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John Gray, um conhecido filósofo e comentarista social, é difícil de ser classificado em um espectro político específico. Às vezes, ele soa como um revolucionário estudantil, em outras como o principal redator do Daily Telegraph [jornal conservador]. Seu principal efeito, ou pelo menos objetivo, é furar a complacência daqueles que acreditam possuir uma doutrina que responda a todos os problemas da vida, desde o pessoal até o político, do social ao econômico. Entre essas doutrinas no Ocidente, a democracia liberal é a principal, que parecia ter triunfado de forma abrangente com a queda do Muro de Berlim, mas agora, apenas 34 anos depois, está em retirada até mesmo nas jurisdições em que parecia mais firmemente enraizada.
O novo livro curto de Gray — "The New Leviathans: Thoughts After Liberalism" (trad. livre: "Os novos Leviatãs: pensamentos pós-liberalismo", ainda sem edição no Brasil) — adota uma abordagem de atirar para todo lado e às vezes soa como o ensaio de um jovem inteligente que se orgulha de ter lido amplamente e gosta de citar autores que seus leitores não leram ou dos quais nunca ouviram falar, tanto para humilhá-los quanto para estabelecer sua própria erudição.
Isso torna difícil seguir o fio do argumento, mas, já que é central para a perspectiva de Gray que não pode haver uma resposta final satisfatória para a questão de como a vida deve ser vivida ou quais arranjos políticos melhor encorajam a boa vida (ou até mesmo a relevância dessas questões em si), ele tem que tomar cuidado para não estabelecer uma doutrina fixa ele mesmo. Reflexões um tanto mescladas inspiradas em Hobbes, mas incluindo figuras de Hegel e Marx a Beckett e de Schopenhauer e Bettina Spielrein a Vladimir Putin, são sua forma preferida de proceder. Este método facilmente se degenera para a falta de disciplina; no entanto, Gray está perseguindo uma presa de grande tamanho e importância.
Ele argumenta que a democracia liberal contém dentro de si as sementes de sua própria decadência — o que os marxistas teriam chamado de suas contradições internas — porque não está ancorada em nenhum sistema de crenças substancial, como o que o cristianismo uma vez forneceu.
Sob o que ele chama de hiperliberalismo, o indivíduo é deixado e, de fato, é incentivado a encontrar sua própria identidade e propósito livre das incrustações semelhantes a cracas da história intelectual, moral e política. O mundo, para tais indivíduos, é um supermercado existencial no qual nada é recebido do passado, nenhuma possibilidade é fechada e ninguém tem o direito de interferir nas escolhas de outra pessoa. Se hoje alguém quer ser um homem, amanhã uma mulher e no dia seguinte nem um nem outro, que assim seja.
Isso é, no entanto, um alimento fraco para um animal social dotado de autoconsciência. O homem pode desejar ser livre (seja esse desejo inato ou o produto de circunstâncias, isso é irrelevante, pelo menos no Ocidente), mas ele também deseja pertencer a algo, pois é apenas pertencendo que ele pode alcançar algum tipo de propósito transcendente ou encontrar algum significado transcendente.
As antigas identidades de grupo — religião, Estado, nação, classe — murcharam no Ocidente sob o ataque implacável da crítica supostamente racional, mas como a identidade de grupo é uma necessidade imperativa, novas identidades mais egoístas e altamente balcanizadas tomaram seu lugar e agora estão envolvidas em uma luta pelo poder.
O cristianismo prometeu uma vida melhor, até mesmo perfeita, no além, mas uma vez que a crença na verdade de suas reivindicações históricas e doutrinas começou a vacilar, as esperanças de perfeição mudaram do Céu para a Terra. O liberalismo prometeu, se não a perfeição, pelo menos um progresso constante em direção a ela; mas, ao prometer também a igualdade, não aos olhos de Deus, mas aqui na Terra, abriu caminho para disputas intermináveis sobre o que essa igualdade significava e para ressentimento quando não era alcançada. Meu suposto direito a igual respeito é também meu direito de fiscalizar, censurar ou suprimir seus pensamentos — e vice-versa. Um estado de paranoia é o resultado.
O liberalismo é uma doutrina de direitos, mas, sem apoio em um entendimento cultural comum na população, tornou-se uma espécie de legalismo inflamado, no qual a lei deve arbitrar entre, por exemplo, o direito à vida do concebido, de um lado, e o direito de uma mulher decidir o que acontece em seu próprio corpo, do outro. Ambos os direitos, para aqueles que os defendem, são absolutos; nenhuma concessão é possível enquanto a questão for formulada nestes termos.
Quando a lei arbitra cada vez mais dessa maneira, não é o legislativo (que nem sequer consegue ler todas as leis que aprova), mas os burocratas e a nomenklatura, e uma classe favorecida de atores econômicos, que se tornam os poderes no país. Uma ordem liberal dá lugar a um autoritarismo administrativo. Ao mesmo tempo, uma imensa intelligentsia, criada pela expansão do ensino superior, e em grande parte antinômica por natureza e excedente à capacidade da economia de absorvê-la, eleva tensões ideológicas sem fim enquanto busca seu lugar ao sol, destrutiva dos próprios pilares do liberalismo.
Países e sociedades enfraquecem como resultado dessas tensões e divisões, que são em grande parte egoicas por natureza. Os países ou sociedades ficam, portanto, prontos para serem tomados, por assim dizer, por seus inimigos — pelo menos, se houver países mais fortes e determinados no campo que ainda não foram corroídos pelo liberalismo.
Esse é o diagnóstico que Gray apresenta. Ele não oferece um prognóstico firme, primeiro porque o futuro permanece desconhecido e, segundo, porque os concorrentes do liberalismo têm suas próprias fraquezas. Uma das razões para a raiva dos islamistas, por exemplo, é a consciência da extrema vulnerabilidade do islã à crítica racional, que, portanto, deve ser intimidada ao silêncio. Os islamistas estão cientes do que aconteceu com o cristianismo, ou mesmo com o comunismo, uma vez que os críticos intelectuais começaram a agir; eles acreditam que prevenir não é apenas melhor do que remediar, mas é o único remédio. Nisso, eles estão certos, mas é difícil garantir uma mentalidade pública que seja imune a todas as influências externas.
Na verdade, Gray não oferece soluções para os dilemas enfrentados por aqueles que retêm algum afeto pelas sociedades liberais do passado recente. Um retorno a esse passado não é possível: seria como tentar restaurar os ovos dos quais a omelete foi feita, e até mesmo Carlos X (1757 – 1836) não conseguiu restaurar a França ao status quo ante. Gray também não sugere nada mais.
Gray exagera em sua visão sombria e radicalmente pessimista? Não sou um otimista, mas em alguns pontos sinto que ele o faz. Ao dizer, por exemplo, que a riqueza está sendo concentrada em cada vez menos mãos, e que a classe média está efetivamente sendo empobrecida (como se a riqueza estivesse simplesmente sendo sugada dela), detecto um certo exagero.
Como, exatamente, a riqueza faraônica de Elon Musk me empobreceu? Ainda sou dono da minha própria casa, ainda como a mesma comida, ainda continuo com minhas atividades como antes. Isso é verdade para todos os meus amigos e conhecidos; admitidamente uma amostra selecionada, mas quando olho ao redor, embora veja problemas, até mesmo em larga escala, eles não parecem ser de uma severidade ou insusceptibilidade à melhoria sem precedentes. Muitos deles foram criados por tolices, e a tolice não é mais imutável do que a sabedoria.
Gray é um famoso detrator do progresso como uma ilusão perigosa. Se por progresso se entende um movimento rápido e inevitável para uma vida sem insatisfação ou limitação existencial, ele está certo em ser cético. Na arte, vemos melhor e pior, mas não progresso. Aqueles que esperam salvação, ou mesmo uma vida mais satisfatória, de um acúmulo de aparelhos tecnológicos estão destinados à decepção, na melhor das hipóteses.
Ainda assim, quando considero que, se não fosse pelo progresso tão criticado por Gray, eu já teria morrido há muito tempo após um período prolongado de sofrimento, não posso deixar de dizer uma pequena palavra em favor do progresso, pelo menos em um sentido limitado. Graças a pequenas pílulas que uma vez não existiram, estou livre de sintomas, e sem dúvida é muito superficial da minha parte, mas considero isso um sinal de progresso. Duvido que haja muitas pessoas vivas, incluindo o próprio Gray, que não pudessem encontrar algo a favor do progresso. Negá-lo seria hipocrisia.
Theodore Dalrymple é editor colaborador do City Journal, membro sênior do Manhattan Institute e autor de vários livros.
©2024 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.
Conteúdo editado por: Eli Vieira