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Lady Bird é dessas pérolas modernas que exalam com doçura o que há de mais bonito em Greta Gerwig e nos afetos que nos levam a perpetuar costumes, cuidar do próximo e cultivar um lar.
Lady Bird é dessas pérolas modernas que exalam com doçura o que há de mais bonito em Greta Gerwig e nos afetos que nos levam a perpetuar costumes, cuidar do próximo e cultivar um lar.| Foto: Divulgação/Netflix

Em tempos de anticomunismo, antibolsonarismo, antiglobalismo, antiesquerdismo, antitudo, há quem estremeça diante de qualquer sufixo, ainda que positivo, que se deposite ao final de um elogio ou crítica a qualquer pessoa, produto, slogan ou ideia. E a arte não está isenta do problema - é, na verdade, uma das maiores vítimas.

Quer garantir que um filme faça sucesso com o público x e cause ojeriza no time y? Diga que é contra o racismo, a favor do feminismo, crítico ao neoliberalismo. Ou que se trata de uma denúncia ao globalismo, um retrato do relativismo, uma ode ao conservadorismo.

Escolha seu lado e os prefixos correspondentes, lasque um “ismo” e, voilá, nasce a crítica-propaganda perfeita para alavancar ou arruinar qualquer coisa. Se Deus quiser, um dia, essa besteira há de cair de moda (tal como o “empoderada”, finalmente, começa a soar cafona - como sempre foi).

Percebi há pouco tempo que havia sido contaminada pelo vírus do “ismo” quando, diante da expectativa da estreia da badaladíssima continuação de Frozen, expressei a um amigo, autor de um texto para a Gazeta do Povo sobre filmes que você não sabia que eram conservadores, que estava “preocupada” com que tipo de propaganda o maravilhoso mundo do Mickey entulharia o desenho; ao que o moço respondeu: “vocês se preocupam muito com essas coisas. Tem que curtir a historinha”.

Foi quando me dei conta de que, de fato, os infinitos adjetivos “de esquerda” ou “de direita” andavam contaminando minha lista de filmes e séries, meticulosamente escolhidos à base de uma fuga deliberada a qualquer coisa que me parecesse feita para ganhar estrelinha de militância (como se, neste processo, eu não estivesse distribuindo as minhas, rs).

Isso porque, no próprio artigo mencionado, fica claro que por “filmes conservadores” não se deve entender apenas as obras produzidas por diretores republicanos cristãos que terminam como uma lição de moral linda e formosa sobre a importância da liberdade individual frente às ameaças totalitárias do mundo.

Trata-se, contudo, de garimpar nas histórias o que sempre nos fez e nos fará humanos. Tudo aquilo que se conserva, às custas de muito cuidado e esforço, diante dos inúmeros atentados cometidos pelos que idolatram o passado ou o futuro.

Não me lembro por que não assisti Lady Bird em 2018, quando o longa de Greta Gerwig recebeu cinco indicações ao Oscar (melhor atriz, melhor atriz coadjuvante, melhor roteiro original, melhor diretor e melhor filme) mas, por indicação do mesmo amigo, dei uma chance à trama protagonizada pela atriz Saoirse Ronan. O filme está disponível no Amazon Prime video e acaba de chegar também à Netflix.

Não que seja uma grande façanha, mas terminei o filme emocionada. Descrita pela própria Gerwig como uma “carta de amor à sua cidade natal” (Sacramento, na Califórnia), a história não é especialmente surpreendente ou genial - e, pensando bem, estes sequer são os adjetivos que atribuímos a uma carta de amor.

Fernando Pessoa que o diga. Afinal, a bem da verdade, as desventuras da protagonista Christine “Lady Bird” McPhearson são mesmo um tanto ridículas: porque ser adolescente não é outra coisa.

Tocar o terror em um colégio de freiras e brigar dia sim, outro também com a mãe, enquanto se deseja fugir de uma cidade pequena e sufocante, na qual todos os mocinhos e mocinhas disponíveis para jogo se conhecem, se esbarram e se experimentam está longe de ser uma trama restrita a um subúrbio da Califórnia. Se uma diretora brasileira me dissesse que pretende filmar a mesma história no sul de Minas Gerais, eu acreditaria.

A beleza do filme, já extensivamente ovacionada pela crítica, mora, justamente, na delicadeza dos diálogos, no retrato fiel e singelo de transformações tão universais, tão duras e tão humanas.

Não há nenhum plot-twist que justifique a ausência de spoilers, mas poupo o leitor dos detalhes para que se deixe amarrar pela jovem Christine - meio pedante e meio tonta, como todo mundo aqui já foi (e eu espero que já seja um tantinho menos).

Lady Bird evoca um doce sentimento de pertença, de respeito à família e às crenças que nos moldam - sempre passíveis de críticas, de rearranjos e eventuais rupturas, jamais descartáveis. O tipo de consternação que só sente quem já teve a sua “hora de voar” e, ao aterrissar em terras estranhas, achou que fosse morrer de saudades.

Quem praguejou a obrigação da missa ou do culto e passou a se sentir em paz com os sinos da igreja. Quem prometeu aprender o sotaque carioca e passou a cultivar o R retroflexo (o caipirês) como um relicário de família. Quem se emociona menos com a morte do Mufasa e mais com o “lembre-se de quem você é”.

Que bela reflexão sobre fé, família e comunidade eu teria perdido se, ao invés de aceitar a recomendação, tivesse perdido mais tempo caçando manuais de conservadorismo - o que talvez incluísse rejeitar uma diretora que se declara feminista.

Não que a sanha pela imposição de qualquer agenda não tenha prejudicado Hollywood mas, se eu entendi certo as aulas de “anti-ideologia”, as pessoas são complexas demais para caber em rótulos. Se é verdade que a “disposição conservadora” de Michael Oakeshott não se manifesta (e nem deve ser traduzida) em um punhado de agendas políticas ou culturais, há que se reconhecer que sempre houve mulheres inteligentes, criativas, fortes e - vá lá - empoderadas. E cheias de medos, defeitos e fraquezas também - pois também deles é feita a boa arte.

Lady Bird é dessas pérolas modernas que exalam com doçura o que há de mais bonito em Greta Gerwig e nos afetos que nos levam a perpetuar costumes, cuidar do próximo e cultivar um lar. Há que se curtir a historinha.

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