Assim que um país surge, é urgente implementar símbolos nacionais, que contribuam para formar uma nova identidade, junto à população e ao restante do mundo. O Brasil não fugiu à regra. O Hino da Independência, por exemplo, foi elaborado com base num poema de Evaristo Ferreira da Veiga e Barros e em 1824 ganhou a melodia definitiva pelas mãos de Dom Pedro I.
Já a bandeira imperial foi instaurada logo em 18 de setembro de 1822, 11 dias após a proclamação da independência. Passou por alguns ajustes em dezembro, a pedido do imperador. Mas o conceito original foi mantido. Seu autor é José Bonifácio de Andrada e Silva, que orientou a execução – esta ficou a cargo do pintor francês Jean-Baptiste Debret. Esta foi apenas uma das muitas contribuições de Bonifácio para o processo que desembocou no surgimento do Brasil como um país independente e com as dimensões continentais atuais.
Foi ele, por exemplo, quem viabilizou a chegada do polêmico almirante britânico Alexander Thomas Cochrane, decisivo para a criação da Marinha de Guerra do Brasil e para a condução das ações militares que contribuíram para que estados importantes do Norte e do Nordeste se mantivessem membros do território nacional. Entre os documentos que o então príncipe regente leu às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo, e que o levaram a decidir pelo rompimento com Portugal, estava uma carta de Bonifácio.
O curioso é que, até poucos anos antes dos acontecimentos do início da década, o político, estadista, naturalista e poeta não estava sequer interessado nos atritos da corte. Ele havia construído uma longa e bem sucedida carreira na Europa e retornara ao Brasil para aproveitar a aposentadoria.
Trajetória na Europa
Bonifácio tinha idade suficiente para ser pai de Dom Pedro I. Nascido em Santos, em 1763, 35 anos antes do primeiro imperador do Brasil, era filho do rico comerciante Bonifácio José Ribeiro de Andrada – e sobrinho de José Bonifácio Ribeiro de Andrada, o primeiro paulista a se formar em medicina na história do estado de São Paulo. Quando o futuro patriarca da independência veio ao mundo, sua cidade natal não tinha mais do que 1500 habitantes.
Com 14 anos, mudou-se para São Paulo. “O estudante desajeitado, o adolescente curioso experimentava pela primeira vez o ar vivo os passeios sem destino, a liberdade. Teria estudado muito, nosso jovem Bonifácio? Dificilmente. Havia pouquíssimos livros disponíveis. ‘Livros de ler de letra redonda’ foram apenas 55 em toda a cidade até o início do século 18”, relata a historiadora Mary Del Priore na biografia As vidas de José Bonifácio.
Em 1783, seguiu para Portugal. Matriculado na Universidade de Coimbra, deu início ao curso de estudos jurídicos, aos quais acrescentaria as formações em matemática e filosofia natural. Num contexto de grande interesse por minérios, matéria-prima fundamental para manter acelerada a Revolução Industrial, realizou, a partir de 1790, uma década de viagens de pesquisas em países como França, Itália, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Hungria e Inglaterra. Viu de perto a fase inicial da Revolução Francesa, uma experiência que marcaria sua trajetória política.
De volta a Coimbra a partir de 1800, viu a universidade local criar uma cadeira de metalurgia especificamente para ele. Administrou minas de carvão e reformou fundições de ferro abandonadas. Assumiu o posto de diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa. Em 1806, dizia-se exausto de suas obrigações na Europa. “Estou doente, aflito e cansado e não posso com tantos dissabores e desleixos”, escreveu. “Logo que acabe meu tempo em Coimbra e obtenha a minha jubilação, vou deitar-me aos pés de S.A.R. [sua alteza real] para que me deixe acabar o resto dos meus cansados dias nos sertões do Brasil, a cultivar o que é meu”.
Retornou ao Brasil apenas em 1819, com 56 anos – idade considerada bastante avançada para a época. Estava disposto a levar uma vida tranquila em Santos. Mas se viu envolvido nos acontecimentos políticos que desencadearam no 7 de setembro de 1822.
Meses tumultuados
Depois de passar uma temporada em sua cidade natal, Bonifácio começou a participar dos acontecimentos políticos da província de São Paulo. Em março de 1821, enquanto o rei Dom João VI retornava a Portugal, foi aclamado vice-presidente do governo local. Ali, atuou para preservar São Paulo em alinhamento com os governantes que atuavam alinhados com do Rio de Janeiro, enquanto outras províncias se mostravam mais propensas a seguir as orientações vindas de Portugal – as lideranças que se estabeleceram depois da Revolução Liberal do Porto de 1820 tinham por objetivo retomar algum controle sobre a antiga colônia, incentivando que cada região respondesse diretamente a Lisboa.
A carta do governo de São Paulo ao príncipe regente, datada de 24 de dezembro de 1821, seria crucial para que Pedro se recusasse a retornar a Lisboa, como exigiam as cortes lusitanas, na decisão oficializada no Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822. “É impossível que os habitantes do Brasil que forem honrados e se prezarem de ser homens, e mormente os paulistas, possam jamais consentir em tais absurdos e despotismos. V. A. (vossa alteza) Real deve ficar no Brasil quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constituintes não só para nosso bem geral mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal”. Apesar do tom agressivo, a carta foi bem recebida por Pedro, que mandou publicá-la.
Dois dias depois de o regente anunciar que não deixaria o Rio de Janeiro, a 11 de janeiro, tropas portuguesas tentaram obrigar o príncipe a mudar de ideia. “Apoiado pelo povo e por tropas leais, D. Pedro resistiu”, relata Del Priore. “Oficiais de ambos os lados detiveram seus homens, em vez de deixá-los confrontar-se. Aproveitando-se do apoio da população da capital, o regente demitiu o ministério deixado pelo pai e nomeou outro”. No dia 17, Bonifácio, recém-instalado na capital, já era nomeado para o Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros.
Em 7 de setembro, Pedro estava em São Paulo precisamente para apaziguar os ânimos locais e contornar uma tentativa de reduzir o poder local de Bonifácio. De outra forma, não estaria na capital paulista quando proclamou a independência. Por mais alguns meses, a influência do santista se manteria.
“Precisando conversar com seu ministro, o príncipe ia a cavalo até sua casa no Largo do Rocio, esquina da Rua do Sacramento”, relata a historiadora. “Lá passava mesmo depois de suas noitadas de ‘pandegarias’. Um agente consular chegou a comentar, malevolamente, que, ao perguntar certa feita a alguém se era mesmo D. Pedro que se encontrava no interior da residência, ouviu em resposta: ‘Sim, é o príncipe, ajudante de ordens de José Bonifácio’.”
Mas, a partir de 1823, as relações começariam a se enfraquecer.
Propostas ousadas
Bonifácio tinha um projeto de nação maduro, que envolvia estratégias com as quais Pedro I, assim como outras lideranças políticas do momento, não concordavam. O patriarca da independência era, por exemplo, favorável ao fim da escravidão – e também à construção de uma capital no interior, que fortalecesse a integração nacional.
Em julho de 1823, seria demitido do cargo que ocupava naquele momento, o de Ministro das Relações Exteriores, e substituído por José Joaquim Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas. Não aceitou o silêncio e lançou um jornal, O Tamoyo, onde veiculou suas propostas por três meses, a partir de agosto até outubro. Com a dissolução da Assembleia Constituinte, toda e qualquer voz opositora foi calada. Bonifácio se viu preso em casa, em 12 de novembro de 1823, e forçado a seguir para o exílio.
Viveu na França dos 61 aos 66 anos de idade. Autorizado a voltar, chegou com um caixão na bagagem, o de sua esposa, Narcisa Emília O'Leary, de origem irlandesa, com quem havia casado em 1790 e que falecera na viagem.
Foi recebido por Pedro I com alegria. Ao abdicar do trono, em 7 de abril de 1831, o imperador nomeou Bonifácio para ser o tutor de seus filhos, incluindo aquele que se tornaria Dom Pedro II. Mas os desentendimentos com outras lideranças, como o ministro da Justiça Aureliano Coutinho, depois visconde de Sepetiba, os levaram a ser afastado do posto por decreto de 14 de dezembro de 1833. Era o fim de sua vida pública.
Recluso em sua casa na ilha de Paquetá, Bonifácio morreria em Niterói, a 6 de abril de 1838, aos 75 anos. Sua imagem pública, e o reconhecimento de seu papel crucial nos acontecimentos de 1821 e 1822, seria consolidada ao longo das décadas seguintes. E seu legado foi além do político. Identificado em 1868, um minério receberia o nome de andradita – homenagem aos feitos do pesquisador que, no fim da vida, liderou o processo que culminou na independência do Brasil.