por muito tempo este estado contrafeito? Não, ousamos dizer; não, os mineiros são briosos, são amantes da Constituição, são prezadores de uma bem entendida liberdade, são brasileiros, enfim, e o decoro do seu país os chamará por força aos interesses da honra e da nossa grande família. Generosos mineiros, vós tendes, ninguém o duvida, o direito de constituir o vosso governo; mas este direito é vosso, é do povo, e não de poucos homens de quem haveis confiado a direção dos vossos negócios; vós não lhes transmitistes, nem lhes podíeis transmitir, um poder que vos compete reunidos. Será possível que sejais mais zelosos da liberdade constitucional do que os invencíveis paulistas, que, sincera e unanimemente, cooperam a sustentar a grande resolução que tomamos, para que se conservem os nossos foros, os nossos cômodos, a nossa tranquilidade e até a mesma categoria do nosso país? Desceremos, por que libertos, de uma elevação a que subimos escravos, quando pela liberdade a podemos fazer muito mais gloriosa? Perderemos o nosso centro, para que os partidos se choquem furiosos, para que a anarquia nos degole, retrogradando a nossa prosperidade? Generosos mineiros, se cada um de nós, e com as suas vistas fixadas no verdadeiro bem da pátria, e com o coração cheio de amor à Constituição e à verdadeira igualdade que ela deve produzir, gritar resoluto não quero, seremos livres, seremos concidadãos, seremos patriotas, seremos portugueses, estabelecendo eternas – por isso mesmo justas – relações entre o velho e o novo mundo, entre os nossos irmãos de Portugal e do Brasil.

Amanda Peruchi é doutora em História e autora do livro “Saborear e Curar: a chegada do café no mundo luso-brasileiro” (Coleção Memória Atlântica – Cultura Acadêmica, 2021).

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil” (Editora Globo, 2016, com Sheila Hue) e Franceses o Brasil (Chão Editora, 2021).


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