“Considero o crime de vocês pior que assassinato. A sua conduta ao colocar a bomba atômica nas mãos dos russos, anos antes dos nossos melhores cientistas preverem que a Rússia iria aperfeiçoar a bomba, já causou, na minha opinião, a agressão comunista na Coreia, com as baixas resultantes excedendo 50 mil. Sua traição, sem dúvida, alterou o curso da história em desvantagem do nosso país”.
Foi com estas palavras que o juiz Irving Kaufman justificou a decisão de condenar Julius e Ethel Rosenberg à morte, no dia 29 de março de 1951. O casal seria eletrocutado em 19 de junho de 1953. Julius sucumbiu à primeira descarga. Ethel foi submetida a três, e ainda assim seu coração não parou. Precisou de mais duas doses para enfim falecer.
Do Centro Correcional Sing Sing, os corpos seguiram para o cemitério judaico Wellwood, na cidade de Babylon, em Nova York. Aproximadamente 500 pessoas acompanharam o enterro. Outros 10 mil curiosos ficaram do lado de fora. Havia motivo para o interesse: os dois eram os primeiros civis condenados à morte por traição nos Estados Unidos no período da Guerra Fria. Seriam também os únicos.
A sentença do magistrado indica a gravidade das acusações que recaíram sobre os dois: evidências claras, alegou ele, indicavam que Julius, com o apoio da esposa, teria repassado aos soviéticos segredos militares altamente confidenciais, como radares, sonares, motores de propulsão a jato e projetos de armas nucleares americanos, em especial a bomba “Fat Man” lançada sobre Nagasaki em 9 de agosto de 1945. O esforço dos dois, argumentou, se mostrou importante para a União Soviética tirar o atraso em relação aos americanos no desenvolvimento de explosivos atômicos.
Dúvidas sobre a culpa
Ainda assim, num primeiro momento, com boa parte da investigação mantida sob sigilo, a condenação foi motivo de polêmica. Quando o governo americano ofereceu retirar a pena de morte caso os dois admitissem a culpa e colaborassem fornecendo outros nomes de espiões, a resposta veio numa declaração pública: “Ao pedir que repudiemos a verdade da nossa inocência, o governo admite as suas próprias dúvidas relativamente à nossa culpa. Não seremos coagidos, mesmo sob pena de morte, a prestar falso testemunho”. Os dois insistiam que eram inocentes.
Quando da condenação, Julius estava com 32 anos. Ethel, 35. Tinham dois filhos pequenos, Michael, de oito anos, e Robert, de três anos. Ainda que a maior parte das organizações judaicas, bastante influentes nos Estados Unidos, não tenham saído em defesa dos dois, uma série de personalidades se manifestou a favor do casal, como o filósofo Jean-Paul Sartre, o poeta e cineasta Jean Cocteau, o físico-químico ganhador do Prêmio Nobel Harold Urey, o dramaturgo Bertolt Brecht, os pintores Pablo Picasso e Frida Kahlo, além do físico Albert Einstein. O Papa Pio XII também pediu que o casal fosse poupado da pena capital, sem sucesso.
“Lembre-se sempre de que éramos inocentes e não podíamos prejudicar a nossa consciência”, escreveu a mãe para os filhos em seu último dia de vida, segundo relata a jornalista britânica Anne Sebba no livro 'Ethel Rosenberg - An American Tragedy' (“Ethel Rosenberg - Uma Tragédia Americana”, sem edição em português). Ela deixou aos garotos uma caixa de sapatos cheia de cartas e poemas.
Michael e Robert também passaram décadas tentando provar que seus pais eram inocentes. Publicaram livros e artigos, deram palestras sobre o tema. Sua infância foi difícil. Desde que se viram órfãos, eles passaram pelos cuidados das avós, tanto materna quanto paterna, depois por um orfanato, e finalmente acabaram sendo adotados pelo músico e ativista comunista Abel Meeropol.
Desde então, assumiram o sobrenome Meeropol. Michael, que hoje tem 81 anos, se tornaria economista e professor. Ainda hoje vive em Nova York e teve dois filhos com Ann Karusaitis, falecida em 2019. Robert também vive na cidade, também teve dois filhos, com Ellen Meeropol. Tem 77 anos atualmente e é antropólogo.
A verdade vem à tona
Em 2008, os dois filhos dos Rosenberg mudaram de posição. Declararam que seus pais possivelmente atuaram, sim, como espiões a favor da União Soviética – ainda que mantivessem a argumentação de que a contribuição dos dois para a construção para a bomba atômica russa não estivesse inteiramente comprovada. O que os fez mudar de ideia foi a publicação, naquele ano, de boa parte dos documentos relativos à investigação e ao julgamento do casal. Dedicada a preservar registros do passado do país, a agência independente National Archives of the United States foi autorizada a compartilhar a maior parte das transcrições do julgamento de Julius e Ethel.
Além disso, em setembro de 2008, Morton Sobell, um engenheiro americano que participou do grupo de espiões que incluía os Rosenberg e foi condenado a 30 anos de prisão, dos quais cumpriu 17 anos e 9 meses, concedeu uma entrevista ao jornal The New York Times na qual admitiu ter fornecido documentos a um contato soviético. Também informou que Julius “entregou aos soviéticos informações militares e industriais confidenciais sobre a bomba atômica”, ainda que acreditasse que os diagramas repassados aos soviéticos tenham tido pouco valor prático.
Os filhos dos Rosenberg então escreveram um artigo, publicado em outubro de 2008 pelo jornal Los Angeles Times. “Durante muitos anos, acreditámos que os nossos pais eram totalmente inocentes das acusações contra eles. Mas ao longo dos anos, e especialmente à medida que mais provas se tornaram disponíveis no final da Guerra Fria, começamos a questionar essa crença”. Ainda assim, defendem a mãe e questionam os métodos da justiça americana: “Aqueles que estavam no poder tinham como alvo os nossos pais, tornando-os o foco do medo e da raiva do público na era da Guerra Fria. Eles fabricaram testemunhos e evidências. Prenderam a nossa mãe simplesmente como forma de convencer o nosso pai a cooperar”.
Os documentos do serviço secreto soviético liberados depois do fim da União Soviética também mencionavam a participação dos Rosenberg no esquema de espionagem. E mais: em 1995, o governo americano havia finalmente reconhecido a existência, durante a Guerra Fria, do Projeto Venona, um programa de contraespionagem para decriptar mensagens transmitidas pelas agências de inteligência da União Soviética.
Entre os documentos liberados havia também menções à atuação dos Rosenberg como agentes soviéticos infiltrados. Eles também citavam largamente os nomes de duas pessoas cruciais da conspiração: David e Ruth Greenglass. E corroboram a argumentação de Michael e Robert, de que Ethel Rosenberg pode não ter participado ativamente das ações – ainda que estivesse plenamente ciente delas.
“Ethel Rosenberg não era, creio eu, uma espiã”, argumenta Anne Sebba em seu livro. “Nem ela era uma santa. Ela era obstinada, determinada, propensa a dúvidas e não fazia amigos facilmente. Ela também era uma comunista empenhada, muito inteligente e ferozmente leal ao seu amado marido, que sem dúvida era um espião comunista, passando segredos militares à União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial”.
Passado comunista
Julius Rosenberg nasceu em 12 de maio de 1918, em Nova York. Seus pais eram imigrantes judeus que haviam se mudado do Império Russo. O jovem foi líder da Liga Comunista Jovem dos Estados Unidos e, em 1939, se formou em engenharia elétrica. No mesmo ano, se casou com Ethel Greenglass, nascida em 1915, também em Nova York, de pais judeus refugiados, ele da Rússia, ela da Áustria. Tentou ser atriz e cantora, mas acabou por ganhar a vida como secretária. Conheceu Julius durante um evento da União Internacional dos Marinheiros, no último dia do ano de 1936, como relata Anne Sebba.
“Ethel ficava encantada sempre que lhe pediam para usar seu talento como cantora em comícios da Aliança dos Trabalhadores, em eventos de arrecadação de fundos para voluntários americanos que lutavam contra o General Franco na Espanha e, aos sábados, entretendo funcionários em greve do lado de fora da Ohrbach's, a loja de departamentos em 14th Street, em Lower Manhattan. Na véspera de Ano Novo, quando a União Internacional dos Marinheiros realizou um evento beneficente, sua reputação fez dela a escolha óbvia como artista principal”.
Mas ela estava nervosa. Foi quando um estudante de 18 anos, Julius, se aproximou. Ele já havia reparado em Ethel em outras ocasiões – eles moravam próximos um do outro. Mas nunca tinha conversado com ela. “Ele a viu no corredor, esperando sua vez de cantar, e pediu a um amigo que os apresentasse. Quando ela admitiu seu nervosismo, ele sugeriu que encontrassem uma antessala e que ela ensaiasse apenas para ele, antes que fosse sua vez de se apresentar publicamente. Julius era alto, bonito, educado e, acima de tudo, cheio de admiração por Ethel e sua bela voz. Lisonjeada, Ethel aceitou a sugestão de que partissem juntos e ele a acompanhou até sua casa. A partir daí eles se tornaram inseparáveis”.
Ethel tinha um irmão mais novo, nascido em 1922: David Greenglass. Com 20 anos, David se casou com Ruth Printz, que tinha então 18 anos. Também participavam da Liga Comunista Jovem, um vínculo que ele precisou esconder em 1944 a fim de ser aprovado para participar no Projeto Manhattan de desenvolvimento da bomba atômica americana. Em agosto de 1944, David começou a atuar como técnico dentro do laboratório Los Alamos, no Novo México.
Na época, Julius já atuava fazia dois anos como espião, aproveitando o acesso a informações confidenciais produzidas no lugar onde ele trabalhava, o laboratório de engenharia do Exército em Fort Monmouth, Nova Jersey. Por sugestão de seu contato soviético, Alexander Feklisov, um agente russo que operava a partir do consulado soviético na cidade, resolveu abordar David a fim de sugerir que ele contribuísse com informações.
Feklisov defendeu aos superiores a aquisição destes novos espiões. “Eles são pessoas jovens, inteligentes, capazes e politicamente desenvolvidas, que acreditam fortemente na causa do comunismo e desejam fazer o seu melhor para ajudar o nosso país tanto quanto possível. Eles são, sem dúvida, devotados a nós.”
Dessa forma, David e Ruth começaram a atuar em parceria com Julius e Ethel, sob a supervisão de Feklisov. Julius também recrutou outras pessoas, formando um círculo de espiões que levou aos soviéticos, entre outras informações, detalhes do primeiro avião a jato da Força Aérea Americana a ser usado em combate, o P-80 Shooting Star, da Lockheed.
Confissão tardia
Quando o refugiado alemão e físico teórico Klaus Fuchs, que trabalhava para a missão britânica no Projecto Manhattan, foi preso por atuar como espião, a conexão entre os espiões começou a vir à tona – Fuchs também tinha sido convocado por Feklisov e tinha como mensageiro o americano Harry Gold, que também interagia com David.
David foi preso em 15 de junho de 1950 e rapidamente delatou o cunhado e a irmã. Julius seria detido em 17 de julho e Ethel, em 11 de agosto. A principal acusação contra Ethel havia partido dos testemunhos de David e Ruth: a esposa de Julius teria digitado à máquina uma série de anotações de documentos confidenciais.
Em 2001, num depoimento inédito após 40 anos de silêncio, David confessaria que não lembrava quem digitou o material. Mas que preferiu comprometer Ethel e Julius para preservar sua esposa, ainda que não imaginasse que eles seriam condenados à morte. Deu certo: Ruth não foi condenada.
“Minha esposa é mais importante para mim do que minha irmã. Ou minha mãe ou meu pai. Ela era a mãe dos meus filhos. Eu não sacrificaria minha esposa e meus filhos pela minha irmã”, ele declarou. David ficou preso até 1960. Depois passou a viver com a esposa em Nova York usando nomes falsos. Ela faleceu em 2008, ele em 2014. “Durmo muito bem”, declarou, em 2001.
“David Greenglass nunca chorou por sua irmã”, relata o jornalista do The New York Times Sam Roberts na obra 'The Brother - The Untold Story of the Rosenberg Case' (“O Irmão - A História Não Contada do Caso Rosenberg”, sem tradução para o português). “Ele não chorou quando ela foi presa, quando ela foi condenada, ou mesmo quando ela foi sentenciada à cadeira elétrica, então talvez não fosse estranho que ele não chorasse naquela sexta-feira infernal de junho de 1953, quando ela morreu”.
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