O discurso do século XX é marcado pelo tema da crise do mundo moderno. Os tradicionalistas – de René Guenon a Julius Evola – impõem à Modernidade um destino sombrio – de alienação e degeneração – enquanto buscam a salvação da civilização. Este assunto é importantíssimo para os nossos dias, posto que alguns tradicionalistas veem a Rússia como a nação redentora antimoderna. Por isso, inobstante a morte cruel de civis, eles apoiam a guerra sob a narrativa de que a OTAN precisa cessar o avanço de suas atividades no Leste europeu, caso contrário a modernização e ocidentalização tomará conta da Ucrânia. O objetivo da guerra, dizem eles, conflui com a reunificação da consciência fragmentada, manipulada através das mais diversas correntes ocidentais:
O positivismo atribui à comunidade científica a autoridade absoluta, fazendo com que o homem comum desconfie das suas experiências existenciais, como se o laboratório importasse mais do que o mundo da vida. O marxismo reduz as visões de mundo à ideologia da classe dominante, como se nenhum pensamento individual fosse autêntico. O pragmatismo diminui as ideias filosóficas pelos seus desdobramentos práticos, menosprezando a vida contemplativa e a interpretação simbólica da realidade. O comunismo apura as técnicas de lavagem cerebral, a fim de remodelar as mentes individuais aos discursos coletivistas. O nazifascismo difunde as suas propagandas políticas através da arte, hipnotizando as massas por meio de pinturas, músicas e peças teatrais. A democracia manipula o comportamento popular através da engenharia social e bombardeiro informático, contando com a mídia financiada, o excesso de propaganda e os discursos demagógicos. O desconstrucionismo retira a substancialidade da consciência, reduzindo a realidade à interpretação e cristalização de signos provisórios. O gramscismo, finalmente, escraviza a mente à propaganda, a fim de que o povo seja comunista sem o saber.
Por razões congêneres, Julius Evola declara e escreve a “Revolta Contra o Mundo Moderno”. Sob a sua ótica, a Modernidade vem esquecendo as duas naturezas do Ser – a metafísica e a física – com a tendência de reduzir a existência à segunda. Em contrapartida, o homem tradicional tem consciência da hierarquia entre a região superior do Ser (imortal, invisível e intangível) e a região inferior do devir (mortal, visível e tangível).
Segundo o autor, essa consciência não se dá simplesmente como sentimento, crença ou pensamento, mas como experiência do espírito. É como se o olho da alma do homem tradicional estivesse aberto para enxergar por trás do véu do mundo, enquanto o do homem moderno está fechado. Mesmo quando aceita a existência do transcendente, este assente a sua realidade como uma ideia especulativa, sentimento espiritualista ou até dogma exterior. Ele vive o que se chama de “sobrenaturalismo seletivo”, isto é, embora afirme crer no mundo sobrenatural, vive como um sujeito materialista.
Conceitualmente, a ascese consiste em exercícios espirituais de renúncia ao próprio ego (fruto do individualismo) e à sujeição ao meio (consequência do coletivismo). Ambos são produtos ora das ideologias, ora dos pecados capitais; portanto, doenças do espírito que distorcem a visão da realidade, e destroem o poder do autocontrole. Assim, os exercícios ascéticos apartam o homem da religiosidade sentimentalista, cuja caricatura é a do fiel que pede a Deus que realize todos os seus desejos, no lugar de pedir a aceitação da vontade divina. Sendo o religioso moderno como uma criança mimada, que pede ao Pai a realização dos seus caprichos, ao passo que o religioso tradicional é como o guerreiro maduro, que crucifica o seu ego e aceita o mundo-como-tal.
Tradicionalmente, segundo Evola, o sacerdote conserva estas práticas e comunica os mistérios divinos. Ele afirma que isto é importante ressaltar após o advento do Protestantismo, o qual, segundo “A Revolta Contra o Mundo Moderno”, substitui a essência do poder espiritual pelas suas funções acidentais, sobretudo a de presidir os cultos. O autor diz que a missão clerical essencial desaparece com o livre exame, o qual retira do sacerdócio o arquétipo do sábio, que consiste em aconselhar e guiar a alma humana, igualando-o, no entanto, ao lacaio.
Como a sua obra interpreta a realidade de forma holística, esta mudança quanto ao poder espiritual tem implicações no âmbito do poder temporal, a saber, a destruição do Direito Divino dos Reis. Evola diz que a autoridade política tradicional não é oriunda de contingências sociais, mas da hierarquia celeste. Consequentemente, a lei humana participa da lei divina, fazendo do mundo do devir o reflexo do mundo do Ser. Com efeito, diz o autor, a revolução política moderna prejudica o destino da alma humana, a qual precisa saber o seu lugar no cosmos.
Por isso, afirma Evola, a sociedade tradicional é organizada sob a forma de castas, que não são apenas uma questão social, mas uma determinação natural. Essencialmente, as almas são movidas pelo que é áureo, bélico ou sacerdotal, artístico ou servil. Enquanto os modernos dizem que os indivíduos podem ser tudo o quanto quiserem, os tradicionalistas defendem que a natureza determina a vontade, sendo algumas obras impossíveis de serem plenamente realizadas para certas personalidades.
Em virtude disso, há certo sentido na crítica à Modernidade, afinal, são evidentes as más consequências do comunismo e a superficialidade do individualismo. Enquanto o resgate dos símbolos e a participação no suprassensível restabelece a comunhão entre o humano e o divino, o que é fundamental à ordenação da consciência e aceitação da realidade. Todavia, ao contrário do que pensam os evolianos, a politização da experiência de ordem caracteriza o que o filósofo Eric Voegelin chama de “fé metastática”: “A crença ou esperança numa repentina transfiguração da estrutura da realidade e na subsequente emergência de uma ordem paradisíaca.” Olavo de Carvalho comenta que a expectativa dessa transformação perpassa o âmago da literatura revolucionária. Os ideólogos elegem certos obstáculos (classes, raças, países, religiões ou instituições) e acreditam que basta a destruição do inimigo para que tudo volte a ser belo. Graças à fé metastática, a violência genocida, a transformação de um Putin no novo Messias, a subjugação da Ucrânia, toda vileza é legitimada. Mas se a modernidade existir, não lá fora, mas nos nossos corações? Como poetiza Fernando Pessoa: “Aceita a sensibilidade moderna e os seus resultados mórbidos, reconhecendo-os como mórbidos, mas tendo-os, ao mesmo tempo, por inerradicáveis.”
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia