No início deste mês, a empresa Crispr Therapeutics pediu a agências reguladoras da União Europeia (UE) permissão para conduzir testes em seres humanos de uma terapia, para a doença genética talassemia beta, baseada na técnica de edição de DNA conhecida como Crispr (pronuncia-se “crísper”). Segundo a revista Wired, a mesma companhia pretende, em 2018, pedir autorização à FDA, órgão regulador americano, para testar uma terapia baseada em Crispr contra a anemia falciforme.
Ambas as doenças são causadas por problemas num gene que codifica a produção de uma proteína que compõe a hemoglobina, responsável pelo transporte de oxigênio no sangue. A Crispr será usada para estimular a criação de uma forma alternativa de hemoglobina, a partir da modificação do DNA das células da medula óssea, responsáveis por produzir o sangue.
Um banco de dados dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos indicava, no início do mês, haver 12 testes clínicos envolvendo Crispr registrados, para condições que vão de diversos tipos de câncer à infecção por HIV. Crispr é o nome dado a uma ferramenta que permite eliminar ou modificar trechos de DNA no interior de células vivas: em tese, com Crispr, é possível escolher quais genes de uma planta, animal – ou ser humano – vão ou não funcionar, com que intensidade, e até mesmo quais serão, ou não, passados para as gerações futuras.
Além dos pesquisadores que estudam seu potencial para corrigir mutações no DNA, há cientistas que veem na Crispr uma chance de eliminar doenças hereditárias; de ganhar a dianteira na “corrida armamentista” genética entre bactérias e antibióticos; de controlar desequilíbrios ecológicos e epidemias, com a criação de versões menos férteis de animais invasivos, ou que sejam vetores de doenças; como uma nova rota para a produção de alimentos geneticamente modificados; e, até mesmo, para ressuscitar espécies extintas, a partir da edição do genoma de seus parentes evolutivos ainda vivos.
Cada uma dessas promessas, no entanto, tem seus próprios desafios éticos e técnicos a superar, desafios que muitas vezes se entrelaçam: por exemplo, quando o refinamento da técnica requer experimentação em seres humanos, ou tem o potencial de afetar ecossistemas de modo imprevisível.
No ano passado, uma reunião da ONU analisou – e rejeitou – uma proposta de moratória nas pesquisas com uma tecnologia, baseada em Crispr, que em tese pode ser usada para controlar a velocidade com que mudanças genéticas se espalham por uma população.
Chamada de gene drive – em português, a expressão é às vezes traduzida como “genética dirigida” ou “estímulo genético” –, a técnica é estudada para o combate a um mosquito transmissor da malária: ela poderia fazer com que um gene que torna as fêmeas do mosquito estéreis se disseminasse rapidamente na natureza. Mas há cientistas que temem que iniciativas de gene drive acabem levando a modificação genética para fora da área pretendida, contaminando outras populações para além da visada, causando graves desequilíbrios.
Sete fatos essenciais sobre o Crispr e sua história
O que “Crispr” quer dizer, afinal?
A sigla, em inglês, significa Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats. Em português, é algo como Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Espaçadas de Forma Regular. Esse significado, no entanto, hoje é quase que apenas uma curiosidade histórica, já que o nome foi adotado para a família de tecnologias de manipulação genética derivada da descoberta das Crisprs originais. Mas, quando foi criada, a sigla dizia respeito a grupos de repetições de sequências de nucelotídeos – as “letras” químicas que compõem o material genético – encontrados no genoma de bactérias e de outro tipo de micróbio, as arqueas. A existência dessas Crisprs é conhecida desde o século passado. O nome, no entanto, só surgiu em 2002.
O que as bactérias têm a ver com isso?
Em 2005, cientistas perceberam que as Crisprs das bactérias eram muito parecidas com o DNA de vírus que atacavam esses micro-organismos, levando à hipótese de que os aglomerados seriam uma espécie de “memória” do sistema imunológico bacteriano, permitindo que elas “se recordem” dos invasores e reagissem melhor a ataques repetidos, num mecanismo semelhante ao das vacinas. Em 2007, determinou-se que as Crisprs serviam como guias para que certas enzimas localizassem e destruíssem o material genético de vírus dos quais a bactéria “se lembra”.
Como isso funciona?
Usando o DNA de vírus armazenado nas Crisprs – na “memória” – como gabarito, a bactéria produz um outro tipo de molécula, o RNA, que funciona como uma espécie de impressão digital do vírus que lhe deu origem. Munida desse RNA-guia, ou gRNA, a enzima que faz o corte do material genético vai até o DNA do vírus, que então é seccionado no ponto exato indicado pelo gRNA. Uma enzima muito usada nesse processo é a Cas9 – por isso a técnica é, às vezes, chamada Crispr/Cas9 – mas há outras que também podem funcionar como “tesouras” guiadas pelo gRNA.
Entre 2011 e 2012, pesquisadores não só elucidaram os detalhes de como esse sistema opera, como demonstraram que ele pode ser transferido para – e funcionar em – outros tipos de micro-organismos. Já entre 2012 e 2013, houve a demonstração de que seria possível criar em laboratório sequências artificiais de gRNA, capazes de induzir as enzimas a cortar qualquer pedaço selecionado de DNA. E também ficou provado que essa tecnologia, baseada em gRNA sintético, funciona em células humanas.
O que acontece depois que o DNA de uma célula é cortado com Crispr?
A célula buscar reparar a lacuna deixada. Esse reparo pode acontecer de um modo quase aleatório, o que dá margem a mutações que tendem a tornar aquele trecho do DNA sem função: na prática, é como se o gene tivesse sido removido sem deixar nada no lugar. Mas um dos principais campos de pesquisas envolvendo Crispr lança mão do chamado Reparo de Homologia Dirigida, ou HDR, em que um gabarito de DNA é introduzido na célula, junto com o complexo formado pela enzima e pelo gRNA. Espera-se que célula use esse gabarito como modelo para tapar o “buraco” deixado pelo corte, efetivamente substituindo um gene por outro. A eficiência do processo ainda é baixa, no entanto, e aumentá-la é um dos principais objetivos dos estudos atuais.
Já não era possível fazer manipulação genética antes da Crispr?
Sim, mas por meio de processos muito mais caros, demorados e difíceis de controlar.
A Crispr cria animais e plantas transgênicos?
A expressão “transgênico” normalmente costuma ser reservada para variedades que recebem genes de outras espécies, como plantas equipadas com genes de bactérias para resistir a pragas. Embora, em tese, a Crispr possa ser usada nesse tipo de intervenção, as principais aplicações em vista tratam do silenciamento, adição ou substituição de genes da própria espécie original. Há pesquisadores desenvolvendo tecnologias baseadas em Crispr capazes de trocar letras individuais dentro do DNA, apenas reorganizando os átomos de parte da molécula, sem a necessidade de cortes ou inserções na sequência.
Essa tecnologia já foi usada em seres humanos?
Já houve testes em embriões humanos na China, em 2015, que fracassaram em produzir a as correções pretendidas no genoma e, mais recentemente, por uma equipe americana, que comunicou sucesso – mas seus resultados foram contestados. O teste clínico que a Crispr Therapeutics pretende conduzir a partir de 2018 envolverá o uso de Crispr para a manipulação de células-tronco que, depois, serão injetadas no corpo de voluntários.
Um estudo publicado recentemente no periódico PNAS chama atenção para as dificuldades envolvidas no uso de Crispr para fins terapêuticos em seres humanos, por causa da variabilidade genética natural de nossa espécie. Os autores alertam que isso poderá exigir que alguns dos futuros tratamentos baseados em Crispr sejam altamente individualizados.
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