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Palavras adequadas me escapam para elogiar um homem que causou um impacto tão profundo na Igreja. Eu me peguei recorrendo às próprias palavras de Deus para capturar o impacto dos ensinamentos, liderança e senso litúrgico de Joseph Ratzinger: “Houve um homem enviado por Deus... Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos creiam por meio dele” (João 1: 6-7). Embora destinadas a João Batista, essas palavras fazem justiça a Ratzinger como um grande testemunho da luz para nossos tempos.
Refletindo sobre o enorme legado de Ratzinger, sou atraído por três passagens adicionais das Escrituras: o escriba, o administrador e o verdadeiro adorador. Essas passagens refletem os elementos principais do legado de Ratzinger como teólogo, pastor e profeta da renovação litúrgica. Como um todo, seu ensino serviu de luz, refletindo a verdadeira luz, brilhando nas trevas de um mundo que se fechou ao divino.
“Por isso, todo escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus é comparado a um pai de família que tira de seu tesouro coisas novas e velhas” (Mateus, 13:52).
O tesouro novo e antigo reflete a habilidade fantástica de Ratzinger de retornar às fontes das Escrituras e dos Padres da Igreja e extrair novos insights deles. Ele olhou para a tradição com novos olhos, enquanto entendia os problemas e necessidades do momento. Numa época em que moda era descartar a história da Igreja, ajudou a recuperá-la e a fazê-la viver novamente, ordenando o seu pensamento para a renovação da Igreja.
Na minha opinião, Ratzinger será lembrado como o maior teólogo do século XX, tendo o legado mais longo e impactante de qualquer teólogo católico desde o cardeal John Henry Newman (sacerdote beatificado por Bento XVI e canonizado por Francisco). Ele representa o melhor do que se pretendia com o movimento de ressourcement (movimento que propôs a renovação da liturgia católica no século XX). Ele entendeu que algo novo era necessário, embora esse novo estilo não devesse criar uma ruptura com o passado, mas oferecer uma nova apresentação do que é sempre novo e nunca velho. Cada vez que leio uma pequena passagem de um de seus livros ou um discurso que ele fez, fico constantemente impressionado com a profundidade com que ele falou sobre todos os assuntos que abordou. Cada frase exala uma sabedoria inesperada.
É impossível capturar sua contribuição teológica em uma pequena homenagem, mas seus escritos sobre a interpretação bíblica fornecem um exemplo perfeito. O estudo da Bíblia havia se tornado quase completamente secular e cético. Cristãos fiéis, portanto, foram tentados a descartar estudos críticos. Ratzinger propôs, por outro lado, especialmente em sua Palestra Erasmus, uma nova síntese, fundada na primazia da leitura da Bíblia como um texto unificado com a fé, ao mesmo tempo em que se baseava em quaisquer percepções históricas e literárias úteis da nova metodologia.
Sua visão da interpretação das escrituras, em última análise, aponta-nos para um tema central de sua teologia como um todo: a harmonia da fé e da razão. Em seu discurso em Regensburg, ele explicou como a própria Bíblia nos comunica essa visão:
"Logos significa razão e palavra - uma razão que é criativa e capaz de autocomunicação, precisamente como razão. João, portanto, falou a palavra final sobre o conceito bíblico de Deus, e nesta palavra todos os fios muitas vezes cansativos e tortuosos da fé bíblica encontram seu ápice e síntese. No início era o logos, e o logos é Deus, diz o evangelista”.
A Bíblia se dirige a nós como seres racionais e convida a fé como uma resposta da mente informada pela verdade da criação.
Sua “Introdução ao Cristianismo” encapsula seu trabalho mais amplo, de reintrodução dos fundamentos do Cristianismo, mostrando-nos que precisamos abandonar nossa complacência para ouvir a mensagem do Evangelho novamente. Da mesma forma, ele queria que víssemos Jesus de forma renovada em seus volumes de “Jesus de Nazaré”, como “uma figura historicamente plausível e convincente” (vol. 1, XXII). Embora ele nunca tenha concluído sua pretendida magnum opus de uma obra completa de teologia sistemática (entregando-se antes a servir como bispo, prefeito do Vaticano e papa), ainda assim temos um extenso corpo de obras sobre uma ampla gama de tópicos que nos manterão ocupados por algum tempo.
Como Papa, sua análise pungente da Igreja e do mundo ficou melhor nos discursos monumentais que proferiu por toda a Europa:
Regensburg – sobre a fé e a razão (conhecido pelos comentários de Bento XVI sobre a violência no Islã).
Paris - sobre o papel dos beneditinos na formação da cultura, unindo na busca de Deus a palavra e a obra.
Roma - o discurso que não pôde fazer devido aos protestos na universidade, La Sapienzia, sobre a universidade e a verdade.
Londres - no Westminster Hall, local do julgamento de Thomas More, sobre fé e democracia.
Berlim - proferiu o Reichstag governante de sua própria nação, sobre a necessidade da justiça como fundamento da lei.
Em todos esses discursos, ele pediu uma relação robusta de fé e razão (ambas as quais estão minadas em nossa cultura) para restaurar a humanidade e um caminho para a renovação do Ocidente.
“Qual é o administrador sábio e fiel que senhor estabelecerá sobre seus operários para lhes dar a seu tempo a sua medida de trigo?”. (Lucas 12:42).
Ratzinger, como São Gregório Magno, não teve permissão de abraçar uma vida de contemplação e estudo silenciosos, pois foi lançado no centro da vida pastoral da Igreja. Seu trabalho neste serviço não foi uma distração ou oposição à sua vocação teológica. O seu serviço eclesial permitiu à sua visão teológica moldar a vida da Igreja de forma orgânica.
Ele sabia o que estava em jogo na missão da Igreja, começando sua formação no seminário na fornalha da Segunda Guerra Mundial. Ainda jovem sacerdote continuou os estudos, ensinou catequese, exerceu funções paroquiais e tornou-se professor universitário. Ele irritou seus colegas desde o início com seu ensaio, “Os novos pagãos e a Igreja”, perturbando até mesmo seu bispo, o cardeal Joseph Wendel. Este ensaio deu início a uma longa luta contra o secularismo na sociedade e também na Igreja.
O Concílio Vaticano II, um momento verdadeiramente crucial em sua vida, colocou Ratzinger, com a idade de trinta e cinco anos, no meio dos esforços da Igreja para encontrar uma nova forma de engajar o mundo moderno. Como perito, ou especialista em teologia, de um dos bispos mais influentes, o cardeal Josef Frings, ele teve a oportunidade de ajudar a moldar a direção do Concílio, particularmente defendendo a rejeição de documentos pré-preparados e ajudando a redigir novos textos. Após o Conselho, ele alcançou sucesso como professor, servindo em Bonn, Münster e Tübingen, antes de se estabelecer, por um tempo, em Regensburg.
O Senhor o chamou para ser pastor, no entanto, e ele abandonou relutantemente a universidade e aceitou sua nomeação como arcebispo de Munique em 1977. Ele foi nomeado cardeal por Paulo VI pouco depois e, apenas alguns anos depois, João Paulo II o convenceu, mais uma vez com relutância, a vir a Roma para servir como seu prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé. Seu serviço nesta posição fluiu naturalmente de seu compromisso com a verdade a serviço do ministério da Igreja. Ele viveu de acordo com seu lema episcopal trabalhando em colaboração com os bispos de todo o mundo, especialmente na criação do Catecismo da Igreja Católica.
Eleito pastor-chefe do rebanho, em 2005, demonstrou ser um Papa gentil, mas corajoso. Ele agiu com cautela, no entanto, não querendo forçar seus pontos de vista sobre a reforma da Igreja (a uma falha), mas agiu pela salvação das almas de qualquer maneira. Vemos isso em sua relutância em promover a reforma litúrgica, mas em sua disposição de passar por cima dos bispos ingleses para formar ordinariatos para os anglicanos. Criar os ordinariatos foi um movimento histórico, mostrando sua ousadia em formar novas estruturas e infringir o politicamente correto quando mais importava. Outro exemplo dessa coragem pode ser encontrado no Summorum Pontificum, removendo as restrições à celebração da Missa Tridentina.
Ninguém pensava que a administração fosse o ponto forte de Ratzinger como papa. Ele tinha suas prioridades, no entanto. Ele enfatizou a nomeação de bispos sólidos e garantiu que seus indicados fossem doutrinariamente sólidos e dispostos a engajar a cultura e evangelizar. Ele também implementou reformas para lidar com o abuso sexual (com base em seu trabalho na CDF) e para regularizar as práticas financeiras (que enfrentaram forte oposição).
Ao longo de seu ministério como sacerdote, bispo, oficial da Cúria e Sumo Pontífice, ele nos deu o alimento necessário no tempo devido. Em um tempo de caos doutrinário e pastoral, o Senhor levantou Ratzinger para nos alimentar com a verdade de Seu Evangelho de uma forma que não se esquivasse dos desafios apresentados pela cultura secular. Na verdade, ele considerou a fé o único antídoto para o espírito anti-humano de nosso tempo. Ele insistiu que a verdadeira liberdade vem somente da obediência a Deus.
“Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja” (João 4:23).
Ratzinger entendeu a única coisa necessária, da qual Jesus falou a Marta (Lucas 10:42). Sentar aos pés do Senhor, entrar em comunhão com Ele - essas são as realidades mais importantes na vida da Igreja. Ratzinger compreendeu “uma coisa” em meio a uma crise espiritual em que as preocupações materiais foram colocadas antes da fé e da adoração. Por isso se confrontou com a teologia da libertação, que buscava transformar o Reino de Deus em algo político e terreno. Foi um momento de catequese vivencial, mais voltada para os sinais do tempo do que para o Evangelho. Em resposta, Ratzinger serviu como profeta chamando a Igreja para adorar em espírito e verdade.
Em um prefácio lançado recentemente para a edição russa do volume 11 (o primeiro lançado) de sua opera omnia, ele descreveu a centralidade da liturgia:
“Tornou-se cada vez mais claro que a existência da Igreja vive da própria celebração da liturgia e que a Igreja está em perigo quando o primado de Deus já não aparece na liturgia e, consequentemente, na vida. A causa mais profunda da crise que abalou a Igreja reside no obscurecimento da prioridade de Deus na liturgia. Tudo isso me levou a me dedicar a este tema mais do que antes, porque sabia que a verdadeira renovação litúrgica é uma condição fundamental para a renovação da Igreja”.
Ratzinger nos chamou para colocar Cristo em primeiro lugar e centralizar nossa liturgia nele e não em nós mesmos. Sua visão teológica como um todo se cansa de nos reorientar para uma visão e prática teocêntrica, ao invés de antropocêntrica.
A adoração se tornou mundana, plana e autocentrada - uma forma ineficaz de entretenimento. Em uma de suas maiores obras, “O Espírito da Liturgia”, Ratzinger não faz rodeios ao examinar a adoração do bezerro de ouro e observar que se trata de um "círculo fechado em si mesmo", "egoísmo", "autogratificação banal” e “autoiniciada”. Embora use uma imagem do Velho Testamento, não há dúvida do que ele está se referindo. Precisamos de adoração, mais do que qualquer outra coisa. Não é autoafirmação, não é uma reunião sociológica, não é um momento de instrução, mas adoração real e genuína.
Ratzinger nos pede, em um discurso de leitura obrigatória, que deixemos que a beleza de Cristo nos impregne, “sendo atingidos pela flecha da Beleza que fere”. Simplesmente falar sobre a verdade da fé não é suficiente. Precisamos experimentar a beleza daquilo em que acreditamos, que deve brilhar em nossa adoração. A liturgia expressa a alegria da Jerusalém celeste, irrompendo no tempo: “As festas são uma participação da ação de Deus no tempo, e as próprias imagens, como lembrança em forma visível, são envolvidas na representação litúrgica”. A forma da liturgia é importante; nossas ações dentro delae são importantes; a música é importante; as imagens importam, porque todas elas medeiam uma realidade celestial e, portanto, devem representar adequadamente o que significam.
Os que aguardavam uma reforma da reforma ficaram desapontados com a falta de ação decisiva do papado de Ratzinger. Em vez de iniciar mais adulterações na liturgia, ele procurou restaurar sua continuidade orgânica e abrangente por meio do Summorum Pontificum. Parando lado a lado, ele queria que as formas ordinárias e extraordinárias do rito romano se enriquecessem reciprocamente, colocando a reforma litúrgica mais além no horizonte, mas tomando um curso mais natural. Embora aparentemente tenha descarrilado, ainda devemos permitir que esse longo processo dê frutos. Devemos lutar para preservar e espalhar o legado litúrgico profético de Ratzinger.
Conclusão
Ratzinger nos oferece um modelo de serviço fiel ao Senhor e à Sua Igreja. Ele nunca se considerou digno de seu ministério, mas se via como um “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”. Ele queria se aposentar antes mesmo do início de seu papado, mas serviu em toda a extensão de suas forças. Como um bom administrador, a quem foi confiada a verdade e o culto da Igreja, ele estará preparado para receber sua recompensa.
Conhecendo sua verdadeira qualidade, podemos ter certeza de que seu legado não será desmontado. Apesar de quaisquer ações para limitá-lo ou revertê-lo, ele continuará a brilhar e iluminar a Igreja quando os nomes de seus críticos forem esquecidos por muito tempo. Ratzinger não trabalhou para criar um legado para si mesmo, mas para nos apontar para o Senhor. Nesse serviço, ele segue os passos de João Batista, como homem enviado por Deus para dar testemunho, dar testemunho e inspirar fé. O tempo provará o valor duradouro de seu trabalho como teólogo, pastor e profeta litúrgico.
Aqueles que foram enriquecidos pelos ensinamentos e exemplos de Ratzinger devem trabalhar duro para se apropriar e preservar seu legado. Na minha mente, nós apenas começamos a comunicar os ricos tesouros que este administrador trouxe para a casa do Senhor. Ao nos lembrarmos desse grande homem enviado a nós por Deus, devemos considerar como podemos nos tornar cooperadores da verdade com ele.
©2022 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês.