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Era um sábado, dia 1º de julho de 1944, quando o major nazista Karl Plagge chamou os colaboradores do campo de trabalho HKP 562, em Vilna, na Lituânia, para uma conversa. Todos se aglomeraram em torno dele, incluindo uma prisioneira chamada Perela Esterowicz. Décadas depois, ela relataria o diálogo a seu filho, o médico Michael Good: “Ele nos avisou que o exército alemão estava deixando Vilna e nosso acampamento seria evacuado para o oeste, a fim de evitar a aproximação dos russos. Para enfatizar seu aviso, nos informou que deixaríamos de ser um campo de trabalho e estaríamos inteiramente nas mãos da S.S. E então comentou cuidadosamente: “E todos vocês sabem o quão bem a S.S. cuida de seus prisioneiros judeus’.”
Este breve discurso salvou aproximadamente uma centena de vidas, e assim garantiu a sobrevida a gerações inteiras. O recado foi dado, com uma informação adicional: a desmobilização aconteceria em apenas dois dias, e resultaria em assassinatos em massa. Pessoas como Perela já sabiam, graças a informações transmitidas por emissoras aliadas, em especial a BBC, que a SS, a polícia de estado da Alemanha de Adolf Hitler, tinha entre seus principais objetivos exterminar a população judaica da face da terra, enquanto havia vozes no ambiente militar que valorizavam a preservação destas pessoas, desde que elas atuassem, de forma compulsória, no esforço de guerra. De fato, quem não escapou foi submetido a um massacre, realizado pela SS dois dias depois.
Crucial para todos os envolvidos, o episódio transmite uma boa ideia da atuação de Plagge ao longo do conflito. Foi discreta, e limitada pelas circunstâncias. Mas, sempre que foi possível, ele se mobilizou para salvar a maior quantidade possível de seres humanos. Para isso, utilizou seu posto de responsável pelo HKP 562.
Quando o major foi submetido a julgamento no pós-guerra, já que ele era integrante do Partido Nazista desde 1931, diferentes testemunhas se apresentaram para explicar o quanto aquele militar de fala e modos gentis havia conseguido vistos de trabalho para pessoas que claramente não tinham talento ou formação para a principal atividade do campo, a mecânica. De fato, ele fez de tudo para proteger a maior quantidade de pessoas. Morreria em 1957, aos 59 anos, na Alemanha Ocidental, vítima de um ataque cardíaco.
Havia se rendido ao exército americano em 1945 e contratado um advogado para defendê-lo, apenas para deixar claro que não havia participado dos tantos assassinatos cometidos em seu entorno. Acabaria por ser inocentado. Ele não se via como herói, e nunca esqueceu o episódio em que, em sua folga, cerca de 250 de crianças do campo de concentração instalado ao lado do HKP 562 foram assassinadas – foi a chamada Operação Crianças, ou Kinderaktion, realizada pela SS em 27 de março de 1944.
Em uma carta que enviou a seu advogado, meses antes de morrer, Plagge se comparou a Dr. Rieux, um personagem do romance de Albert Camus, A Peste. Escrita durante o período de ocupação nazista na França, a obra relata os esforços do médico fictício que não consegue fazer muito, apesar de ter se dedicado de corpo e alma. Deixava claro que ele se via desta mesma forma: um homem que fez o que pode, mas considera que fez pouco. Perela Esterowicz tinha opinião diferente. Assim como seu filho Michael, que não existiria sem os esforços do militar.
Mais de mil pessoas salvas
Pouquíssimos defensores dos judeus durante o Holocausto homenageados pelo Yad Vashem, o memorial oficial criado em 1953 e gerido pelo governo de Israel, são alemães. Menos ainda militares, e uma quantidade ainda menor tinha no currículo fazer parte das fileiras do Partido Nazista. Graças aos esforços de Michael Good, Plagge alcançou essa honraria de forma póstuma, em 2004.
“O major Karl Plagge era expansivo na concessão de certificados de trabalho e não era exigente quanto às habilidades profissionais dos trabalhadores judeus. Os trabalhadores da garagem incluíam cabeleireiros, sapateiros e açougueiros”, informa o verbete sobre ele, publicado no site oficial do Yad Vashem.
“Plagge também fornecia certificados de trabalho falsificados para resgatar judeus da prisão e transferi-los para trabalhar em sua unidade”, prossegue o texto, que também menciona: “Com a aproximação dos soviéticos, Plagge alertou seus trabalhadores judeus sobre a liquidação iminente do campo. Após seu aviso, centenas de judeus fugiram do campo”.
Ao todo, mais de mil pessoas foram salvas pelo major ao longo do tempo em que ele se utilizou de seu posto na oficina de veículos militares para proteger judeus. Em várias ocasiões, não foi bem sucedido, como em um momento de setembro de 1943 em que interferiu para que mais de cem prisioneiros fossem retirados de um trem que seguia para a Estônia – e de lá para a morte certa. Na ocasião, depois que Plagge se retirou, os detentos foram colocados novamente dentro do veículo.
Perela Esterowicz fez parte do grupo que escapou da prisão antes da chegada dos soviéticos, graças ao alerta do militar. Passou dias em um abrigo subterrâneo apertado, até que os alemães fossem embora em definitivo. Ela lembraria depois que seu pai, Samuel, não sabia trocar uma lâmpada, mas foi mantido na oficina, assim como sua mãe, que recebeu a tarefa de costurar meias dos soldados, e assim teve a vida preservada.
Ela depois mudaria seu nome para Pearl e se casaria com Wowka Gdud, um jovem nascido em Vilna que, durante a guerra, passou três anos escondido nas matas da Lituânia e da Polônia – depois mudaria seu nome para William Good. Estima-se que, dos 60 mil judeus que habitavam a cidade antes da guerra, menos de dois mil sobreviveram, e a maior parte se transferiu para outros países, em especial os Estados Unidos, destino final do casal. Foi durante uma viagem para visitar a terra natal, em 1999, que eles relembraram suas histórias, em especial a importância do major Plagge, o que mobilizou o filho Michael a fazer um esforço de resgate da memória do militar.
Outros sobreviventes ouvidos relatam outros casos, como a ocasião em que o major encenou uma surra em dois prisioneiros judeus que haviam contrabandeado comida para o gueto – e assim impediu que a SS cuidasse do assunto à sua maneira. As histórias dos sobreviventes foram reunidas em um site e deram origem a um livro, The Search for Major Plagge (“A Busca pelo Major Plagge”, sem tradução para o português). O trabalho de Michael, que é médico de família e vive em Connecticut, também permitiu jogar luz sobre a biografia do major, que morreu sem deixar filhos.
Prisioneiro de guerra
Karl nasceu em 10 de julho de 1897, em Darmstadt, Alemanha. Formou-se em engenharia na Universidade Técnica da cidade, em 1924 – desejava cursar medicina, mas essa possibilidade estava além do alcance das finanças de sua mãe; o pai havia morrido em 1907, antes de ele completar sete anos. Antes de iniciar a graduação, lutou na Primeira Guerra Mundial. Esteve presente nas batalhas de Somme, Verdun e Flanders. Prisioneiro dos britânicos entre 1917 e 1920, ficou doente de poliomielite, quando perdeu boa parte dos movimentos da perna esquerda.
Aderiu ao Partido Nazista em 1931 e a princípio participou ativamente das atividades políticas em sua região – naquele momento, ele já estava casado com Anke Madsen e tocava um pequeno laboratório farmacêutico instalado na casa da sogra. Diria posteriormente que acreditava na proposta de fortalecer a economia e o orgulho alemães, mas que rapidamente discordou do caminho escolhido, a violência e a perseguição a outros grupos.
Deixou de participar de atividades públicas em 1935 e abandonou a filiação em 1939. “Fiz oposição clara aos métodos agressivos do nacional socialismo”, declararia depois. Nunca foi antissemita, dizia, e era padrinho de uma criança judia por parte de mãe, o filho de Kurt Hesse, que em 1934 o contratou para trabalhar em meio período em sua empresa de engenharia, a Hessenwerks. Era uma forma, também, de proteger Hesse e seu empreendimento.
A partir do início da Segunda Guerra, manteve-se à frente de uma unidade de reparos de veículos militares, e foi neste cargo que se instalou em Vilna, em 1941. Identificou os horrores perpetrados pela SS e começou a utilizar os valiosos postos de trabalho para salvar famílias inteiras – os colaboradores forçados tinham por direito garantir a preservação de seus cônjuges e de até dois filhos.
Esforços humanitários
Na medida em que a guerra avançava, ele conseguiu autorização para aumentar significativamente a quantidade de trabalhadores. A princípio, contratava judeus que viviam em guetos, até que eles passaram a ser fechados e os moradores, enviados para campos de trabalho e de concentração.
Em 16 de setembro de 1943, Plagge transportou mais de mil de seus trabalhadores judeus e suas famílias do gueto de Vilna para o campo HKP recém-construído na Rua Subocz 37, onde permaneceram em relativa segurança. Ele também contrataria outras mais de 100 pessoas, que se escondiam da SS nos escombros do local destruído. A fim de ampliar o alcance de suas ações, o militar também convenceria os superiores a criarem e gerenciar outras instalações, incluindo uma fazenda de coelhos e uma carpintaria.
Segundo aponta Michael Good em seu livro, um dos militares que atuou sob o comando Plagge, Alfred Stumpff, admirava seu superior e reconhecia o valor de seu esforço. “O major Plagge tinha uma mentalidade honrada e humana e rejeitava fortemente a política alemã de extermínio total de toda a população judaica nos territórios orientais ocupados. Sempre tratou os judeus de uma forma muito adequada e humana e queria que seus subordinados fizessem o mesmo. Demonstrou suas opiniões realmente ajudando as pessoas em perigo; isso não só exigiu grande coragem, mas também foi muito perigoso para sua posição e para ele mesmo”.
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