Uma comissão de 22 pesquisadores publicou este mês na revista médica Lancet Public Health um relatório detalhado dos efeitos dos jogos de azar. Eles deram especial atenção às chamadas “bets”, empresas de apostas online e por aplicativo que com frequência usam o esporte competitivo como impulsionador de publicidade. São “cassinos no bolso, 24 horas por dia e sete dias por semana”, afirmaram os especialistas, que chamam por mais regulação. Um indício de relação predatória é que, segundo um estudo dos Estados Unidos citado no relatório, 5% dos usuários das bets esportivas são responsáveis por 80% de seu faturamento.
“Os jogos de azar aumentam o risco de suicídio e de violência doméstica”, disseram os autores, “e estão associados com a falência financeira e ruptura de famílias”, danos que “podem durar por toda a vida e ter consequências que perpassam gerações”. Há outras consequências sociais, como aumento de criminalidade e perda de emprego.
“A maioria das pessoas pensam num cassino tradicional de Las Vegas ou em comprar um bilhete de loteria quando pensam em jogos de azar”, disse Heather Wardle, uma das chefes da comissão e professora de ciências sociais e políticas na Universidade de Glasgow, Escócia. “Elas não pensam em grandes empresas de tecnologia que empregam uma variedade de técnicas para envolver cada vez mais pessoas por cada vez mais tempo em um produto que apresenta riscos substanciais à saúde, mas essa é a realidade dos jogos de azar hoje”.
Os pesquisadores apontam um nível sem precedentes de atração dos adolescentes pela atividade, e que os jogos de computador “normais” que atraem esse público muitas vezes estão implementando características de jogos de azar viciantes. Os jogos de azar estão disponíveis em mais de 80% dos países do mundo, e seus efeitos já são sentidos até em países pobres da África subsaariana.
Os números revelados pelo relatório da jogatina
O vício em jogos de azar é reconhecido como um transtorno mental tanto pelo manual de diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana quanto pelo Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde.
O relatório vem com uma revisão global inédita da prevalência da participação em jogos de azar. Ele estima que 448,7 milhões de adultos no mundo apostam nesse tipo de jogo. Desses, 80 milhões (17,89%) podem estar viciados.
“O marketing e a tecnologia com extrema sofisticação tornam muito fácil começar e muito difícil parar”, disse Wardle. “Muitos produtos agora usam uma dinâmica projetada para o engajamento repetido e prolongado. Precisamos acordar e agir”.
Entre os usuários das bets, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes podem estar viciados. A proporção estimada de viciados em apostas esportivas online é de 8,9% para adultos e 16,3% para adolescentes.
Os cientistas estimam que, no mundo, 46,2% dos adultos e 17,9% dos adolescentes já participaram de algum tipo de jogo de azar nos 12 meses anteriores à pesquisa, e 10,3% dos adolescentes já fizeram isso no ambiente da Internet, “o que é notável, dada a concordância geral de que a jogatina comercial deveria ser proibida para os adolescentes”.
Até 2030, a estimativa é que o valor bruto perdido pelos consumidores de bets chegará a US$ 205 bilhões (R$ 1,2 trilhão). O crescimento projetado para toda a indústria de jogatina até 2028 é de US$ 700 bilhões (R$ 4 trilhões).
“Pedimos às autoridades públicas que tratem os jogos de azar como um problema de saúde pública, da mesma forma que tratamos outros produtos viciantes e pouco saudáveis como o álcool e o tabaco”, disse Malcolm Sparrow, membro da comissão e pesquisador da Universidade Harvard. Ele recomenda prioridade de regulação para mitigar os danos da jogatina e “isolar o processo de regulamentação da influência da indústria de forma mais eficaz”. A comissão acredita que a influência do lobby da própria indústria de jogos de azar sobre a pesquisa dos efeitos do vício na jogatina tem sido excessiva.
Ainda não há uma estimativa geral de quanto do faturamento das bets vem dos usuários mais viciados, mas há alguns indícios. Dados de uma empresa canadense de apostas indicam que os 20% mais ativos entre seus usuários contribuíam com 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Também nas apostas esportivas, um estudo americano indicou que 5,7% dos jogadores eram responsáveis por 80% dos gastos — em cassinos online, 4,9% dos jogadores foram responsáveis por 80% do faturamento.
Recomendações
Após constatar que, em 80 jurisdições, a tendência entre 2018 e 2023 foi de legalização dos jogos de azar, a comissão de pesquisadores, afirmando que o vício na jogatina é um problema de saúde pública, recomendou como medidas “reforçar os limites legais de idade, restringir a disponibilidade e acessibilidade dos jogos de azar, proibir ou limitar seus anúncios publicitários, implementar limites universais e obrigatórios para o consumo desses jogos, e implementar controles sobre as características dos jogos já conhecidas por serem danosas”.
Além dessas intervenções populacionais, os pesquisadores recomendam ajudar indivíduos em risco com políticas de autoexclusão — ferramentas pelas quais eles próprios podem optar para suspender seu acesso —, mensagens personalizadas e informações objetivas sobre seu próprio uso, entre serviços terapêuticos.
Nem sempre a proibição por lei adianta. “Embora os jogos de azar sejam ilegais aqui na Indonésia, a jogatina online é prevalente e o número de transações explodiu nos últimos anos”, disse a membro da comissão Kristiana Siste, que faz pesquisa no departamento de psiquiatria da Universitas Indonésia.
Os campeões dos gastos com as bets são os australianos: são 1.555 dólares australianos por adulto a cada ano (R$ 5.835). O valor está relacionado a apostas envolvendo jogos de futebol.
O Brasil é citado como exemplo de país em que as empresas de jogatina “usam a cultura dos influenciadores para promover suas marcas e produtos”. Os pesquisadores mencionam especificamente o caso do jogador de futebol Neymar, que atuou como garoto propaganda da empresa Blaze na plataforma de transmissões ao vivo Twitch.
O jogador “transmitiu ao vivo uma sessão de apostas” apesar de a Twitch “ter supostamente banido” transmissões do tipo. “A importância de influenciadores e transmissões ao vivo na promoção de produtos de jogatina é tão importante que os executivos da indústria de jogos de azar desenvolveram plataformas que continuam a permitir tais serviços”, afirmou o relatório.
Outro lado
Dan Waugh, britânico estudioso de jogos de azar que faz análises para a empresa de consultoria Regulus Partners, caracterizou o relatório da Lancet Public Health como “principalmente político e ideológico”. Ele disse que os pesquisadores apresentaram “observações legítimas” sobre as consequências dos jogos de azar, mas que as evidências de que quase 450 milhões de pessoas jogam seriam escassas.
Para Waugh, o relatório “falhou em aplicar uma lente crítica nos artigos científicos citados e cita os resultados de uma forma muito seletiva”. “Benefícios dos jogos ao consumidor são na maior parte marginalizados com alegações de que tais benefícios são só lobby da indústria, enquanto alegações de dano são geralmente apresentadas como ‘fatos’”, afirmou.
Brasil está mais perto de “estocar vento” (e sol): primeiro leilão é esperado para 2025
Fim do marxismo nas escolas? Os planos de Trump para erradicar a agenda woke dos EUA
Aliado de Bolsonaro, Santiago Abascal é eleito líder de partido conservador na Europa
Crédito consignado para aposentados em risco: bancos ameaçam reduzir operações
Deixe sua opinião