Às vésperas das celebrações do Ano Novo, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca, sancionou uma lei que proíbe o uso de fogos de artifício que façam barulho na cidade. Iniciativas semelhantes existem em São Paulo e no Rio Grande do Sul. A boa intenção por trás da medida é clara: proteger os animais de estimação e grupos supostamente vulneráveis ao ruído intenso, como crianças autistas e idosos.
Eu amo cachorros e odeio fogos de artifício, até mesmo aqueles coloridos bonitões que encantam milhões de pessoas na virada do dia 31 de dezembro para o dia 1º. de janeiro.
Mas, como já dizia minha avó, o errado é errado mesmo que todo mundo esteja fazendo. E a Lei dos Fogos de Artifício é um ataque à liberdade em nome da sensibilidade exacerbada do nosso tempo. Apesar de cercada de boas intenções, trata-se de uma medida de força por parte do Legislativo. Uma canetada que gera distorções de longo prazo na sociedade.
Não que os fogos de artifício não devam desaparecer. Afinal, já foi o tempo em que a Humanidade se encantava com a mágica da pólvora e com a incrível capacidade humana de usá-la para fins, digamos, artísticos, e não só para a guerra. Mas será que o meio mais correto para se alcançar esse objetivo é a proibição sumária dos fogos de artifícios que fazem barulho ? Ou será que uma mudança cultural como aquela pela qual passou o cigarro seria melhor e mais eficiente, ainda que mais demorada?
Hipersensibilidade canina – e humana
A parte mais problemática das leis que proíbem ou, para usar um eufemismo tão ao gosto dos nossos legisladores, restringem os fogos de artifício que façam barulho é justamente aquela que faz com que tantas pessoas cedam ao poder do Estado com o rabo entre as pernas: a proteção aos animais, notadamente cães e gatos, que têm uma audição até quatro vezes “mais potente” do que a nossa e que, por serem irracionais e não entenderem que o ser humano está usando um rojão para celebrar um gol ou uma volta da Terra ao redor do Sol, podem até morrer (morrer mesmo) de medo.
Por mais fofos, carinhosos, lindos mesmo que sejam os cachorros, dos Golden Retrievers aos pinschers, será ético levar a sensibilidade auditiva deles em conta ao elaborar uma lei que afeta os seres humanos? Para os populistas hipersensíveis, sim. Mas imagine Santo Antônio do Monte, em Minas Gerais, cidadezinha de 30 mil habitantes e polo da indústria pirotécnica brasileira, cuja economia, evidentemente, depende do encanto dos brasileiros pelos fogos de artifício. É ético sacrificar o sustento das famílias que lidam com a fabricação e comércio desses artefatos só porque um poodle tem medo?
Ao que parece, infelizmente já transpusemos as fronteiras que separavam a relação saudável entre ser humano e animal da relação simbiótica e até parasitária entre as duas espécies. Prova disso foi a comoção causada pela morte de um cachorro num supermercado de São Paulo há pouco mais de um ano. Na época, o único a lançar um olhar racional e necessariamente antropocêntrico sobre o episódio foi o professor Carlos Ramalhete, com o artigo “Cachorro não vai pro Céu”.
E aqui, diante da irracionalidade que marca todo o debate, e na esperança quase infundada de me fazer entendido, acho que vale a pena repetir o óbvio: ninguém está defendendo que cães sejam mortos, agredidos, que sejam submetidos a rinhas de luta ou desnecessariamente expostos a qualquer coisa que lhes faça mal, incluindo o barulho de fogos de artifício.
Mas, se deixarmos nos levar pela hipersensibilidade canina (e humana) quanto ao assunto, quais serão os próximos passos? Proibiremos secadores de cabelos e aspiradores de pó (e donos de cães e gatos sabem o quanto os bichos odeiam esses objetos)? Proibiremos o consumo de chocolate com cães por perto? Criaremos Conselhos Tutelares para Pets ou coisa do gênero? Defenderemos a criação de um SUS para animais de estimação?
Denuncismo e o enfraquecimento dos laços comunitários
Outra consequência nefasta dessa Lei dos Fogos de Artifício, bem como de qualquer lei que queira criminalizar a falta de bom-senso e injetar Semancol© à força na veia das pessoas, é a criação de um ambiente pouco civilizado onde é preciso que se fomente uma cultura da denúncia para que a ordem tal como o Estado a enxerga seja imposta.
Isso só enfraquece ainda mais os laços comunitários – já fragilizados por toda uma cultura de violência, inveja e ressentimento. Não acredito que os legisladores tenham pensado nessa hipótese. Afinal, o caráter desse tipo de medida é eleitoreiro e apela para o lado mais sentimental das pessoas – aquele que requer gratificação irracional e imediata.
Mas não é difícil imaginar a possibilidade muito real de vizinhos vivendo num ambiente de discórdia porque o sr. Torres do 401 denunciou o dr. Palhares do 803 por ter estourado um rojão na vitória acachapante do Corinthians contra o Íbis. E não se engane: insaciável como é, o Estado usará, sim, todo o seu poder de coerção (na forma de multas e, se você reclamar, desacato) para arrecadar o que for possível.
O problema é que a boa educação, a civilidade e o tal do bom senso não se sujeitam à força (real ou simbólica) de uma lei. Muito mais eficiente seria uma mudança lenta e gradual, como aconteceu no caso dos cigarros.
Brechas e mais brechas
O problema do bom-mocismo atrapalhado aplicado às leis é que ele abre brechas para infinitos argumentos de fundamentação parecida que podem descambar, e inevitavelmente descambam, para medidas autoritárias. Recentemente, o princípio da laicidade do Estado foi usado para que se proibisse um show gospel no Réveillon do Rio de Janeiro. Sob a justificativa de proteger os ateus, incomodados com a fé alheia, a juíza do caso acabou usando um princípio republicano para criar uma classe de privilegiados.
No caso da lei que proíbe os fogos de artifícios, também se cria privilegiados à custa da diversão (ainda que questionável e, francamente, de mau gosto) dos demais. Os privilegiados, no caso, são os donos de animais de estimação. Mais até do que os animais em si. Mas por que os donos de animais de estimação (e os cães) devem ser protegidos do incômodo sonoro? O que eles têm de tão especial, de tão virtuoso a ponto de levar o Poder Legislativo a sacrificar a liberdade alheia só para atender a um pedido deles?
Porque, sejamos honestos, a questão dos fogos de artifício diz respeito apenas e tão-somente aos animais de estimação. Grupos supostamente vulneráveis aos barulhos altos, como autistas e idosos, foram incluídos na lei para lhe dar um ar de preocupação com o ser humano. Até porque desde que o homem descobriu como usar a pólvora para fins recreativos os idosos ou usaram a habilidade manual para tapar os ouvidos ou se retiraram para um cômodo isolado ou usaram protetores ou tiraram os aparelhos auditivos.
Novamente vale a pena recorrer a um exercício de imaginação para se constatar quão absurda e totalitária e distorcida é a bem-intencionada lei que proíbe fogos de artifício. Digamos, por exemplo, que a mesma Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos que conseguiu proibir o show gospel em Copacabana se diga incomodada com o barulho dos sinos das igrejas. Digamos que a eles se juntem donos de cães ultrassensíveis que correm para debaixo da cama a cada badalada. O que impede um juiz de usar o “Princípio do Incômodo Auditivo” para proibir os sinos de repicarem?
Sensibilidade exacerbada
Vivemos numa época de sensibilidade exacerbada. Vários autores têm escrito sobre isso. O mais notável deles talvez seja o psiquiatra inglês que atende pelo pseudônimo de Theodore Dalrymple. Seu livro Podres de Mimados: as Consequências do Sentimentalismo Tóxico (que não me canso de citar) expõe bem os motivos que levam as pessoas a apoiarem medidas como a proibição de fogos de artifício com base em argumentos que deveriam sustentar uma história da Lassie, mas nunca uma sociedade racional e civilizada.
Do contrário, o que impedirá as pessoas de, num futuro próximo, usarem todo o tipo de sensibilidade para criminalizar a conduta de seus semelhantes? Eu, por exemplo, tenho uma sensibilidade extrema ao uso errado da crase. Ao me deparar com uma crase errada, caio prostrado no chão, começo a me debater e fico deprimido por pelo menos duas semanas. Pior ainda é quando encontro um erro desses no texto de quem escreve profissionalmente. A crase errada é, para mim, o mesmo que ver um desses médicos que tinha de amputar o braço esquerdo, mas acabou amputando o direito.
Tenho direito a criminalizar a crase errada? O bom-senso diz que não. Que minha sensibilidade afeta um grupo bastante restrito: eu mesmo. Mas o que me impede de tentar usar o meu poder como “a menor minoria do mundo” para proibir, ou melhor, restringir o uso da crase errada, sob pena de multa e detenção, com base no argumento de que o Estado é obrigado a proteger a minha hipersensibilidade quanto ao assunto?
O problema de iniciativas como essa é que, ao mesmo tempo em que impedem as pessoas de celebrarem o Réveillon fazendo barulho e “pintando o céu”, elas jogam no ralo o bom-senso e criam uma sensação de que todo privilégio é defensável, desde que se consiga provar, de alguma forma, que o requerente (ou seu cão) sofre.
Sofrimento que, vale lembrar, é condição necessária para que nós, seres humanos (e nunca nossos cães e gatos), aprendamos, amadureçamos e possamos conviver numa sociedade a mais harmoniosa possível (mas nunca perfeitamente harmoniosa).