O Supremo Tribunal Federal retomou no último dia 21 de junho o julgamento para decidir se o porte de drogas para consumo próprio é crime. O caso foi apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um preso condenado por possuir três gramas de maconha em sua cela. O julgamento, de relatoria do ministro Gilmar Mendes estava parado desde 2015. Mendes votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343, popularmente conhecida como Lei de Drogas, defendendo a descriminalização do porte pessoal de drogas, considerando necessário eliminar as consequências penais, mantendo apenas sanções administrativas, como multa. Foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, mas apenas para o porte de maconha.
O Artigo 28 da Lei 11.343 descreve as penalidades para aqueles que adquirem, guardam, possuem, transportam ou têm consigo drogas para consumo pessoal, sem autorização ou em desacordo com a legislação. As punições incluem advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas, como participação em programas ou cursos educativos.
Segundo a Lei, cabe ao juiz responsável designar se a droga era destinada ao consumo pessoal, levando em consideração diversos fatores, como a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as circunstâncias em que ocorreu a ação, o contexto social e pessoal do agente, além de sua conduta e antecedentes.
O principal argumento dos críticos do dispositivo é que ele favoreceria o encarceramento de pessoas por crimes de menor potencial ofensivo ou mesmo inocentes sem qualquer vínculo substantivo com atividades criminosas. Ao jogar um poder discricionário excessivo nas mãos de juízes e policiais, a Lei possibilitaria que pessoas fossem encarceradas muitas vezes só com base em depoimento de agentes da lei ou no preconceito racial ou de classe dos magistrados. Isso contribuiria para superlotar as cadeias brasileiras de gente que não representaria risco para a sociedade, fornecendo mão de obra para ser cooptada pelas facções que dominam o sistema penitenciário. E se refletiria no baixo impacto da lei para a redução da criminalidade desde sua criação em 2006.
Infelizmente, mais uma vez, como quase tudo o que se discute em segurança pública no Brasil, essa visão da realidade carece de fundamento científico, conhecimento prático e sutileza interpretativa. Peca por desconhecimento sobre as dinâmicas de funcionamento do mercado de drogas ilegais, o padrão de estruturação de carreiras criminosas e as condições de eficácia de uma política de segurança pública. Novamente, a ignorância ou a má fé de ministros do Supremo pode colocar o país numa situação ainda mais delicada em termos do agravamento da insegurança pública e da violência.
O que dizem os estudos
A ideia de que criminosos de pequeno potencial ofensivo ou mesmo inocentes estariam sendo presos por causa da Lei 11.343 é talvez uma das maiores falácias a respeito do problema da droga no Brasil. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em junho de 2022 havia um total de 832.295 mil pessoas presas no país. Destas, 648.692 estariam cumprindo pena em alguma cadeia brasileira, enquanto as demais estariam em prisão domiciliar. Em torno de 27,75% das incidências relacionadas aos apenados em cadeias se relacionaria com a Lei Antidrogas, perfazendo aproximadamente 182.952 pessoas.
Numa primeira vista, os estudos existentes sobre o tema parecem confirmar que parcela desses presos se constitui de usuários de drogas. Em um estudo feito pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), por exemplo, considerado 667 autos de prisão em flagrante realizadas em 2010, constatou-se que em 62,13% das ocorrências foram apreendidas menos de 100 gramas de entorpecente. Quanto ao registro, têm-se que 57% das pessoas apreendidas na amostra não possuíam antecedente criminal. Dentre os 52% dos acusados que fizeram alguma declaração na delegacia, 30,66% afirmavam serem usuários de droga (em torno de 15% do total da amostra), enquanto 49% alegavam não serem donos dos entorpecentes encontrados.
Em sua tese de doutorado defendida em 2019 na Universidade de São Paulo, o juiz Marcelo Sieger analisou 800 sentenças de primeira grau, que apreciam denúncias de tráfico de drogas e crimes conexos, em oito estados diferentes. Os resultados apontam que 57,99% das apreensões de maconha se refeririam a uma quantidade inferior a 100 gramas da droga. Em relação à cocaína, em 56,14% dos casos de apreensão analisados, as quantidades eram inferiores a 50 gramas. Em relação ao histórico criminal dos réus, Sieger identifica que mais de 70% dos condenados eram réus primários quando de sua apreensão pela polícia.
Em 2023, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou um novo estudo sobre o tema, convenientemente anunciado no mesmo período que o STF decidiu retomar o julgamento da questão. O instituto analisou 5.121 processos por tráfico de drogas na justiça comum, com decisão terminativa no primeiro semestre de 2019. Considerando os tipos de drogas apreendidas, a pesquisa aponta que, nos casos em que houve apreensão de cocaína e derivados, 62,7% dos processos se referem à posse de menos de 100 gramas da substância. No caso das apreensões de maconha, 58,7% se referem à posse de menos de 150 gramas da substância.
A pesquisa tem sido tomada como reforço para o argumento em prol da mudança da atual Lei de Drogas. Seguindo os parâmetros de uma nota técnica sugerida pelo Instituto Igarapé, os pesquisadores estimaram o impacto de mudança na Lei de Drogas em três cenários. No conservador, a lei passaria a permitir o porte de 25 gramas de maconha e de 10 gramas de cocaína; no intermediário, 40 g de maconha e 12g de cocaína; e no liberal, 100g de maconha e 15g de cocaína. Considerando quantos processos e condenações por tráfico de drogas poderiam ser enquadrados como porte descriminalizado, os percentuais vão de 27% a 48% dos condenados por crimes de tráfico por causa de maconha, e 31% a 37% por causa de cocaína.
O que os números não mostram
O problema com os estudos mensurados é que eles no máximo insinuam uma situação, mas passam longe de provar a questão se há realmente muitos usuários de drogas encarcerados no sistema de justiça criminal. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o percentual de presos que foram apreendidos com menos de 100 gramas de droga não prova muita coisa sobre o seu perfil criminal de fato.
Em termos de substância, 100 gramas de maconha não são 100 gramas de cocaína, nem muito menos de crack. Enquanto um usuário contumaz da erva pode realmente comprar uma quantidade desse peso para fumar durante certo período de tempo, é quase impossível que um usuário de crack ou cocaína ande com uma quantidade de drogas minimamente próxima disso para seu próprio consumo.
Por outro lado, é preciso ter em mente questões relativas à forma como o tráfico de drogas se organiza atualmente no varejo. Um fator importante que pode explicar a baixa quantidade de drogas apreendidas com pequenos traficantes é a própria organização de uma boca de fumo. O ponto utilizado para a venda de drogas quase nunca é o local onde o traficante guarda grande quantidade de entorpecente. É normal que os tijolos ou tabletes de drogas fiquem guardados em um local menos exposto, como forma de proteção da mercadoria, em caso de invasão por um grupo criminoso ou operação policial. Isso inclui casa de parentes próximos ou imóveis utilizados como depósitos na favela ou comunidade.
Mais ainda, ao contrário do que os dados podem dar a entender, os traficantes nem sempre são donos de boca de fumo ou são pegos com quantidades expressivas de droga. Na verdade, grande parte da droga que se consome no país não se vende mais em pontos de venda fixos, dominados por um traficante, pertencente ou não a uma facção criminosa. Esse modelo, bastante comum até o final da primeira década dos anos 2000 e ainda presente em favelas dominadas por grupos armados, como as do Rio de Janeiro e outros estados brasileiros, não é um retrato fidedigno da dinamicidade do varejo de drogas ilegais no Brasil.
Em muitos locais, principalmente onde a repressão policial é mais acentuada, o varejo se organiza em torno da chamada “bolsa-crack” ou “bolsa-droga”. Nesse modelo, um traficante com maior poder aquisitivo distribui uma quantidade limitada de drogas para vários operadores na ponta, diária ou semanalmente, que tem a função de vende-la para os consumidores de determinada região.
Esses pequenos traficantes muitas vezes são também usuários e pagam parte do seu vício com a venda do entorpecente. Em muitas situações, entram em conflito entre si, ou com vendedores de outros grupos criminosos, o que resulta em mortes que não se encontram sobre o controle direto das organizações criminosas. Trata-se de um dos andares de baixo da hierarquia do tráfico, onde facções pescam os indivíduos mais inteligentes, ousados e/ou agressivos para executar tarefas mais complexas.
Também são comumente utilizados para fazer serviços para os traficantes em época de baixa na venda, por causa de apreensões que geram dívidas ou operações policiais constantes que espantam os compradores por certo tempo. Isso inclui assalto com armas emprestadas, entre outros crimes.
Estrito senso, praticamente nenhuma pesquisa permite ter uma visão minimamente aproximada sobre a quantidade de usuários presos por causa da Lei de Drogas. O estudo do Ipea ou a tese de Sieger não nos dão qualquer estimativa aproximada disso. Seria simplesmente leviano inferir um percentual de usuários no universo analisado nessas investigações.
Já o estudo do NEV não considerou pessoas efetivamente condenadas pelo sistema de justiça criminal. Também apresenta dados que se referem ao período antes da criação da audiência de custódia, em 2015. Até aquela data, os juízes revisavam documentos impressos para decidir se uma pessoa detida pela polícia deveria esperar pelo julgamento sob custódia ou em liberdade. Com a implementação do dispositivo, os magistrados passaram a ter a oportunidade de realizar entrevistas presenciais, com a participação do Ministério Público e da defesa (Defensoria Pública ou advogado). Esse procedimento contribuiu muito para a redução do encarceramento, principalmente nos casos de crime de menor gravidade, reduzindo a taxa de presos provisórios em cerca de 10%.
Isso se torna relevante quando se considera que o percentual de presos que alegavam serem usuários de drogas já é muito pequeno na amostra coletada pelo NEV (aproximadamente 15% do total das prisões analisadas). Delinquentes costumam ter algum conhecimento prático sobre processo penal e não é difícil acreditar que percentual relevante desse subgrupo minoritário das apreensões em flagrante tenha recorrido à mentira pura e simplesmente.
Todo bandido é inocente na delegacia, todo mundo na cadeia é sempre injustiçado, todo traficante é usuário ou teve a droga plantada por policiais corruptos. O número de confissões é sempre reduzido, para qualquer tipo de crime, em qualquer situação ou contexto. Também não é possível saber quantos alegaram que eram usuários e terminaram condenados efetivamente. Descontando esses universos, é bem difícil falar de um problema social grave ou generalizado de usuários de drogas encarcerados como traficantes. Simplesmente não há indício substantivo de sua existência.
O STF tem sustentado durante os últimos anos um forte discurso de defesa de decisões jurídicas fundamentadas em pesquisas científicas. Caso decidisse fazer o mesmo em relação à Lei de Drogas, prevaleceria o ceticismo quanto à mudança do atual dispositivo em vigor. Alegando a proteção de usuários de drogas, o que as Cortes farão se prevalecer o posicionamento dos ministros que votaram até então é fornecer carta branca para os traficantes no varejo reorganizarem toda a dinâmica de venda de drogas no país
Infelizmente, não existe qualquer indício que isso vá implicar na redução do crime ou do uso de drogas. Ao contrário, com um dispositivo a menos para as polícias apreenderem criminosos em flagrante, é provável que se consolide uma ambiência institucional que em tudo favorece o crime, a violência e a desordem.
Eduardo Matos de Alencar é doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro 'De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil' (Ed. Record)"