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Teólogo protestante

Karl Barth combateu a ideologização do cristianismo e o comunismo teológico

Karl Barth negava veementemente tanto o nazismo quanto o comunismo, defendendo que a teologia não se faz no método filosófico de verdades políticas
Karl Barth negava veementemente tanto o nazismo quanto o comunismo, defendendo que a teologia não se faz no método filosófico de verdades políticas (Foto: Reprodução Facebook)

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Nascido em 10 de maio de 1886, na Basileia, noroeste da Suíça, Karl Barth pode ser considerado o teólogo protestante mais influente de seu tempo. A teologia reformista de cunho conservador, a oposição ferrenha ao nazismo e também a capacidade singular de reestruturar a dogmática clássica do protestantismo em oposição à teologia liberal de Paul Tillich são algumas causas para isso. Filho de Fritz Barth e Anna Sartorius, desde cedo esteve envolvido no debate teológico e filosófico devido às atuações de seu pai como clérigo, professor de Novo Testamento e Igreja Primitiva. Não há detalhes precisos sobre como passou os seus primeiros anos de vida, certo é, todavia, que cresceu em Berna, num ambiente culto e tradicional, com seus pais constantemente debatendo filosofia e teologia no ambiente familiar, tendo o livre arbítrio ‒ uma causa primeira para os calvinistas ‒ sempre como uma questão a ser analisada e reanalisada após o café da manhã.

Estudou nas universidades de Berna, Berlim, Tübingen e Marburg, de 1911 a 1921 serviu como professor de teologia e pastor na aldeia de Safenwil, numa região conhecida como Cantão de Aargau, entre Basileia e Zurique. Em 1913, casou-se com Nelly Hoffmann, violinista de raro talento e uma erudita modesta em seu lar. O casal deu à luz a cinco filhos, uma menina e quatro meninos.

A atuação de Barth nos anos de pastoreio o marcaria de maneira profunda, principalmente porque notaria a olho nu o claro estrago que a teologia liberal vinha causando na crença e nas ideias populares dos seus fiéis. Sobre o tema ele poderia discorrer com propriedade, pois foi formado intelectualmente por liberais; em Berlim participou dos colóquios de Adolf von Harnack e teve como professor ninguém menos que Wilhelm Herrmann, um dos mais estimados teólogos liberais de seus dias. Além disso, ainda na casa de seus pais, ele havia estudado as influências filosóficas do iluminismo sobre esses autores e como eles tendiam a uma leitura marxista de Hegel, sendo este outro forte aspecto que o afastou da teologia liberal alemã, depois de seus anos de estudos pós-universidade.

Essa teologia liberal alemã, após 1920, acabaria abraçando conscientemente o socialismo alemão, tanto como uma resposta ao nazismo como por convicção ideológica. Karl Barth negaria veementemente tanto o nazismo quanto o comunismo. Acreditava que a teologia não se faz no método filosófico de verdades políticas, e é justamente aqui que ele se afasta categoricamente de Paul Tillich, teólogo influenciado pelo marxismo, que acreditava que a teologia estava subordinada às inquirições e métodos da filosofia, que a leitura cultural das verdades bíblicas antecedia a leitura espiritual.

Não à toa compôs a famosa Declaração de Barmen, texto em que o teólogo insistia que uma subordinação clerical e eclesiástica ao Estado ‒ naquele contexto o Estado nazista ‒ e às ideologias modernas seria uma traição fatal ao Evangelho e a Cristo. Aliado à Declaração, outro texto seu, Nein! Antwort an Emil Brunner [em tradução livre: Não! A teologia natural], o fez conhecido em todo mundo protestante norte-americano e o maculou politicamente na Alemanha, fazendo com que saísse fugido do país em 1935.

Uma teologia nem liberal e nem tradicional 

No entanto, como parece, foi a sua atuação como pastor e seus estudos que o levaram a se decidir por não adotar os pressupostos liberais em sua teologia autoral, o que fazia dele uma terceira via mais segura de protestantismo para aqueles que recusaram o nazismo e o comunismo como vias de leitura religiosa. Para Barth, tanto os pastores que abraçaram o nazismo, com aqueles que adulavam o comunismo, eram em essência um erro a ser extirpado do debate teológico, pois, sendo Deus o totalmente outro, a teologia não é uma ciência pautada nas bulas filosóficas e políticas de grupos de influência.

Sua teologia começa a se delinear em um processo de desintoxicação da teologia liberal; experiências do pastoreio de 1911 a 1921, e a partir de encontros que teve, especialmente, com Christoph Blumhardt, um teólogo luterano, de linha liberal, mas que havia feito pregações sobre a ressureição de Cristo e a centralidade da teologia nos escritos bíblicos que marcaram profundamente Barth. A partir dessa influência, ele inicia dois movimentos de retorno importantes.

O primeiro é o retorno quase que extremista ao texto bíblico, a ponto de chegar a momentaneamente abdicar de outros estudos paralelos; e o segundo, o retorno à pregação do evangelho de forma apaixonada e militante, o que gestaria um de seus livros mais belos e gratificantes de se ler: Palavra de Deus e Palavra do Homem ‒ ele terminará sua vida como pregador, mais do que como teólogo. Muitos acreditam que até esse momento não há uma teologia genuína em Barth, principalmente aquela que depois faria dele um teólogo admirado por homens como Thomas F. Torrance e Rudolf Karl Bultmann. A tese, no entanto, não é válida: em suas pregações já se enxerga o cerne de sua teologia, isto é, a separação completa do divino e da capacidade humana de compreensão desse divino, aquilo que ele chamaria de “totalmente outro”.

O totalmente outro 

Em A Carta aos Romanos, texto de comentários ao livro bíblico homônimo, Barth se estabeleceu como um teólogo original, reformista e uma verdadeira terceira via entre o tradicionalismo luterano alemão e a teologia liberal. Iniciada em 1916, enquanto atuava como pastor, sua primeira edição foi finalizada em 1918 e lançada no ano seguinte. No entanto, como pontuou logo que a obra foi lançada, ele não gostou do resultado final e, assim, decidiu revisar profundamente o texto entre 1919 e 1921. A obra foi relançada, em sua segunda edição, em 1922. Rapidamente essa segunda edição ganhou força em toda a Europa, sendo adotada até mesmo em alguns seminários católicos. Daí a brincadeira de que Barth seria o protestante mais amado pelos católicos.

Na obra, Barth argumenta que o Cristo morto na cruz e o Cristo ressurreto são completamente outro na percepção intelectual humana. Assim sendo, é impossível conceber a grandeza do Cristo em comparação com culturas, posses e métodos científicos humanos, Deus é imensurável em sua capacidade e análise. O livro serviu como fundamentação teológica para o desprendimento da leitura bíblica ante os movimentos e embates políticos da época. Fato é que parecia que não se podia ler um salmo sem correlacioná-lo às ideologias e debates políticos do momento, fazendo assim Tillich soar como o dono da razão.

Barth tenta resgatar o centralismo da fé cristã na revelação, e a teologia como fruto da reflexão teológica a partir dessa revelação, e não de instrumentos filosóficos e outros mais. A repercussão das ideias de Barth em A Carta aos Romanos o levou a ser convidado a lecionar na prestigiada Universidade de Göttingen, em 1921. Mais tarde, ele seria nomeado também para as universidades de Münster, em 1925, e Bonn, em 1930. Lá em Göttingen, para complementar sua nascente teologia, ele se volta aos escolásticos protestantes e aos Padres da Igreja ‒ patrística.

Seu Die protestantische Theologie im 19 [Teologia Protestante no Século XIX] trata de um prenúncio de sua obra mais complexa, Dogmática Eclesiástica [com edição brasileira, sob uma tradução aquém do que se esperava]. Em 1927, escreveu uma tentativa de epistemologia teológica própria em Die Lehre vom Worte Gottes; Prolegomena zur christlichen Dogmatik [A Doutrina da Palavra de Deus: Prolegômenos à Dogmática da Igreja]. Na obra, Barth tenta estabelecer como invariáveis certas interpretações da revelação, tal como a verdade do Espírito Santo, a Trindade Santa e a Encarnação de Cristo. No entanto, não estando satisfeito com seu método teológico, em 1931 ele recorre ao amigo Heinrich Scholz, filósofo da ciência, para ajudá-lo na composição dos seus estudos sobre Santo Anselmo ‒ os quais depois seriam impressos sob o título de Fides quaerens intellectum [Fé em busca de entendimento].

Foi somente em 1932 que lançou sua Dogmática Eclesiástica, onde estabelece as formas gerais de sua teologia, e se apresenta, por fim, como um teólogo de fato independente. Foi nessa obra que ele arregimentou como pressuposto de sua teologia aquilo que praticou em A Carta aos Romanos: a teologia dialética. Tal doutrina basicamente estabelece que a revelação une elementos que tendem a naturalmente se afastar: Deus e o homem, revelação e história, graça e pecador, eternidade e tempo, fazendo com que somente a partir da revelação evangélica a fé cristã se torne minimamente compreensível e praticável ao homem racional. Cabe pontuar, também, que aqui obviamente se encontra como base a visão hegeliana de dialética do espírito: posição > negação > síntese.

A crítica católica 

Uma crítica católica às ideias de Barth seria que, sob esse fundamentalismo bíblico e sua constante recusa em aceitar os raciocínios filosóficos para aclarar princípios teológicos, a teologia dele se transformou em um laicismo prático. Se Deus é totalmente outro, se a ele não podemos correlacionar os produtos da razão e da cultura humana, por que motivos Deus deveria influenciar na história, nas escolhas, nas tradições, nas leis, em suma, na condução civilizacional? Se o Deus revelado é inteiramente outro, o agnosticismo seria a religião mais adequada ao Deus de Barth. A análise católica do pensamento de Barth é realmente cortante, ainda que pareça superficial num primeiro instante, pois captura o cerne do pensamento do suíço e elabora uma crítica difícil de ser totalmente rebatida.

Ainda que não seja o que Barth pensou quando teorizou sua teologia autônoma, de fato a crítica católica parecia apresentar um ponto espinhoso para o teólogo, pois ele passa os finais de seus dias remendando e reanalisando sua teologia em vários aspectos. Para alguns, ele conseguiu desfazer os nós duros da crítica romana, para outros, não.

A teologia católica, que desde cedo se apoiou na filosofia grega, de Agostinho a Santo Tomás de Aquino, e posteriormente na revisão escolástica e renascentista, não poderia se apoiar em Barth, dono de uma teologia “sola scriptura”, para fazer suas considerações mais profundas. A Encíclica Fides et ratio [Fé e razão] de 14 de outubro de 1998, de São João Paulo II, apenas reafirma tal postura da Igreja Católica e afasta sua teologia de quaisquer solas tipicamente luteranas.

Mas com certeza a crítica teológica central de Barth e de Joseph Ratzinger, por vezes, andaram juntas e pareciam se completar. Ambos condenaram a ideologização do cristianismo, ambos foram favoráveis à emancipação eclesiástica ante ao Estado totalitário, ambos condenaram doutrinalmente a releitura bíblica feita pelos adeptos do comunismo teológico. Não à toa Ratzinger é considerado o maior teólogo católico da contemporaneidade, conseguindo estabelecer um elo entre a modernidade e a teologia tradicional do catolicismo; e Barth é considerado o maior teólogo protestante da modernidade, conseguindo restabelecer a liberdade cristã ante a utilização da revelação para fins políticos, e dando aos seus adeptos uma plataforma teológica sólida de reflexão sobre Deus.

Repercussão e últimos dias 

Após a Segunda Guerra Mundial, Barth se dedicou a formular mais profundamente sua teologia. Em 1947 publicou seu curso em Bonn, Dogmatik im Grundriss [Dogmática um esboço], livro preciso para compreender as revisões teológicas feitas por ele após o amadurecimento de suas ideias e as ditas “críticas católicas”. Nessa altura, seu prestígio acadêmico e popular era enorme.  Ele foi convidado a palestrar, por exemplo, no Conselho Mundial das Igrejas em Amsterdã, em 1962. No mesmo ano, por ocasião da publicação de sua obra Einführung in die evangelische Theologie [Teologia Evangélica: Uma Introdução] foi convidado pelas universidades de Princeton, Nova Jersey e Chicago. Conheceu Roma após o Concílio Vaticano II e escreveu, com extremo bom humor e cordialidade, sobre a ocasião. Ao todo, publicou 17 livros, sem contar os inúmeros artigos e anotações.

No final de sua vida, costumava fazer visitas periódicas à prisão da Basileia, demonstrando um forte espírito evangelista de seus tempos de pastor. Morreu nessa mesma terra, em 10 de dezembro de 1968, aos 85 anos.

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