José Bonifácio de Andrada e Silva retratado em óleo sobre tela de José Washington Rodrigues, 1935.| Foto: Reprodução
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O Bryant Park é um dos lugares mais visitados de Nova York. Aos pés do emblemático edifício do Bank of America e a um quarteirão da Times Square, o local é disputado por turistas e moradores, especialmente em dias ensolarados. No inverno, costuma abrigar um grande rinque de patinação. O Bryant Park também é sede da majestosa Biblioteca Pública de New York. Mas muitos brasileiros que passam por lá acabam ignorando uma peculiaridade do parque: ele possui uma estátua imponente, em tamanho real, de José Bonifácio de Andrada e Silva.

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Embora reverenciado, Bonifácio parece não ocupar um lugar central no panteão dos autoproclamados conservadores brasileiros. A começar pelo presidente da República, que prefere fazer referência ao período da ditadura militar e a figuras como o coronel Brilhante Ustra, acusado de torturar presos durante o regime militar. Em seus discursos oficiais, conforme os registros da Presidência da República, Jair Bolsonaro já citou Ustra (uma vez) e os ex-presidentes militares Castelo Branco (seis vezes), Costa e Silva (duas vezes), Médici (nove vezes), Geisel (sete vezes) e Figueiredo (cinco vezes). Ele jamais mencionou Bonifácio.

Nascido em 1763, em Santos (SP), José Bonifácio formou-se em Filosofia, Direito e Matemática pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele tinha também um apreço especial pela mineralogia. Chegou a descobrir quatro minerais até então não catalogados. Suas obras incluem ainda observações sobre temas variados, como as formações geológicas do Brasil e “a pesca da baleia e extração do seu azeite”.

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Bonifácio publicou obras em francês, alemão e em inglês. Mas foi como pensador e articulador da política nacional, especialmente durante o período da Independência e durante o reinado de Dom Pedro I, que ele mais se destacou.

“Devemos lembrar que em 1822 Dom Pedro era um jovem de 23 anos. Foi José Bonifácio, mais velho e experiente, o grande articulador que garantiu que a Independência do Brasil ocorresse da maneira mais prudente e conservadora possível naquele momento”, afirma Flávio Daltro Lemos, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense.

Bonifácio personificou ideias que, em tese, são caras a todos os conservadores: a defesa da unidade e da soberania nacional, a existência de uma lei natural acima das leis civis, a importância da religião para a vida cívica, a necessidade de prudência na política e a dignidade inerente a todos os seres humanos, inclusive os escravos.

“José Bonifácio era um maçom conservador. Sua mentalidade era moderna e muito influenciada pelo iluminismo, mas não como um liberal radical. Era um liberal conservador, que buscava o equilíbrio social e a preservação das instituições”, diz Lemos.

Patriarca da Independência

O chamado Patriarca da Independência, tido como um homem de princípios inegociáveis e de poucos rodeios verbais, também foi um bom frasista. Em 1822, diante da hesitação do governo americano em reconhecer o Brasil como um país independente, ele comunicou ao embaixador dos Estados Unidos: “Meu querido Senhor, o Brasil é uma nação e como tal ocupará seu posto, sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais potências. A elas se enviarão agentes diplomáticos ou ministros. As que nos recebam serão admitidas nos nossos portos e favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão excluídas dele.”

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Um princípio defendido por Bonifácio era o de que os direitos são baseados na lei natural, ditada por Deus, e que por isso o governo não pode ser onipotente. “No coração humano gravou a divindade os princípios do honesto e do útil, para que a sabedoria e a experiência melhor pudessem depois desenvolvê-los e aplicá-los. Se as leis humanas vão contra estes princípios sagrados, são sujeitas e danosas, e não merecem a nossa estima", ele afirmou.

Seis décadas e meia antes da abolição da escravatura, Bonifácio também marcou posição firme contra o regime escravista. “Qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar, quanto antes, pela raiz este cancro mortal, que lhe rói e consome as últimas potências da vida, e que acabará por lhe dar morte desastrosa", escreveu ele em 1823.

Em seus apontamentos sobre a política do Império para os indígenas, Bonifácio defendeu que eles fossem tratados com justiça, e que o governo agisse de forma humana, "não esbulhando mais os índios, pela força, das terras que ainda lhes restam, e de que são legítimos senhores, pois Deus lhas deu". Ele também apoiou o envio de missões civilizatórias, com foco nos indígenas mais jovens, "com bom modo e tratamento, instruindo-os na moral de Jesus Cristo, na língua portuguesa, em ler, escrever, e contar, vestindo-os e sustentando-os, quando seus pais forem negligentes ou mesquinhos."

Bonifácio era contra a segregação racial. Ele defendia a miscigenação como uma política necessária para se formar, organicamente, uma identidade nacional: "É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política.”

"Pai fundador"

Talvez por causa das sucessivas quebras institucionais (a proclamação da República, os golpes de 1930, 1937 e 1964, a Constituição de 1988 e a “Nova República”), a linha de continuidade histórica se quebrou e a importância de Bonifácio na formação do Brasil pareceu ter se diluído. Mas ele continua a ser, ao lado de Dom Pedro I, a figura brasileira que mais merece o rótulo (para usar a expressão americana) de “founding father”, literalmente “pai fundador” da nação.

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Na comparação direta com os americanos, aliás, Bonifácio foi muitos em um só. Como Benjamin Franklin, ele tinha uma mente irrequieta, com aptidão tanto para a política quanto para as ciências naturais — e uma certa propensão para a vida boêmia. Como Thomas Jefferson, ele foi um hábil teórico político que soube harmonizar as teorias de direito natural com a necessidade de uma legislação civil eficaz. Como Abraham Lincoln (que não foi um “founding father” mas ocupa um lugar equivalente na história americana), ele combateu a escravidão — décadas antes do presidente americano.

Para o professor Ricardo da Costa, doutor em História e professor da Universidade Federal do Espírito Santo, o recente movimento conservador brasileiro ainda não compreendeu completamente a dimensão do legado de José Bonifácio. “Nossos jovens conservadores ainda carecem de muita leitura, principalmente de história e filosofia política. Não é que poucos leem José Bonifácio: poucos leem”, afirma.

O professor também critica militantes que, ao defender a “causa conservadora”, adotam modelos intelectuais importados ao passo que ignoram a profundidade dos escritos de figuras nacionais como José Bonifácio. “Essas referências aos Estados Unidos são outro sintoma do caráter rasteiro, raso, dos conhecimentos dessa garotada em relação ao conservadorismo. A tradição histórica norte-americana é muito diferente da brasileira. Não há como importar autores ou personagens históricos de outro contexto histórico para o presente de outra nação”, afirma Costa — ele mesmo, um intelectual de inclinação conservadora.

Talvez alguma coisa esteja mudando: em 2018, o presidente Michel Temer sancionou uma lei, aprovada pelo Congresso no ano anterior, que confere a Bonifácio o título de “Patrono da Independência do Brasil”. Por outro lado, Bonifácio continua com estátua em Nova York, mas sem estátua em Brasília.

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