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Tiranos comunistas

Kim Il-Sung, o polígamo que rachou a Coreia e se transformou em uma divindade comunista

Estátua em homenagem ao ditador Kim Il-Sung em Pyongyang, capital da Coreia do Norte
Estátua em homenagem ao ditador Kim Il-Sung em Pyongyang, capital da Coreia do Norte (Foto: EFE)

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Em que ano você vive? Na Coreia do Norte, todos estão em 111. O novo calendário foi adotado em 1997 e forçou o redesenho de todas as datas registradas no país, inclusive em documentos oficiais e registros de nascimento e morte. Ele tem como base 1912, que passou a ser considerado o ano 1.

Por que 1912? Simples: foi quando nasceu Kim Il-Sung. A data exata em que ele veio ao mundo, 15 de abril, é o Dia do Sol, o feriado nacional mais importante para os aproximadamente 25 milhões de habitantes do país — “Il-Sung” significa, literalmente “tornar-se sol” (seu nome de batismo era outro, Kim Song-ju).

Neste dia, que é equivalente ao Natal para os ocidentais, a ração de comida e o número de horas por dia com eletricidade disponível é ampliada, sempre que possível — sinal da benevolência dos ditadores da nação comunista.

Crianças ganham doces, enquanto participam, com suas famílias, de peregrinações a locais importantes para a biografia do grande líder, como o local onde teria nascido, a vila de Mangyungbong, ou seu mausoléu, no Palácio Kumsusan, instalado na capital, Pyongyang, construído em 1976 e que foi a residência oficial do ditador — hoje abriga seu corpo embalsamado exposto em uma cripta de vidro. Para quem vive em outras cidades do país, não faltam monumentos para visitar e prestar homenagens. É recomendável, aliás, não faltar aos eventos cívico-religiosos do dia.

De certa forma, para os norte-coreanos, o ditador primordial não morreu. Apenas continuou vivendo por intermédio de seu filho, Kim Jong-il, que governou de 1994 a 2011, e Kim Jong-un, que assumiu o país, ainda com menos de 30 anos de idade, e permanece no poder desde então.

Tratado ainda hoje como uma divindade, Kim Il-Sung representa um caso raro de longevidade sem questionamentos aparentes. Em contrapartida, o soviético Josef Stalin foi publicamente criticado por seu sucessor logo que morreu, em 1956, assim como o fim do regime do chinês Mao Tse-Tung, em 1976 levou ao desenvolvimento de novas práticas de gestão, como a implementação de um sistema de liderança renovável a cada cinco anos, por apenas dois mandatos, num regime só alterado recentemente pelo atual comandante, Xi Jinping.

Um dos segredos do sucesso do ditador norte-coreano foi a paciência na implementação das políticas autoritárias – algo que faltou, por exemplo, ao cambojano Pol Pot, que tentou transformar seu país numa enorme fazenda coletiva do dia para a noite. Kim Il-Sung não instaurou seu regime rapidamente. Chegou ao poder no final da década de 1940 e só ao final dos anos 1950 havia consolidado seu poder autocrático.

Ele avançou sem pressa, contando com uma aposta de alto risco, que se mostrou suficientemente bem sucedida: uma declaração de guerra, num momento em que a Guerra Fria ainda começava a se desenhar.

Jogada certeira

Em 1950, enquanto o planeta ainda começava a se recuperar do desgaste promovido pela Segunda Guerra Mundial e se acostumava com a ideia de que a União Soviética e os Estados Unidos não eram mais aliados contra o nazismo, mas sim inimigos, a península da Coreia foi dividida por um conflito em que o Sul recebia apoio americano e o Norte contava com armas e orientação chinesa e soviética.

A tensão havia sido provocada pelos próprios vencedores do conflito global, que, em 1948, encerraram o período de controle japonês sobre a Coreia, iniciado em 1910, e dividiram a nação em duas. Ambos os lados, obviamente, passaram a desejar a reunificação, mesmo que à força.

Apoiados pelos regimes comunistas, as tropas do Norte invadiram o Sul em 25 de junho de 1950. O conflito durou três anos, até ser encerrado em 1953, com uma trégua nunca devidamente solucionada — tecnicamente, os dois lados permanecem em guerra formal até hoje. Morreram cerca de 180 mil norte-coreanos, contra 750 mil sul-coreanos.

Kim Il-Sung sobressaiu como o grande vencedor do conflito. Em primeiro lugar, porque o Norte passou a década seguinte em condições socioeconômicas melhores do que o Sul, ainda que os dois países tenham sido arrasados. Mas havia mais: em termos políticos, a jogada havia sido bem sucedida. E a partir de então ele estava em condições de começar a construir o regime ditatorial que já planejava desde que começou a conduzir o país, com apoio soviético, em 1948.

Tudo indica que foi o governante norte-coreano, que num primeiro momento parecia se comportar como uma mera marionete de Stalin, quem decidiu se lançar em guerra, forçando os aliados a aderir. A partir da 1953, tudo começou a mudar.

Passado promissor

Quando foi colocado no governo, Kim Il-Sung era considerado um herói da resistência contra do domínio japonês, que forçara a implosão cultural do país, com a proibição do ensino do idioma local e a adoção de livros didáticos e práticas religiosas e culturais nipônicas.

De fato, ele e a família tinham comprometido a própria segurança em ações pela independência, que resultaram em períodos de exílio em território chinês. Parecia natural que ele liderasse os primeiros passos de reconstrução da identidade nacional. Com o fim das ações militares, sem a instauração de um período de paz, o clima belicoso e de paranoia favoreceu o governante, que ainda contava com o suporte soviético.

O futuro ditador então se aproveitou da necessidade de reconstruir o sistema educacional e cultural para criar uma nova mitologia, replicando, em novos termos, práticas religiosas tradicionais da região. Sua biografia foi ajustada, com base em dados reais, para fortalecer sua imagem.

Saiu de cena, por exemplo, o fato de que o grande líder foi educado em uma família presbiteriana — seu avô paterno era pastor. Mas ganhou enorme peso o fato de que, já em 1926, ele criou um grupo para combater a influência japonesa sobre a Coreia, enquanto vivia na província chinesa de Jilin — seria o embrião do Partido dos Trabalhadores da Coreia.

Kim Il-Sung atuou ao longo de toda a década de 1930, e a primeira metade dos anos 1940, liderando ações de guerrilha contra a ocupação do Japão, na Coreia e na Manchúria, no Nordeste do território chinês. Ao longo destes anos, tornou-se admirado entre os soviéticos.

Em agosto de 1945, quando Moscou declarou formalmente guerra ao Japão, o chefe do serviço de espionagem de Stalin, Lavrenti Beria, encontrou-se com o líder coreano em diferentes ocasiões, até que ele finalmente foi escolhido como o futuro ditador. “Poucas pessoas eram mais devotas a Stalin”, relata a biografia 'Kim Il-sung: The Controversial Life and Legacy of North Korea's First Supreme Leader' [Kim Il-sung: a controversa vida e o legado do primeiro líder supremo da Coreia do Norte, sem edição em português]. “Suas roupas e seu corte de cabelo emulavam o líder soviético”.

O futuro ditador precisou de treinamento. Não foi uma tarefa simples. Kim Il-Sung falava e escrevia mal o idioma coreano, já que havia passado boa parte da juventude em território chinês. E só tinha oito anos de educação formal. Mas ele conseguiu se impor, com a força soviética e a capacidade de se apropriar do senso de liberdade diante do fim do domínio japonês.

Meninas sequestradas

Na segunda metade da década de 1950, o culto à personalidade de Kim Il-Sung já incomodava outros líderes comunistas — e também os antigos aliados soviéticos, agora atuando sob o governo de Nikita Khrushchev. Escrever anotações a caneta sobre uma foto impressa do líder ou utilizar uma folha de jornal com sua imagem para embrulhar algum objeto havia se tornado ofensa passível de pena de morte; muitas execuções eram públicas, uma forma de impor um regime de medo.

Tradicionais membros do partido foram humilhados publicamente, isolados e mortos nos moldes stalinistas, como Pak Hon-yong, ex-líder do Partido Comunista Coreano. Nas escolas, aprendia-se que o ditador seria capaz de controlar o tempo e havia, sozinho, liberado a Coreia (o apoio chinês e soviético, assim como a derrota japonesa para os americanos durante a Segunda Guerra, passou a ser desconsiderado).

Os livros didáticos também louvavam o charme e a força física e o apelo sexual do ditador — que, a partir da década de 1970, passaria a manter um verdadeiro harém em seu entorno, construído com base no sequestro de meninas de todo o país, que eram retiradas de suas famílias e organizadas em diferentes funções, que incluíam desde dançar até prestar favores sexuais. Era a chamada “brigada do prazer”, ou Kippumjo. Kim Il-sung foi casado com Kim Jong-suk, entre 1917 e 1949, quando ela morreu em trabalho de parto. Posteriormente, em 1952, assumiu o relacionamento com Kim Song-ae. Mas teria tido filhos com outras mulheres.

Enquanto isso, o país via a agricultura ser coletivizada e a economia migrar para uma base industrial baseada na produção de armamentos. Sem oposição à vista, o ditador se manteve no poder, de forma inquestionável, até morrer em julho de 1994, como resultado de um ataque cardíaco. Naquele momento, estava trabalhando em sua autobiografia. O trabalho não foi completado: a previsão era que alcançasse 30 volumes.

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