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‘Jurassic World’ e o lado sombrio de Charles Darwin

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Assistindo ao capenga “Jurassic World: Reino Ameaçado”, por insistência do meu filho (aquele que, coitado, é obrigado a ir ao cinema com um pai chato como eu), penso em escrever sobre os vários defeitos do filme, da música hiperbólica aos diálogos sofríveis, passando pelas incongruências do roteiro, pelo uso repetitivo da chuva como elemento de suspense e, finalmente, pela presença da indefectível menina de casaquinho vermelho. 

Mas não adianta. Por causa dos muitos defeitos do filme, ainda no meio da projeção me vejo refletindo sobre como a produção de Spielberg acaba expressando a terrível falência da metafísica e a permanência do horroroso discurso darwiniano de que somos animais, apenas animais, nada mais do que animais, sujeitos à lei implacável da natureza e reduzidos sempre a um amontoado de átomos e reações químicas ao acaso. 

Leia mais: Darwin atormentado

“Presta atenção ao filme, pai!”, exige meu filho quando me vê fazendo umas anotações apressadas num caderninho, contando com o auxílio das cenas mais iluminadas. Mal sabe ele que estou prestando atenção não só ao filme, como também a tudo o que o roteiro expressa como verdade absoluta, meio sem querer e meio como consequência inevitável de todo um século de um darwinismo vulgar e não raro heterodoxo. 

Antes de mais nada, convém avisar a quem certamente me xingará (“mais um texto deste animal?!”) que sempre mantive uma relação de respeitosa – e diletantíssima – discordância em relação a Darwin e sua teoria da evolução das espécies. Nem de longe sou criacionista e, assim no geral, a evolução das espécies me parece bastante plausível para explicar o bico do tucano, etc e tal, mas talvez eu dê valor demais aos meus neurônios para considerá-los apenas estruturas complexas criadas por uma sucessão de mutações aleatórias ao longo de milhões de anos. Instintivamente, acho que há uma ou muitas lacunas aí. 

O próprio Darwin se sentia atormentado pela teoria que desenvolveu em suas viagens pelo mundo. Tive um professor de biologia que, lembro bem e invento melhor ainda, abriu aquele sorrisinho cínico e condescendente ao afirmar que Darwin demorou para publicar suas descobertas por causa de suas “crendices religiosas”. Outro, mais exaltado, falava numa conspiração da Igreja (não sei se católica ou anglicana) para acobertar a teoria da evolução das espécies. E todos, sem exceção, mencionavam as ideias de Darwin como se fossem leis incontornáveis, e não uma teoria muito boa, mas ainda assim uma teoria. 

Lado sombrio

O fato é que chegamos ao século XXI e a teoria de Darwin não só é muito popular como, ao longo do tempo, invadiu (poluiu?) nossa percepção de mundo a ponto de assimilarmos com facilidade e naturalidade o lado mais sombrio do darwinismo: a ideia de que não passamos de animais movidos pelo desejo de perpetuação da espécie, evoluindo ao sabor do acaso e sempre sujeitos às reações físico-químicas deste organismo que nada tem de especial. Teoricamente, e para fazer relação com o filme a que assisti entre um bocejo e outro, somos tão-somente um velociraptor melhoradinho – e olhe lá!

Minha pergunta ao assistir ao filme (e também ao andar pela rua, ao fazer compra no supermercado e até antes de pegar no sono) é: por que gostamos tanto de nos ver como animais, de nos reduzirmos aos nossos instintos mais básicos? E por que, desde a popularização do darwinismo, agimos de modo justamente a confirmar a tese de que não passamos de uma criaturinha a mais nesse planeta? 

Ainda no século XIX, o darwinismo deu origem ao movimento eugenista, aquele que queria melhorar a raça humana por meio da reprodução “científica”, como se fôssemos — surpresa! — animais. Apenas animais. Nada além de animais. Antes de culminar no nazismo e cair em desgraça, a eugenia fez um estrago no mundo todo, com políticas oficiais de esterilização obrigatória dos “desajustados” e, segundo o historiador Murray Rothbard, políticas econômicas elaboradas pela elite para impedir a procriação dos mais pobres. No Brasil, essa praga influenciou a política migratória, estimulando o “branqueamento” do país. 

O Homem Perfeito

As pessoas do começo do século passado acreditavam piamente que éramos animais, somente animais, nada mais do que animais – e que deveríamos ser tratados como tal. Mas nem todos. Porque esse tipo de pseudociência sempre pressupõe a existência de uma elite, uma “aristocracia biológica” composta por privilegiados que ditariam os rumos da Humanidade, sempre com a intenção de moldá-la a um conceito bastante subjetivo (e narcisista) de O Homem Perfeito. É a tal coisa: somos todos animais, mas uns são mais animais do que os outros. 

O nazismo foi o auge da mentalidade eugenista. E, pensando bem, foi também o auge do nosso comportamento mais animalesco mesmo, quando nos matamos uns aos outros como bonobos lutando por território. E aí aconteceu um fenômeno curioso: se por um lado a vitória sobre o nazismo pôs um ponto-final (alguns dirão que foi só um ponto-e-vírgula) na mentalidade eugenista, por outro parece ter reforçado ainda mais um darwinismo quase autoflagelador. Não foi à toa que o marxista Adorno disse que escrever um poema depois de Auschwitz era um ato de barbárie. 

Assim, o planejamento da sociedade por meio da genética perdeu força, mas a ideia de que somos animais, só animais, nada mais do que animais persistiu. Foi mais ou menos nessa época que as tartarugas de Galápagos deram lugar aos insetos. Não convinha mais fazer analogia entre humanos e bonobos; a moda agora era fazer analogia entre homens e seres ainda mais primitivos, mas que supostamente viviam em sociedades perfeitas. O homem passou a ver o mundo como um grande formigueiro (ou colmeia ou cupinzeiro) e a si mesmo como um artrópode desprovido de qualquer sentido maior que não o bem-estar da colônia.

Jacarés jurássicos

E onde entra o filme nisso tudo? – você deve estar se perguntando. Simples. Em Jurassic World: Reino Ameaçado, o Homo sapiens nada mais é do que uma espécie metida a besta que consegue resgatar os dinossauros da extinção e que, por vontade de uma criança (!), acaba tendo de conviver com os monstrengos para sempre (ou até a próxima extinção em massa, o que acontecer primeiro).

Somos tão obcecados pela ideia de que não passamos de simples animais que - repare! – dá tudo errado desde 1994, mas mesmo assim insistimos uma, duas, três vezes. Até que agora, depois de transformar muitos cientistas em petisco de T. Rex, parece que cansamos só para chegarmos à mesma conclusão que atormentou Darwin no século XIX, inspirou nazistas na década de 1920, impulsionou utopias neoartoprodianas até 1989 e levou Michael Crichton a escrever o primeiro Jurassic Park: somos animais, apenas animais, nada mais do que animais. E, a despeito de nosso intelecto superior (mas não muito) ao de qualquer criatura que já tenha reinado sobre o planeta, estamos agora condenados a surfar em ondas habitadas por gigantescos jacarés jurássicos. 

E aqui eu talvez iniciasse uma longa discussão sobre o que nos torna mais do que animais, muito mais do que um amontoado de células especializadas ao acaso e ao longo de milhões de anos e muitíssimo mais do que sete bilhões de seres articulados numa grande colônia que chamamos de Terra. Mas meu filho está me cutucando, me pedindo novamente para prestar atenção ao filme. 

Tarde demais.

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