Cena do filme “Joias Brutas”, produção da Netflix| Foto: Divulgação - Netflix
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“Oito Noites de Loucura de Adam Sandler” (2002), o único filme de animação sobre o Hanukkah, até onde eu sei, foi uma celebração étnica como nenhum outro astro judeu de Hollywood jamais ousou. A identificação étnica de Sandler impulsiona o encanto cômico na maioria de seus filmes. Foi ultrajante em “Zohan: O Agente Bom de Corte” (2000) e uma fonte de genialidade em seus melhores filmes, “Espanglês” (2004) e “Cada um tem a Gêmea que Merece” (2011). No entanto, essa qualidade haimish (palavra iídiche que significa amigável, como são os filmes de Sandler) fez dele alvo de críticas da turma descolada.

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Nem mesmo Davey Stone, o alcoólatra com antecedentes criminais que Sandler dublou (e redimiu) em “Oito Noites de Loucura”, conseguiu diminuir as críticas que Sandler, ex-integrantes do Saturday Night Live, sofreu. (Ridicularizado pela intelligentsia cinematográfica, Sandler procurou refúgio no universo não cinematográfico da Netflix.) Agora, Sandler “meteu o louco”, interpretando um canalha judeu (goniff, palavra iídiche para ladrão ou desonesto) em “Joias Brutas”, e por isso recebeu os elogios mais despropositados e inconvincentes de sua carreira. O filme é um sucesso irônico; agrada os descolados, mas decepciona os verdadeiros fãs de Sandler.

No papel de Howard Ratner, um joalheiro de Nova York sempre à procura de um esquema para ficar rico, Sandler é completamente inconsequente - um anti-mensch (iídiche para pessoa íntegra, honrada). Ratner é um malandro-agulha, com um cavanhaque horrendo e desesperadamente egoísta. Ele trai sua esposa materialista (Idina Menzel, sim, a atriz que dá voz à Princesa Elsa, de “Frozen”) e sua amante sacana (Julia Fox) e depois tenta enganar os tipos desagradáveis ​​que circulam por sua loja no Diamond District (região de Nova York que é um dos centros mundiais da venda de diamantes), na rua 47. (Foi nesse local que um sobrevivente do Holocausto encontrou um médico nazista no filme “Maratona da Morte”, de John Schelesinger). A fauna de tipinhos malandros de “Joias Brutas” varia de atletas negros a mafiosos russos - a mesma "diversidade" da genial franquia de Sandler para adultos, “Gente Grande”.

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Benny e Josh Safdie, os irmãos que dirigem e escrevem o filme, usam o progressismo moderno para rastrear os esforços covardes de Ratner para vender uma opala negra oriunda de uma mina etíope a uma celebridade esportiva negra. A sequência de abertura faz um close-up desde a exploração econômica africana à colonoscopia de Ratner. Uau! As semelhanças com o roteiro de James Toback para “O Jogador” (1974), no qual um judeu americano assimilado se envolve na exploração negra, sugere ao mesmo tempo um remake absurdo e um legado conflituoso.

A julgar pela piada de circuncisão implícita em seu título (no original em inglês “Uncut Gems”), os irmãos Safdie vão além da falta de pudor sexual e racial de Toback, voltando à mesma inveja milenar e ressentimento do mito da negação sexual negra que obcecava o escritor Norman Mailer em seu famoso ensaio de 1958, “ O negro branco”. No entanto, ao ceder à ilegalidade de Ratner, uma versão judaica da insolência urbana, “Joias Brutas” mal toca no antagonismo étnico que a geração pós-hip-hop suprimiu. (LaKeith Stanfield, The Weeknd e Kevin Garnett, ex-jogador do Boston Celtics, são escalados como antagonistas negros estereotipados.)

Como no filme “Bom Comportamento”, de 2018, os irmãos Safdie exultam no submundo com uma técnica áspera, aparentemente realista e low-fi. “Joias Brutas” parece deliberadamente sem refinamento, como um disco pop irritante por sua estilização cacofônica. (As cenas na boate e o tiroteio são as piores). Os irmãos Safdie são celebrados como inovadores, mas eis a verdade: “Joias Brutas” finge ser inteligente e etnicamente ousado, mas não é tão inteligente quanto “Oito Noites de Loucura” - ou a música “Unbearably White”, da banda indie americana Vampire Weekend, na qual o vocalista Ezra Koenig responde às acusações de privilégio étnico e de classe desconstruindo o modo como o politicamente correto interpreta a realidade e a identidade.

Em “Joias Brutas”, os Safdies compartilham um dilema étnico semelhante ao do Vampire Weekend, mas seguem um caminho tedioso pelas confusões da identidade social de Ratner/Sandler e depois se contentam com emoções ilícitas. Sandler fez filmes melhores do que este, enfrentando o vergonha judaica da Hollywood mainstream e criando um humanismo honesto: “Little Nicky: Um Diabo Diferente”, “Espanglês”, “Eu os Declaro Marido e… Larry”, “Cada um tem a Gêmea que Merece”, “Trocando os Pés”. O papel indigno de Sandler em “Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe”, de Noah Baumbach, disfarçou a autocensura como sofisticação. Traiu as dúvidas étnicas que Mailer, Philip Roth, Bernard Malamud e Saul Bellow trabalharam para dissipar.

Adam "Ad Rock" Horovitz, do Beastie Boys, brincava com a mesma ambivalência étnica que “Joias Brutas” quando atuava como palhaço e descolado - uma derivação do gênio-pateta de Jerry Lewis e um modelo para a busca artística de Sandler. Se Jerry Lewis tivesse interpretado Travis Bickle, de “Taxi Driver”, ele poderia ter recebido os mesmos elogios equivocados de Sandler por ir contra seus pontos fortes e deturpar suas ansiedades.

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Mailer escreveu uma vez que a última coisa que ele queria era ser considerado "um bom garoto judeu". “Joias Brutas” parece motivada pelo mesmo pavor. Os irmãos Safdie percorrem um submundo urbano de vadios, negros e judeus insolentes - bandidos e criminosos que provocam e humilham uns aos outros. Eles encurralam Sandler, um artista popular, em sua loucura. O filme imita filmes mais pesados (especificamente os pesadelos nerds de Scorsese, “O Rei da Comédia” e “Depois de Horas”), mas suas cenas de flagrante flagelo não resolvem os dilemas psicológicos existenciais que Mailer explorou com audácia e franqueza.

Em vez disso, o falso realismo dos Safdies e a vaidade arrogante lembram “Réquiem para um Sonho”, de Darren Aronofsky, uma abordagem que banaliza a situação do judeu assimilado em vez de enfrentá-la - como em “Harmony Hall”, música alegre e pesada do Vampire Weekend, na qual Ezra Koenig confessa: "Um coração nervoso que bate como um jovem apaixonado / debaixo dessas luvas de veludo, escondo as vergonhosas mãos tortas de agiota / porque ainda me lembro."

Por si próprio, Sandler atende a essas preocupações étnicas e as transcende da maneira cômica original. “Cada um tem a Gêmea que Merece”, “Espanglês” e “Eu os Declaro Marido e… Larry” demonstraram extraordinária inteligência ética e étnica que os Safdies não conseguem igualar. “Joias Brutas” descaradamente apresenta um filho de Shylock (personagem judeu da peça “Otelo”, de Shakespeare), mas o filme mostra apenas a superfície do existencialismo étnico, a angústia multicultural americana que foi vivida com entusiasmo e brilhantismo em “Cadê a Minha Entrega”, a subestimada comédia urbana negra sobre filhos de escravos.

“Joias Brutas” diminui uma das sensibilidades cômicas mais ricas do cinema moderno. Transforma Sandler, o espertinho que sempre escolhe a família e a amizade em detrimento do egoísmo das ruas, em um ícone do niilismo sujo. Os irmãos Safdie reinventaram o bom garoto judeu Sandler como Johnny Depp.

Armond White, crítico de cinema, escreve sobre filmes para a National Review e é autor de 'New Position: The Prince Chronicles'.

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© 2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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