Karl Heinrich Marx, o grande profeta de Trier – nascido em 1818 e falecido durante o seu exílio em Londres em 1883 –, notório entre seus pares por ser um ferrenho crítico do “fetichismo da mercadoria”, chega ironicamente no início do século XXI por meio de dois produtos criados para manter um nicho particular de exploração intelectual – o “pensamento marxista”, algo que seria diferente do “pensamento marxiano”, segundo os defensores mais ardorosos.
A distinção é sutil, mas essencial para compreender os propósitos do filme de Raoul Peck, O Jovem Karl Marx (Alemanha-França, 2017), e da biografia recém-lançada Karl Marx – Grandeza e Ilusão, do historiador inglês Gareth Stedman Jones (Companhia das Letras, trad. Berilo Vargas, 766 páginas).
Ambos pretendem mostrar que o marxismo originado no final do século XIX – e que seria a principal influência dos governos totalitários da União Soviética e da Alemanha nazista – não tem nada a ver com o seu fundador. Tanto Peck como Stedman Jones acreditam piamente que o “pensamento marxiano” (o que se pode apreender dos escritos caóticos de Marx) foi mal interpretado pelos seguidores do marxismo (a doutrina política que tinha Lênin, Stálin, Mao Tsé-Tung, Tito e, last but not least, Hugo Chávez como ilustres discípulos).
Em O Jovem Karl Marx, esta crença é apresentada de maneira sofrível. Nascido no Haiti, onde foi também ministro da Cultura no governo do primeiro ministro Rosny Smarth, Peck tornou-se mundialmente reconhecido pelo documentário indicado ao Oscar Eu Não Sou Seu Negro (2016), sobre o escritor James Baldwin, mas nenhuma dessas habilidades fica evidente no seu longa.
Como cinema, é pobre na construção dramatúrgica, medíocre no modo como filma seus personagens e na decupagem da câmera e da montagem. Sua estética é tão vergonhosamente ordinária que, enquanto o assistia, é de se imaginar se Stálin ou Andrei Zhdanov, patronos do “realismo soviético” que deveria combater a estética burguesa, não mandariam Peck para um campo de trabalhos forçados na Sibéria (no mínimo).
A trama do filme mostra Marx naquela fase de sua vida que os exegetas chamariam de “o período de formação” do futuro autor de O Capital (1867). Ou seja: os anos entre 1844 e 1848, quando ele conheceu o seu parceiro de ideias, Friedrich Engels, mudou-se com sua família da Prússia governada com mão-de-ferro por Frederico Guilherme IV para a Paris repleta de revolucionários fervorosos, depois Bruxelas e Colônia (onde soube das Revoluções de 1848), e lá escreveu um dos textos mais famosos de todos os tempos, para o bem ou para o mal – O Manifesto Comunista (1848).
Entre um evento e outro, sabemos como Marx (August Diehl) tratava sua querida esposa Jenny (Vicky Krieps); como ele usava e abusava da boa vontade e da admiração de Engels (Stefan Konarske), numa espécie de bromance claudicante, no qual Peck não hesita em mostrar que ali talvez existisse algo mais do que uma simples amizade; como era incapaz de manter suas finanças pessoais porque não recebia remuneração adequada por seus artigos jornalísticos; e, o mais divertido, como discutia – no fundo, desprezava – seus colegas de revolução, como Proudhon, William Weitling e Mikhail Bakunin.
Peck filma tudo isso com o tédio típico de um soldado da causa disfarçado de professor colegial – provavelmente para mostrar o longa ao seu verdadeiro público-alvo: as crianças do ensino médio, em seu estilo aparentemente didático, mas que, no fundo, esconde a intenção doutrinária.
O final do seu “épico” mostra Marx e Engels numa praia, olhando o horizonte do futuro, obrigados a fugir para Colônia e, depois, para Londres, sem saberem que em breve 1848 seria um ano explosivo na Europa – e aqui Peck insinua que as revoltas daquela época foram influenciadas, de uma forma ou de outra, pela divulgação de O Manifesto Comunista.
(Uma digressão que mostra a incompetência dos realizadores: ao ver que as revoluções do futuro afetadas pelas ideias marxianas – incluindo a Russa, destruidora de aproximadamente 15 milhões de vidas – são exibidas, nos últimos minutos da película, numa montagem alucinante ao som de “Like a Rolling Stone” de Bob Dylan, faz o espectador se perguntar se Peck leu o capítulo da autobiografia do cantor americano, Crônicas – Vol. 1, no qual escreve que mataria alguns hippies com um rifle, caso a sua casa em Woodstock fosse invadida pelos representantes deste filhote do marxismo, o Verão do Amor de 1968. Suspeita-se que não).
O cineasta haitiano idealiza a vida de Marx para mostrá-lo não só como um pensador que foi perseguido pelas autoridades governamentais que queriam sufocar as inovadoras ideias socialistas. Ele pretende mais. Para ele, o jovem Karl é um “titã do pensamento”, um “visionário”.
Além de ser péssimo cinema, é uma mentira em termos históricos. Neste ponto, a biografia de Gareth Stedman Jones é um pouco melhor – mas só um pouco.
Ilusão
Comparando os mesmos fatos relatados tanto no longa como no livro, sabemos, por exemplo, que Marx não amava tanto Jenny como divulgaram por aí (vejam o notório caso que ele teve com Lenchen, a dedicada empregada que lhe deu Frederick Delmuth, filho bastardo obrigado a ser reconhecido por Engels para não trazer desonra à família de Jenny, os aristocratas Westphalen); que extorquia dinheiro do autor de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (às vezes com anuência do próprio Engels, uma vez que ambos sabiam que deveriam trabalhar a favor da “causa revolucionária”, independentemente dos obstáculos e das manias de cada um); que gastava mais dinheiro do que podia (daí a sua eterna penúria que causou graves problemas de saúde aos filhos); e que jamais discutiu serenamente com Proudhon ou Bakunin, como quer nos mostrar Peck, uma vez que Marx era justamente famoso por suas explosões de fúria com eles e, mais, por suas artimanhas ao denegrir a reputação de quem considerava rival para seu projeto político, ao lançar dossiês repletos de fofocas e mentiras.
E isso é somente a ponta do iceberg. Apesar de ser claramente simpático ao seu personagem principal – chamando-o carinhosamente, no transcorrer da biografia, de “Karl” –, Stedman Jones não se furta a narrar detalhes desabonadores sobre ele.
Além dos tristes fatos de caráter pessoal, o historiador mostra, de maneira constrangida, que o pensamento de Marx também não tinha muito sentido concreto ou até mesmo alguma coerência lógica intrínseca nos seus princípios teóricos.
Apesar de fazer parte de uma tradição filosófica respeitável – o idealismo alemão, liderado por pensadores como Kant e Hegel, e que meditava seriamente sobre o problema da contingência humana –, Marx tentou fazer uma interpretação tão pessoal dela que, no fim, o levou a um impasse existencial. Ao final da vida, ele intuía para si mesmo – mas não podia admitir para os outros ao seu redor – que a sua grande teoria sobre essa entidade abstrata, “o capital”, não tinha qualquer relação com a realidade.
Era somente um produto da sua fértil imaginação, um grande drama cósmico, com tintas pretensamente cientificas, no qual, grosso modo, o mundo do capitalismo terminaria numa crise sem precedentes – a tão esperada revolução –, colocando enfim a ditadura do proletariado no poder para acabar com “o reino da necessidade” e assim surgir “o reino da liberdade”.
Essa vergonha subliminar exposta no relato de Stedman Jones é normal para quem vive dos estudos marxistas como sustento. Daí vem a separação estratégica entre o “pensamento marxiano” e o “marxismo”. Segundo essa linha de raciocínio, Marx era Marx – foram os seus discípulos que distorceram seus escritos, a começar por Engels (que, segundo o inglês, popularizou as ideias do amigo com seu panfleto Anti-Dühring, de 1878, e que fez a proeza de fundir a ideia do “materialismo dialético” com a da “seleção natural” de Charles Darwin).
Em termos intelectuais e abstratos, isso resulta em uma boa discussão acadêmica. No mundo real, significa retirar a responsabilidade que qualquer pensador tem diante da divulgação das suas ideias na sociedade onde vive – em especial, se elas resultaram no maior genocídio do século XX.
Infelizmente, o historiador prefere a primeira opção. Algo perfeitamente compreensível quando se é também o autor de uma minuciosa introdução ao Manifesto Comunista, lançada em 2004 na Inglaterra pela Penguin Books, e que ocupa cerca de 40% de um volume que originalmente não tem mais do que trinta páginas (e que mostra como “Karl” foi enfim transformado em um “fetiche”).
Para ele, mesmo que Marx tenha defendido a tática do “terror revolucionário” (leia-se: métodos violentos) para impor à Europa inteira as conquistas das revoltas de 1848, o pensador alemão nunca viu a revolução em si como um “evento”, mas sim como um “processo”, seja lá o que for isso.
Na sua visão de acadêmico simpático ao “pensamento marxiano” – e visivelmente temeroso com o que o “marxismo” fez com tais ideias –, Stedman Jones se deixa seduzir pela retórica apocalíptica que nunca abandonou Marx e que foi uma constante em seu raciocínio, desde os seus escritos de juventude (como a tese de doutorado sobre Epicuro), passando pelos de formação (ver as famosas Teses contra Feuerbach, analisadas por Olavo de Carvalho em O Jardim das Aflições, nas quais o alemão concluía que “os filósofos se limitavam a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo”), até os de maturidade (na previsão que faz em O Capital sobre o iminente término do capitalismo – e que, afinal de contas, nunca aconteceu).
Eis aí a raiz deste fascínio que ainda atormenta (ou alivia, dependendo do ponto de vista) a intelligentsia ocidental. Trata-se do fato de que, mesmo com as incoerências inerentes ao “pensamento marxiano”, a voz subterrânea do apocalipse e do gnosticismo – a crença de que o Reino dos Céus finalmente descerá à Terra, por meios exclusivamente humanos – é a melodia oculta que dá unidade à pretensa sinfonia de um homem célebre, que, no fundo, não passava de uma triste polca.
Essa mesma voz, contudo, é também o modo como um intelectual suficientemente honesto consigo mesmo deve se aprofundar para fazer a mais terrível descoberta para os que ainda defendem ora o próprio Marx, ora o macabro “marxismo” pelo qual ele é, sim senhor, integralmente responsável.
É a revelação de que, na verdade, estamos lidando com a “revolta gnóstica de quem se fecha à realidade transcendente”, nas sábias palavras de Eric Voegelin no oitavo volume de sua História das Ideias Políticas (intitulado “Crise e o Apocalipse do Homem”, a ser lançado no Brasil em 2018 pela É Realizações), e depois aprofundadas nos estudos de Leszlek Kolakowski (Main Currents of Marxism, de 1976), James Billington (Fire in the Minds of Men, de 1980), Paul Johnson (no devastador perfil biográfico que faz parte do antológico Os Intelectuais, de 1988), Richard Landes (Heaven on Earth, de 2011) e, em menor grau, pelo brasileiro Antonio Paim com seu fundamental Marxismo e Descendência (2009).
Sedução diabólica
Ao lermos as obras desses scholars, fica claro que o estudo de Marx e do marxismo não é apenas um “erro intelectual”. É uma “lacuna espiritual” que, uma vez incorporada na mente da pessoa, possui toda a sua existência até o seu âmago.
Não à toa que qualquer um que comece a estudar o “pensamento marxiano” é absorvido por uma espécie de buraco negro que, para ser eficaz no mundo real, precisa ser aceito nos seus pressupostos teóricos sem nenhum questionamento – o que é o oposto de qualquer filosofia séria.
Dessa forma, mesmo para o sujeito que deseja sair honestamente desse “campo de distorção”, a fuga será sempre dolorosa, uma vez que a revolta luciferina permanece em sua consciência numa intensidade surda que, ainda que a saída seja aparentemente bem-sucedida em alguns casos, trata-se apenas de mais um caso de “trocar seis por meia-dúzia”. Em outras palavras: uma mera virada de interruptor na corrente elétrica da doutrinação política.
Qual seria o antídoto para essa sedução diabólica? Poderia ser uma metanoia, uma conversão ao real, especialmente em termos religiosos? Sem dúvida, é uma opção, a mais viável de todas. Mas também podemos pensar em outra alternativa, igualmente simples, e que pode ser o início de uma ascensão sincera.
Devemos esquecer a retórica de alucinação em torno de Karl Heinrich Marx e vê-lo como o que era na verdade – um intelectual de gabinete que, apesar de ter um ímpeto moralista, mal conseguia arrumar a sua casa enquanto pretendia consertar os males da sociedade.
A prova disso está na famosa anedota na qual o poeta Heinrich Heine, ao chegar no final dos anos 1840 em Paris, visitou a residência do amigo capaz de abalar os alicerces do universo e viu que a filha caçula dele, também batizada de Jenny, estava com “fortes cólicas que ameaçavam matá-la. Marx, a mulher e sua fiel ajudante e amiga Helena Delmuth [Lenchen] ficaram parados em volta da criança na mais completa perplexidade. Heine chegou, deu uma olhada e disse: ‘A bebê precisa de um banho’. Com suas próprias mãos preparou um banho, pôs a criança e, foi o que disse Marx, salvou a vida de Jenny” (cf. Karl Marx – Grandeza e Ilusão, p. 178).
Se este era o homem que queria mudar o mundo com suas ideias, como querem nos mostrar Raoul Peck e Gareth Stedman Jones, estamos fritos. Marx só pode ser visto com os olhos do ridículo e do escárnio – jamais com os da misericórdia. E a nossa tragédia está na negação, típica de quem ainda não se libertou da revolta interior, de admitir que continuamos enfeitiçados por essa estranha sedução, elaborada por um pobre-diabo que, infelizmente, criou o mais terrível dos infernos.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.
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