O Bryant Park é um dos lugares mais visitados de Nova York. Aos pés do emblemático edifício do Bank of America e a um quarteirão da Times Square, o local é disputado por turistas e moradores, especialmente em dias ensolarados. No inverno, costuma abrigar um grande rinque de patinação. O Bryant Park também é sede da majestosa Biblioteca Pública de New York. Mas muitos brasileiros que passam por lá acabam ignorando uma peculiaridade do parque: ele possui uma estátua imponente, em tamanho real, de José Bonifácio de Andrada e Silva.
Embora reverenciado, Bonifácio parece não ocupar um lugar central no panteão dos autoproclamados conservadores brasileiros. A começar pelo presidente da República, que prefere fazer referência ao período da ditadura militar e a figuras como o coronel Brilhante Ustra, acusado de torturar presos durante o regime militar. Em seus discursos oficiais, conforme os registros da Presidência da República, Jair Bolsonaro já citou Ustra (uma vez) e os ex-presidentes militares Castelo Branco (seis vezes), Costa e Silva (duas vezes), Médici (nove vezes), Geisel (sete vezes) e Figueiredo (cinco vezes). Ele jamais mencionou Bonifácio.
Nascido em 1763, em Santos (SP), José Bonifácio formou-se em Filosofia, Direito e Matemática pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele tinha também um apreço especial pela mineralogia. Chegou a descobrir quatro minerais até então não catalogados. Suas obras incluem ainda observações sobre temas variados, como as formações geológicas do Brasil e “a pesca da baleia e extração do seu azeite”.
Bonifácio publicou obras em francês, alemão e em inglês. Mas foi como pensador e articulador da política nacional, especialmente durante o período da Independência e durante o reinado de Dom Pedro I, que ele mais se destacou.
“Devemos lembrar que em 1822 Dom Pedro era um jovem de 23 anos. Foi José Bonifácio, mais velho e experiente, o grande articulador que garantiu que a Independência do Brasil ocorresse da maneira mais prudente e conservadora possível naquele momento”, afirma Flávio Daltro Lemos, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense.
Bonifácio personificou ideias que, em tese, são caras a todos os conservadores: a defesa da unidade e da soberania nacional, a existência de uma lei natural acima das leis civis, a importância da religião para a vida cívica, a necessidade de prudência na política e a dignidade inerente a todos os seres humanos, inclusive os escravos.
“José Bonifácio era um maçom conservador. Sua mentalidade era moderna e muito influenciada pelo iluminismo, mas não como um liberal radical. Era um liberal conservador, que buscava o equilíbrio social e a preservação das instituições”, diz Lemos.
Patriarca da Independência
O chamado Patriarca da Independência, tido como um homem de princípios inegociáveis e de poucos rodeios verbais, também foi um bom frasista. Em 1822, diante da hesitação do governo americano em reconhecer o Brasil como um país independente, ele comunicou ao embaixador dos Estados Unidos: “Meu querido Senhor, o Brasil é uma nação e como tal ocupará seu posto, sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais potências. A elas se enviarão agentes diplomáticos ou ministros. As que nos recebam serão admitidas nos nossos portos e favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão excluídas dele.”
Um princípio defendido por Bonifácio era o de que os direitos são baseados na lei natural, ditada por Deus, e que por isso o governo não pode ser onipotente. “No coração humano gravou a divindade os princípios do honesto e do útil, para que a sabedoria e a experiência melhor pudessem depois desenvolvê-los e aplicá-los. Se as leis humanas vão contra estes princípios sagrados, são sujeitas e danosas, e não merecem a nossa estima", ele afirmou.
Seis décadas e meia antes da abolição da escravatura, Bonifácio também marcou posição firme contra o regime escravista. “Qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar, quanto antes, pela raiz este cancro mortal, que lhe rói e consome as últimas potências da vida, e que acabará por lhe dar morte desastrosa", escreveu ele em 1823.
Em seus apontamentos sobre a política do Império para os indígenas, Bonifácio defendeu que eles fossem tratados com justiça, e que o governo agisse de forma humana, "não esbulhando mais os índios, pela força, das terras que ainda lhes restam, e de que são legítimos senhores, pois Deus lhas deu". Ele também apoiou o envio de missões civilizatórias, com foco nos indígenas mais jovens, "com bom modo e tratamento, instruindo-os na moral de Jesus Cristo, na língua portuguesa, em ler, escrever, e contar, vestindo-os e sustentando-os, quando seus pais forem negligentes ou mesquinhos."
Bonifácio era contra a segregação racial. Ele defendia a miscigenação como uma política necessária para se formar, organicamente, uma identidade nacional: "É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política.”
"Pai fundador"
Talvez por causa das sucessivas quebras institucionais (a proclamação da República, os golpes de 1930, 1937 e 1964, a Constituição de 1988 e a “Nova República”), a linha de continuidade histórica se quebrou e a importância de Bonifácio na formação do Brasil pareceu ter se diluído. Mas ele continua a ser, ao lado de Dom Pedro I, a figura brasileira que mais merece o rótulo (para usar a expressão americana) de “founding father”, literalmente “pai fundador” da nação.
Na comparação direta com os americanos, aliás, Bonifácio foi muitos em um só. Como Benjamin Franklin, ele tinha uma mente irrequieta, com aptidão tanto para a política quanto para as ciências naturais — e uma certa propensão para a vida boêmia. Como Thomas Jefferson, ele foi um hábil teórico político que soube harmonizar as teorias de direito natural com a necessidade de uma legislação civil eficaz. Como Abraham Lincoln (que não foi um “founding father” mas ocupa um lugar equivalente na história americana), ele combateu a escravidão — décadas antes do presidente americano.
Para o professor Ricardo da Costa, doutor em História e professor da Universidade Federal do Espírito Santo, o recente movimento conservador brasileiro ainda não compreendeu completamente a dimensão do legado de José Bonifácio. “Nossos jovens conservadores ainda carecem de muita leitura, principalmente de história e filosofia política. Não é que poucos leem José Bonifácio: poucos leem”, afirma.
O professor também critica militantes que, ao defender a “causa conservadora”, adotam modelos intelectuais importados ao passo que ignoram a profundidade dos escritos de figuras nacionais como José Bonifácio. “Essas referências aos Estados Unidos são outro sintoma do caráter rasteiro, raso, dos conhecimentos dessa garotada em relação ao conservadorismo. A tradição histórica norte-americana é muito diferente da brasileira. Não há como importar autores ou personagens históricos de outro contexto histórico para o presente de outra nação”, afirma Costa — ele mesmo, um intelectual de inclinação conservadora.
Talvez alguma coisa esteja mudando: em 2018, o presidente Michel Temer sancionou uma lei, aprovada pelo Congresso no ano anterior, que confere a Bonifácio o título de “Patrono da Independência do Brasil”. Por outro lado, Bonifácio continua com estátua em Nova York, mas sem estátua em Brasília.
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