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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, desde 2019, equipara homofobia e transfobia a crime de racismo no país possibilitou que uma influencer feminista esteja sendo perseguida e ameaçada de prisão, por causa de uma opinião manifestada nas redes sociais. No dia do primeiro turno das eleições municipais de 2020, a comunicadora paulistana Isabella Cêpa, de 29 anos, conta que gravou uns stories no Instagram, após ler uma notícia de que a mulher mais votada para a Câmara de São Paulo, agora eleita deputada federal, era trans. “Falei: chateada que a mulher mais votada é homem, trabalho com sobreviventes [de violência doméstica e sexual] faz sete anos”, recorda.
Em 6 de janeiro deste ano, Isabella conta que foi notificada sobre um boletim de ocorrência por injúria racial feito contra ela em novembro de 2021. “Fui ouvida no dia 20 de janeiro e quis saber onde estava a conduta típica [definida como crime pela lei] na minha opinião. A delegada não sabia explicar onde eu estava errada. Apresentei um documento de 42 páginas, que eu mesma escrevi, com toda a teoria feminista e o prejuízo à luta das mulheres. Me deram um número e um e-mail, mandei para ambos, mas nunca me responderam”, diz.
Até que, em junho, ela recebeu uma mensagem de uma repórter, informando sobre uma denúncia do Ministério Público de São Paulo (MPSP) por cinco supostas ocorrências em suas redes sociais que configurariam crime, o que poderia resultar em até 25 anos de prisão. “Isso é o que eles dizem, mas eu nunca fui intimada por causa dessa denúncia do MP”, explica.
Apesar de desconhecer o andamento do processo, Isabella conta que o estrago da notícia foi grande. “Perdi 11 mil seguidores em um dia e passei a receber ameaças diárias de morte. Umas feministas de internet mais liberais começaram a postar coisas contra mim, sendo que offline concordam comigo. Teve gente que me procurou para dizer: vou ter que te dar unfollow, porque não posso perder trabalho”, lembra. “Isso influencia todos os aspectos da minha vida. Eu era publicitária, agora trabalho para mim, mas eu seria demitida. Deu muito bafafá. Eu voltei a gravar e expliquei que não ia retirar o que eu disse, porque quem fala a verdade não precisa retirar. Quem me apoiou foi perseguida”, recorda.
Com um processo por violência sexual contra um ex-namorado em andamento, ela lamenta que uma opinião seja mais passível de criminalização no país do que um estupro sofrido por uma mulher. “O inquérito do estupro foi aberto em maio ano passado, e as testemunhas só estão sendo ouvidas agora porque fui pressionar. Mais de um ano em uma treta com meu ex e ninguém liga, não tem blogueira para falar sobre isso. Aí eu emito uma opinião extremamente importante sobre a causa e até meus amigos tiveram que se posicionar”, compara.
Para Isabella, um dos efeitos gravemente negativos da legislação do STF é a intimidação de quem desconhece a lei. “Eu sei que se não tem materialidade, não tem [crime]. Não caio em coerção. Mas todas as feministas e ativistas ficaram desesperadas achando que eu ia ficar 25 anos na cadeia. Instaurou o pânico em todo mundo, mas eu não me deixei intimidar. Fiz um monte de piada usando um filtro de bode, porque fui bode expiatório”, afirma.
Defensora dos “direitos das mulheres em uma base biológica”, a comunicadora acredita que a ideologia de gênero enfraquece a luta feminina. “Definitivamente, como podemos lutar pelo fim da opressão se nem conseguimos chegar um consenso da causa da opressão? É delirante que, num país que mal consegue falar sobre saúde sexual feminina, pessoas consigam mudar o sexo para não binário nos documentos. Ou que um acusado de violência sexual possa ir para um presídio feminino, ao se declarar trans. É um absurdo nem termos estatísticas de feminicídio. Esses dias, li um caso de transfobia que um cara jogou água na mulher trans. Meu sonho é que seja considerado agressão os caras jogarem água gelada em mulheres. Ninguém quer falar da criminalização da misoginia”, reclama.
STF quer forçar lei no Congresso
Em 2019, o STF entendeu uma omissão inconstitucional por parte do Congresso brasileiro, ao não editar uma lei criminalizando atos de homofobia e de transfobia. Para reparar a “falha”, os ministros aprovaram o enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Legislativo edite matéria sobre o tema. Apenas Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Marco Aurélio foram contrários à decisão.
O advogado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo Alessandro Chiarottino afirma que, na comunidade jurídica, há um questionamento generalizado acerca da equiparação das chamadas transfobia e homofobia ao racismo. “Além da questão do ativismo, em que o judiciário cria novas leis, aqui é mais impressionante ainda o ativismo em matéria penal. O princípio do Direito Penal em todos os estados de direito é que não se pode criar um novo tipo penal através de instrumento judicial. Não há crime sem lei, ou seja, sem uma normal que atravessou todo o percurso legislativo”, detalha.
O professor de Direito Constitucional Tadeu Nóbrega completa que, embora o Supremo queira a criação de uma lei nesse sentido por parte do Congresso, o Legislativo parece estar se posicionando sobre o tema, ao permanecer em silêncio. “A não ação do Congresso, que parece uma omissão, é uma posição assumida de não querer criminalizar determinada conduta. E isso não só em relação à homofobia, mas também se aplica a outras condutas não criminalizadas pelo Legislativo. O Congresso é que deve ser responsável por fazer as leis. O Legislativo tem sua autonomia e deve poder escolher o que quer que seja criminalizado ou não”, explica.
Para Chiarottino, a atual “perseguição a opiniões que de maneira nenhuma poderiam ser perseguidas criminalmente” é em parte “influenciada pela conduta de membros do STF”, mas também por uma “tendência cultural presente nas universidades e na mídia, há bastante tempo”. “Essa tendência contemporânea leva ao esquecimento ao que é fundamental, o direito à liberdade de expressão, que merece ser limitado apenas em condições muito excepcionais. O estado de direito não protege apenas opiniões razoáveis, ele protege todas as opiniões, com pouquíssimas exceções, em situações extremas de risco imediato”, afirma, citando o conhecido exemplo de que gritar “fogo” falsamente em um teatro lotado não pode ser protegido como liberdade de expressão.
"Além disso, se existe uma estigmatização a determinados grupos e alguém fizer uma campanha nos meios de comunicação, dizendo que um grupo não deveria ter direito, isso também não é protegido. Mas achar que pessoas trans não podem usar o banheiro feminino, isso é uma opinião, está acobertado pela opinião no estado de direito brasileiro”, defende. “Dizer que uma mulher trans é um homem biológico não há problema nenhum do ponto de vista biológico, não me parece abrir para contestação do fato”, completa o advogado.
Do ponto de vista do estado de direito liberal, Chiarottino defende que não há como aceitar um posicionamento semelhante ao do MP no caso de Isabella. “Espero que a Justiça, com serenidade, aplique o direito nacional, que está em nossas leis, e não considere como fato criminoso. Mas não sabemos. O Judiciário tem caminhado em posições que têm provocado perplexidade na comunidade jurídica”, afirma.
Tadeu Nóbrega recorda que a Constituição prevê que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado. Embora o advogado afirme desconhecer alguma condenação em relação ao tema no Brasil, ele acentua que a decisão do STF deixa uma “situação muito aberta”, sobretudo em questões de liberdade religiosa.
“A decisão do STF de equiparação ao racismo fazia expressa previsão de que isso não alcançaria nem restringiria a liberdade religiosa. Mas há uma sequência nisso que fala 'desde que não configure discurso de ódio’. Fica uma situação muito aberta, e a lei penal não pode ser aberta assim, precisa ser mais clara para saber o que é crime e o que não é”, reforça.
Assim, além das investigações em andamento contra padres e pastores por homofobia, do ponto de vista criminal, a decisão do Supremo também abre à possibilidade, do ponto de vista civil, de que associações façam ações civis públicas, tentando responsabilizar por dano moral coletivo pessoas que se manifestem contra práticas homossexuais, por exemplo. “Isso, inclusive, quando se está propagando informações próprias de uma religião. Protestantes ou católicos falando sobre o que pensam como doutrina e pregando o catecismo poderia ser considerado homofobia ou transfobia”, exemplifica Nóbrega.
A Gazeta do Povo procurou o MPSP, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Ao contrário da redação original, na fala de Isabella Cêpa, o correto é conduta típica (definida como crime pela legislação) e não conduta atípica.
Corrigido em 10/10/2022 às 11:12